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A eleição no Brasil é só mais um sinal de como radicalizamos o mundo

Venho acompanhando a evolução sombria da cultura da internet nos últimos anos e tive o privilégio – ou o azar – de assistir ao crescimento da discórdia política ao redor do mundo.

SÃO PAULO, Brasil – Da varanda do escritório do BuzzFeed em São Paulo, era possível ouvir os gritos de “EleNão” ecoando pelas avenidas sinuosas da cidade. É a mesma frase que vi em graffitis espalhados por toda a capital paulista neste mês. A mesma que ouvi entoada em restaurantes e bares.

A frase era dirigida a uma pessoa específica – Jair Bolsonaro, cuja vitória no pleito do último domingo (28) não chegou a ser uma surpresa. Ele é apenas mais um produto das novas e estranhas forças que passaram a comandar a estrutura das nossas vidas.

Já faz uma década desde a primeira vez que achei que algo estava mudando na maneira como interagimos com a internet. Em 2010, como estagiário da seção de notícias de um hoje extinto site chamado Awl, uma das primeiras matérias que propus foi um explainer sobre por que os trolls do 4chan estavam tentando derrubar o também hoje extinto site Gawker por meio de um ataque distribuído de negação de serviço (DDOS).

Era um mundo que eu conhecia bem. Eu tinha 19 anos que passava a maior parte do meu tempo fazendo o que agora reconhecemos como “shitposting” (postar conteúdo inútil ou irrelevante online com o intuito de desvirtuar o diálogo ou provocar outras pessoas). Era o início de uma era na qual nossas antigas ideias sobre informação, privacidade, política e cultura estavam começando a ser deturpadas.

Eu venho seguindo essa evolução sombria da cultura da internet desde então. Eu tive o privilégio – ou o azar – de acompanhar o crescimento da discórdia política ao redor do mundo. Nos últimos quatro anos, estive em 22 países e seis continentes acompanhando de perto dezenas de referendos e eleições. Eu estava em Londres quando o Reino Unido votou a favor do Brexit, em Barcelona durante as tentativas malsucedidas de secessão da Catalunha da Espanha, na Suécia quando os neonazistas tentaram marchar durante a maior feira literária do país. E agora estou no Brasil.

No entanto, a era em que podemos nos surpreender com o que a internet pode fazer e fará conosco está acabando. O dano já está feito. Estou tentando aceitar o fato de que provavelmente passarei o resto da minha carreira cobrindo as consequências disso.

Em 2010, quando propus a matéria sobre o 4chan, estava sentado no futon de um dormitório de faculdade, escrevendo a matéria em um laptop antigo. Hoje, vivemos em uma era sombria que atua quase que exclusivamente em nossos smartphones, quase sempre relacionada a casos de abuso de plataformas de empresas norte-americanas. Aproximadamente 70% dos usuários de smartphone possuem um telefone Android, e outros 30% um Apple. Mensalmente, há 2 bilhões de usuários ativos no Facebook, 2 bilhões de usuários ativos no YouTube e 1,5 bilhão de usuários ativos no WhatsApp. Quando falamos de mídias digitais, Facebook e Google controlam quase 60% do mercado de publicidade digital. A Amazon aparece numa distante terceira posição.

O modo como o mundo hoje interage com smartphones é quase que completamente dominado por umas poucas empresas do Vale do Silício. O abuso que está acontecendo nessas plataformas deve-se à incapacidade dessas empresas de lidar com essa responsabilidade. Tudo isso se tornou tão normalizado nestes três anos – desde a primeira manifestação do fenômeno – que hoje sempre presumimos que plataformas como Facebook, YouTube, WhatsApp e Twitter exacerbarão a instabilidade política e social. Supomos que elas serão abusadas por trolls ultranacionalistas. Sabemos que elas serão exploradas por empresas de análise de dados. Prevemos que elas lançarão as carreiras de líderes populistas.

É óbvio que o populismo, o nacionalismo e a guerra de informações existiam desde muito antes da internet. O arco da história nem sempre segue na direção do que eu considero como progresso. As sociedades regridem. A diferença agora é que tudo isso está sendo hospedado quase que completamente nos servidores de um punhado de empresas. Por que uma empresa norte-americana como o Facebook está colocando anúncios em jornais de países como Índia, Itália, México e Brasil, explicando como os usuários locais podem combater abusos e desinformação? Porque nossas vidas, sociedades e governos estão ligados a um ciclo invisível de feedback, online e offline. E não há uma maneira clara de nos libertarmos.

A pior parte de tudo isso é que, em retrospecto, não surpreende o modo como chegamos até aqui.

É 2013. Um anúncio surge nas redes sociais russas: "Precisa-se de operadores de internet! Emprego em um escritório elegante em Olgino!!! Salário de 25.960 rublos mensais. Função: postar comentários em perfis de sites na internet, escrever blogs e posts temáticos em redes sociais. Controle via captura de tela”. Quem respondeu ao anúncio foi colocado em um porão em São Petersburgo e tornou-se a primeira iteração da agora infame Agência de Pesquisas da Internet – ou um exército de trolls.

É 2014. Narendra Modi, nacionalista hindu, e seu partido de extrema direita, Bharatiya Janata, varreram os adversários nas eleições gerais indianas. Essa eleição é considerada a primeira eleição do país pós-Facebook. Modi torna-se o segundo político mais curtido do mundo no Facebook, atrás apenas de Barack Obama. A mesma onda de nacionalismo hindu que alçou Modi ao poder começa a inspirar linchamentos nas áreas rurais da Índia.

Um mês depois, as ruas de Mandalay, Myanmar, estão tomadas por pessoas. Um multidão forma-se ao redor da casa de chá de de um muçulmano. Um post no Facebook acusando o proprietário de estuprar uma funcionária budista foi compartilhado por um monge ultranacionalista local chamado Wirathu. Membros da multidão começam a queimar carros e destruir lojas. Posteriormente, o Gabinete Presidencial bloqueou o acesso ao Facebook no país em uma tentativa de refrear a violência.

É 2015. Duzentos e setenta mil usuários do Facebook permitem que um aplicativo de terceiros, chamado "This Is Your Digital Life" (Esta é Sua Vida Digital, em tradução livre), acesse não apenas seus dados, mas também o de seus amigos – cerca de 87 milhões de usuários. Os dados são coletados e analisados pela empresa de dados britânica Cambridge Analytica e utilizados para um processo chamado "microdirecionamento comportamental".

É maio de 2016. Rodrigo Duterte, candidato de extrema direita, torna-se presidente das Filipinas. O papel do Facebook na eleição é inegável. Dois meses antes, a empresa declarou que o ex-prefeito defensor de armas era o "rei indiscutível das discussões no Facebook". Um grupo de celebridades de extrema direita da internet criou uma rede de propaganda ad hoc ao seu redor.

Um mês depois, em uma daquelas raras manhãs ensolaradas do início do verão em Londres, estou alarmado com a quietude da cidade. Na noite anterior, 52% do Reino Unido havia votado a favor de abandonar a União Europeia. Posteriormente, ouviríamos rumores de que um grupo pró-Brexit chamado Leave.EU (Abandonar.UE, em tradução livre) utilizou durante meses os métodos de microdirecionamento da Cambridge Analytica. Bots e trolls ligados à Agência de Pesquisas da Internet russa passaram 48 horas postando mais de 45 mil tuítes sobre o Brexit na tentativa de dividir os eleitores.

É janeiro de 2017. Donald Trump torna-se o 45º presidente dos Estados Unidos. Em sua posse, Trump promete que "a carnificina americana termina aqui e agora". O Gabinete do Diretor de Inteligência Nacional concluirá posteriormente que o presidente russo Vladimir Putin ordenou uma campanha de inteligência com o intuito de "minar a fé pública no processo democrático dos EUA".

Abril de 2017. A política de extrema-direita Marine Le Pen vai ao segundo turno das eleições presidenciais francesas contra Emmanuel Macron, que foi alvo de um ataque hacker "em massa e coordenado" poucos minutos antes do encerramento da campanha eleitoral. Estou em Paris quando as ruas da cidade são tomadas por imensas cortinas de fumaça dos gases lacrimogêneos. Manifestantes de balaclava bradam "o mundo todo odeia a polícia" e arrancam os balizadores de proteção das calçadas. Um carrinho de compras cheio de coquetéis molotov surge no meio da multidão de antifascistas e é arremessado na direção da polícia de choque. Uma das pernas da minha calça pega fogo após eu ser atingido por um fogo de artifício.

Um mês depois, um grupo de youtubers de extrema-direita é detido pela polícia italiana após aparecer em uma transmissão ao vivo no Periscope atirando sinalizadores na direção de um navio de resgate de refugiados chamado Aquarius, no Mar Mediterrâneo. Os membros do grupo utilizaram comunidades de extrema-direita no Reddit e no 4chan para financiar a "proeza", criando uma teoria da conspiração de que organizações não governamentais como Médicos sem Fronteiras não estão salvando refugiados no mar, fazendo parte, na verdade, de uma operação de tráfico de pessoas. Uma das youtubers, Lauren Southern, envia uma mensagem de texto assim que chego em Catânia, Itália, para que eu entrevistasse o grupo. Ela afirma que eles já tinham saído da cidade. "Há um risco de segurança. A imprensa causou isso, eles podem acabar matando um bando de jovens de 20 e poucos anos", dizia a mensagem.

Em agosto, a manifestação "Unite the Right" (Unir a Direita, em tradução livre), organizada por nacionalistas brancos em aplicativos de bate-papo como Discord, Reddit e 4chan, toma as ruas de Charlottesville, Virgínia. Um supremacista branco que participou da manifestação, James Alex Fields Jr., dirige cerca de um quilômetro e joga seu carro em uma multidão que protestava contra a manifestação, matando a ativista Heather Heyer.

Um mês depois, o partido Alternativa para a Alemanha (sigla AfD) é o terceiro mais votado nas eleições gerais, tornando-se o primeiro partido de extrema-direita a entrar no parlamento alemão em meio século. Nas últimas horas da eleição, botnets russos começam a promover propaganda de extrema-direita no Twitter. O AfD também trabalhou em estreita colaboração com uma agências de mídias digitais ligada às campanhas de Trump e Le Pen. Sinto as gotas de chuva atingindo meu rosto quando a polícia de choque começa a entrelaçar seus escudos, criando uma barreira entre os 1.000 antifascistas na entrada do Traffic Club de Berlim, na Alexanderplatz, e os membros da AfD na sacada acima. Eu vejo os membros da AfD fumando charutos, brindando com taças de bebida e insultando a multidão abaixo com gritos homofóbicos.

Alguns dias depois, Julian Assange realiza uma vídeo-conferência com estudantes catalães do lado de fora da Universidade de Barcelona. Ele os instrui a usar aplicativos como WhatsApp e Telegram. Esses aplicativos serão utilizados para realizar um referendo ilegal sobre a independência catalã. A Polícia Federal espanhola acabará atacando esses eleitores. Nos dias seguintes ao referendo, manifestantes de extrema direita anti-independência farão manifestações nazistas e entoarão canções fascistas durante marchas pela cidade. Eu corro pelas ruelas labirínticas da cidade antiga de Barcelona, tentando chegar à frente da multidão formando-se no Arco do Triunfo. Eu subo em um poste enquanto o presidente catalão, Carles Puigdemont, informa a multidão de milhares de independentistas que não haverá secessão imediata da Espanha. Políticos catalães serão presos. Puigdemont fugirá para a Bélgica.

É novembro de 2017. As ruas de Varsóvia estão cheias de sinalizadores vermelhos, bandeiras polonesas e faixas antissemitas. Uma semana depois, estou congelando em um monte iluminado pela luz vermelha do mesmo tipo de sinalizadores, na pequena cidade de Częstochowa, vendo um padre abençoar os times de futebol locais cercado por seus torcedores hooligans. Eles estão de braços dados com nacionalistas brancos e neonazistas, bebendo uísque direto da garrafa, cantando mais músicas racistas. Algumas semanas depois, o Senado polonês aprovará um projeto de lei que tornaria ilegal reconhecer a participação da Polônia no Holocausto.

É fevereiro de 2018. Estou vestindo duas camadas de malhas térmicas, correndo pelas colinas de PyeongChang, Coreia do Sul. Estou tentando evitar o gigantesco engarrafamento no trajeto até o Estádio Olímpico. O sol está se pondo quando a cerimônia de abertura começa. Nacionalistas sul-coreanos queimam fotos de Kim Jong Un e lutam com policiais. Uma mulher, em pé em um palco improvisado, bate em um tambor enquanto a multidão grita ritmadamente. Um dos manifestantes pede para que eu escreva sobre como a Coreia do Sul precisa que Trump bombardeie a Coreia do Norte. Eles agitam bandeiras dos EUA e fotos com o rosto de Trump, agradecendo por eu tê-lo eleito.

É março de 2018. A neve cai sobre uma biblioteca antifascista que recentemente fora alvo de um ataque a bomba. Eu acompanho os voluntários limpando o que sobrou de uma sala. Eles afirmam temer que isso seja apenas o começo de uma futura violência política. Eles estavam certos. Dias depois, o movimento anti-establishment Cinco Estrelas, liderado por Luigi Di Maio, conquista a maioria dos assentos no parlamento nas eleições gerais italianas. Online, uma ação em massa de botnets de extrema direita age a pleno vapor. O movimento Cinco Estrelas formará uma coalização com o partido de direita Liga Norte, de Matteo Salvini. Salvini, incentivado pelo aumento em sua popularidade, passará o verão inteiro bloqueando navios de resgate de refugiados.

É junho de 2018. Um influenciador de extrema-direita britânico, Tommy Robinson, é preso após fazer uma live no Facebook do lado de fora de um tribunal em Leeds, por violação das leis britânicas de desacato a tribunais. Centenas de seus apoiadores reuniram-se no Palácio de Whitehall para apoiar a visita de Trump ao Reino Unido e protestar contra a prisão de Robinson, inflamados pela cobertura incessante de um veículo de imprensa canadense de extrema-direita chamado The Rebel. Os fãs de Robinson enfrentam a polícia, tomam o pub Silver Cross e gritam ofensas racistas às centenas de manifestantes contra Trump que os cercam. Eles exigem a soltura de Robinson. Um homem pergunta por que a imprensa não está cobrindo a manifestação deles. Eu digo a ele que sou da imprensa e estou cobrindo a manifestação. Ele fala que se referia à BBC e diz que trabalho com "fake news".

Um mês depois, estou de pé em um banco em uma calçada no México, tentando enxergar algo por cima da massa de apoiadores do presidente populista de esquerda Andrés Manuel López Obrador, mais conhecido como AMLO. A multidão está distribuída pelas ruas que cercam o Hilton Hotel na Cidade do México. Dentro do hotel, AMLO afirma: "A transformação que faremos consiste em, basicamente, expulsar a corrupção do nosso país." Online, milhares de bots pró-AMLO colocam o político nos trending topics do Twitter e inundam o feed de notícias do Facebook com fake news sobre o novo presidente.

E agora, no último domingo (28), Jair Bolsonaro ganhou as eleições presidenciais brasileiras utilizando uma mistura ao mesmo tempo tóxica e perfeita para as redes sociais – religiosidade, nacionalismo e maneirismos másculos – para criar um culto de personalidade que ameaça mergulhar o país em uma nova ditadura militar. Aparentemente, ele decidiu adotar o WhatsApp como sua ferramenta de propagando online preferida. Nos últimos dias antes do segundo turno, uma reportagem apontou que agências de marketing brasileiras utilizaram o WhatsApp para encher os telefones dos eleitores com propaganda anti-esquerda. Dias depois, Bolsonaro anunciou em uma live que, caso eleito presidente, tentaria alterar uma regra criada pelo WhatsApp para limitar o número de mensagens simultâneas que o usuário pode mandar de uma só vez.

No entanto, na verdade, não importa o país onde você esteja. A história é a mesma em todos os lugares.

É muito provável que, atualmente, o seu país apresente alguns, se não todos, dos fenômenos abaixo. Em primeiro lugar, provavelmente há algum tipo de problema local com trolls de internet, como a MAGAsphere nos EUA, os Netto-uyoku no Japão, os Fujitrolls no Peru ou os AK-trolls na Turquia. Seus trolls provavelmente foram radicalizados online via algum tipo de comunidade para homens jovens como Gamergate nos EUA, Jeuxvideo.com na França, ForoCoches na Espanha, Ilbe Storehouse na Coreia do Sul, 2chan no Japão ou páginas de sátiras no Facebook no Reino Unido.

Então surgem os influenciadores de extrema-direita, auxiliados por algoritmos que recomendam conteúdos que aumentarão o tempo do usuário na plataforma. Eles usarão o Facebook, o Twitter e o YouTube para transmitir e amplificar seus conteúdos e para organizar campanhas de ameaça e intimidação. Caso esses influenciadores atinjam um nível mínimo de sofisticação, tentarão organizar protestos ou manifestações. As miniconvenções fascistas organizadas serão transmitidas ao vivo, funcionando como um jogo de realidade aumentada para quem está assistindo em casa. Depois disso, vem a violência e o doxing.

Alguns desses trolls e influenciadores criarão grupos de extrema-direita mais sofisticados, ainda dentro do movimento maior, como Proud Boys (América do Norte), Generation Identity (Europa) ou Movimento Brasil Livre. Outros farão parte da renovação de instituições nacionalistas ou de extrema-direita mais antigas e estabelecidas, como o Movimento de Resistência Nórdica (Suécia), o Football Lads Alliance (Reino Unido), a Frente de Patriotas Unidos (Austrália) ou o PEGIDA (Alemanha).

Durante o desenvolvimento de uma comunidade de extrema-direita no seu país, geralmente há uma indústria de fake news a todo o vapor online. Pode ser uma cultura de desinformação baseada em rumores, como as farsas localizadas que circulam em países como Índia, Myanmar ou Brasil. Ou pode ser uma fake news mais tradicional, saída de veículos de imprensa, ou uma propaganda hiperpartidária vista predominantemente em países de língua inglesa como os EUA, Austrália ou Reino Unido.

Geralmente, grandes canais de notícias de extrema-direita ou tabloides conservadores pegam essas histórias que estão viralizando no Facebook e as reembalam para um público mais velho e tradicional. Dependendo de como é o cenário do seu país no que diz respeito à imprensa, os trolls e influenciadores de extrema-direita poderão tentar apropriar-se dessa trajetória "redes sociais-jornal-televisão", criando mais conteúdos para serem transformados em memes e compartilhados. É um ciclo de feedback.

Líderes populistas e a legião de influenciadores que surfam nessa onda sabem que podem criar bolhas de filtragem dentro de plataformas como Facebook ou YouTube prometendo o retorno a uma era mais segura, uma que nunca existiu, antes dos protestos, da violência, das crises em cascata e dos ciclos infinitos de notícias. Donald Trump quer Tornar a América Grande Outra Vez, Bolsonaro acena com a volta da ditadura militar no Brasil, Shinzo Abe quer recapturar o passado imperial do Japão, a base do eleitorado da AfD alemã é composta de pessoas mais velhas que viveram na Alemanha Oriental e têm saudade dos dias de autoritarismo. Todos esses líderes prometem fechar as fronteiras, para aumentar a segurança. O que, obviamente, exacerbará os problemas com os quais eles prometeram acabar. Outro ciclo de feedback.

Alex Stamos, ex-diretor de segurança do Facebook, publicou um artigo em agosto afirmando que já era tarde demais para a empresa proteger as eleições intermediárias de 2018 nos EUA das campanhas de desinformação praticadas pela Rússia e pelo Irã. Talvez consigam corrigir isso até 2020. Também há a probabilidade de que, para países mais desenvolvidos – ou para a parcela mais rica da população –, as coisas se estabilizem.

Na maioria dos países, veículos confiáveis estão adotando paywalls (sistema de cobrança por acesso a conteúdos online). Mais serviços como Amazon Prime e Netflix estão limitando o acesso ao entretenimento "premium" aos seus assinantes. O que significa que isso tudo – os trolls, o abuso, as fake news, os vídeos sobre conspirações, os vazamentos de dados, a propaganda – eventualmente deixará de ser um problema para quem pode pagar.

O que, muito provavelmente, jogará os pobres, os mais velhos e os mais jovens em um fosso de desinformação. Isso já acontece. Um estudo publicado neste mês no Reino Unido constatou que os leitores britânicos mais pobres têm acesso a menos notícias e de menor qualidade dos que os leitores mais ricos. E, segundo uma nova pesquisa do Pew Research Center, apenas 17% das pessoas acima dos 65 anos conseguem distinguir fatos de opiniões. As comunidades de bem-estar no Instagram para adolescentes já estão transformando-se em pequenos impérios de "remédios milagrosos" da era das fake news.

Há desertos de informação onde pessoas normais são abastecidas por algoritmos de memes, artigos de notícias de qualidade duvidosas e vídeos de YouTube sem qualquer supervisão ou regulação editorial. Verificadores de fatos independentes no Brasil reclamaram um mês antes das eleições que a maioria dos eleitores confia mais em notícias enviadas por amigos e parentes no WhatsApp do que nas de TV ou jornais.

Apesar disso, essa espécie de pilhagem norte-americana em nome do progresso tecnológico não é particularmente nova, especialmente para um país como Brasil. Há uma cidade na região norte do país chamada Fordlândia. Ela foi construída nos anos 1920 por Henry Ford. Ford estava tentando descobrir uma maneira de escapar do monopólio britânico sobre a borracha. Ele fez um acordo com o Estado do Pará por 1 milhão de hectares. O Pará receberia 9% lucros de Ford em troca de isenção das suas exportações.

Os jornais locais ficaram muito entusiasmados com a chegada da Ford. A empresa prometia salários justos. Os trabalhadores começaram a chegar de todo o país para trabalhar e viver em Fordlândia.

O projeto inteiro foi um desastre imediato em quase todas as maneiras possíveis. A empresa construiu Fordlândia para parecer uma cidade americana e alimentava seus funcionários com comida americana. Os novos funcionários brasileiros odiavam tudo isso. Os gestores da cidade tentaram banir o álcool, as mulheres, o tabaco e o futebol. Os trabalhadores começaram a contrabandear esses itens para dentro da cidade. Então os trabalhadores começaram a contrair febre amarela e malária. Os gestores da Ford não sabiam como plantar seringueiras em climas tropicais. A maioria das árvores acabou morrendo por causa de pragas ou parasitas.

Em 1930 os trabalhadores revoltaram-se. Os gestores foram expulsos para a floresta. O Exército brasileiro teve de intervir. A cidade acabou sendo abandonada em 1934. A Ford posteriormente aprendeu a produzir borracha sintética e percebeu que não precisava da borracha brasileira para nada. A cidade permaneceu em ruínas até 2017, quando um município próximo decidiu tentar transformá-la em uma cidade funcional.

As Fordlândias em curso nas redes sociais de todo o mundo provavelmente não vão durar muito. Mas o dano causado por elas provavelmente vai. As democracias que elas desestabilizarão, as pessoas que elas radicalizarão e a violência que elas inspirarão muito provavelmente deixarão um rastro duradouro. Oxalá, porém, não precisemos de cem anos para reconstruir sociedades funcionais depois que elas foram abandonadas pelas empresas.


A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Luísa Pessoa.

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