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Os protestos contra o racismo podem espalhar o coronavírus. Estes médicos e enfermeiros estão protestando mesmo assim.

“Antes de ser uma médica, eu sou negra.”

Anna Maria Ruiz conhece muito bem o sofrimento humano causado pela pandemia de coronavírus que se espalhou pelo globo. Como enfermeira intensivista que tratou pacientes em seus momentos mais críticos, ela teme a possibilidade de ficar sobrecarregada pelos casos graves, ficar sem equipamento de proteção individual e adoecer.

Mas Ruiz, que é afro-latina, também vive com medo de outra coisa: racismo, discriminação e violência contra os negros americanos.

Os assassinatos de George Floyd e Breonna Taylor, duas pessoas negras desarmadas, por policiais desencadearam protestos por todo o país que aumentam em tamanho e em número diariamente. Semanas de distanciamento social finalmente diminuíram o número de casos que Ruiz tem de tratar no hospital em que trabalha, no centro do Texas, mas, quando uma manifestação no centro de Austin foi organizada no fim de semana passado, ela se sentiu compelida a participar – apesar de saber que o aumento na propagação do coronavírus em consequência das manifestações era uma ameaça real.

“Apenas acho que a minha presença é importante demais”, a enfermeira de 27 anos disse ao BuzzFeed News. “Acho isso é lutar pelos meus direitos, os direitos do meu companheiro, os direitos do meu pai, os direitos do meu irmão, os direitos dos meus amigos. Para mim, é a luta de todos.”

Médicos, enfermeiros, residentes, estudantes de medicina e outros profissionais da saúde são apenas alguns dos milhares de manifestantes que estão lotando as praças e os centros das cidades. Para alguns, a participação dessas pessoas pode parecer problemática ou hipócrita. Em entrevistas para o BuzzFeed News, meia dúzia de profissionais da saúde que participaram das recentes manifestações disseram que ainda estavam muito preocupados com a pandemia, que já matou mais de 100.000 norte-americanos.

E eles, assim como outros especialistas em saúde, acreditam que as multidões provavelmente espalharão o vírus, principalmente quando a polícia usa gás lacrimogêneo ou realiza prisões em massa. Um surto de casos de coronavírus provavelmente chegará aos hospitais em que eles trabalham nas próximas semanas.

Mas, apesar da decisão de participar das manifestações ter sido difícil para alguns, todos eles disseram que estavam profundamente angustiados com a desigualdade racial que perpassa praticamente todas as facetas da vida nos EUA – da economia e educação à própria pandemia, com uma taxa de mortalidade é muito maior entre as pessoas negras. Eles disseram que se viam como defensores dos seus pacientes, não apenas dentro do hospital, mas também fora dele. A violência policial e a desigualdade sistêmica são tão opressivas, disseram eles, que a única opção que tinham era se posicionar publicamente.

Essas forças, observaram, também são uma crise de saúde pública.

Como disse Jessica Edwards, uma médica da família de Braunfels, Texas: “Antes de ser uma médica, eu sou afro-americana.”

Todos os profissionais da saúde entrevistados disseram que usaram máscaras, tentaram manter uma distância segura dos outros manifestantes e acham que a maioria das pessoas ao seu redor estava fazendo a mesma coisa. Diversos também foram preparados para atuar como médicos caso os policiais utilizassem gás lacrimogêneo, tasers, granadas de atordoamento, spray de pimenta e balas de borracha contra a multidão.

Anteriormente, um pequeno grupo de pessoas se reuniu para protestar em todo o país – nesse caso, contra as ordens de isolamento social que ajudaram a deter a transmissão do vírus, mas que também paralisaram empresas e causaram um número histórico de demissões nos EUA. Grupos de manifestantes, alguns deles armados, lotaram assembleias legislativas e foram criticados por potencialmente espalhar o vírus sem necessidade como consequência dessas aglomerações.

A mesma crítica deveria ser aplicada às atuais manifestações? Paras os enfermeiros e médicos entrevistados para este post, a diferença se resume a uma causa que é mais ampla e fundamental, até mesmo existencial.

“Eu compreendo como isso [o shutdown] impacta meus compatriotas, e sou solidária a eles”, disse a dra. Yasmin Rawlins, uma residente no primeiro ano de Psiquiatria no sul da Califórnia. “Contudo, devo admitir que concordo com as pessoas que dizem: ‘Se a opção for entre seu trabalho ou sua vida, você deve escolher sua vida.’ E acho que é isso que o movimento Black Lives Matter está fazendo – eles estão escolhendo a vida.”

Dados mostram que, nos EUA, as pessoas negras possuem uma expectativa de vida menor do que a das pessoas brancas, observou a médica. “Não é só inerentemente injusto. Estamos lutando pelo nosso direito de viver, simplesmente de existir, de sobreviver nesta sociedade.”

Abaixo apresentamos esses médicos e enfermeiros, em suas próprias palavras. Os comentários deles foram editado por questão de clareza e espaço.

Anna Maria Ruiz
Idade: 27
Local: Austin, Texas
Trabalho: Enfermeira licenciada na HCA Healthcare.

Sobre o assassinato de George Floyd: “Eu não sei o porquê de esse caso ter me afetado tanto, e a todas estas outras pessoas também. Só parece ter sido a gota d'água para muitas pessoas. Acho que porque é algo muito diferente, ver um homem morrendo lentamente em um vídeo – não é algo que se vê todo dia. ... É horrível. Acho que nenhum ser humano deveria ver aquilo. E aí você eleva aquilo: poderia ser meu pai, meu tio, meu irmão ou até mesmo eu.”

Sobre o cartaz que carregou na manifestação (foto acima): “Quando estou no quarto de um paciente, [os pacientes dizem que] eu sou excelente, eu sou a melhor enfermeira da história, falam um monte de coisa. Mas será que eles achariam isso de mim, como pessoa, se eu não estivesse cuidando deles, se a vida deles não estivesse nas minhas mãos naquele momento? Se eu estivesse nas ruas, eles me tratariam com o mesmo respeito se eu estivesse de jeans e camiseta? Infelizmente, essa é uma pergunta que me faço sempre que entro no quarto de um paciente. ... Se eu sou uma excelente pessoa quando estou de roupa privativa, também sou uma excelente pessoa fora da roupa privativa. Eu não deveria ter de viver em dois mundo diferentes, separados apenas pelo meu uniforme.”

Sobre segurança: “Eu não vi uma pessoa na manifestação sem a máscara – e também há pessoas distribuindo antisséptico para as mãos e máscaras extras. Há pessoas que estão realmente tentando preservar a saúde dos outros, mas eles entenderam que isso era, mais uma vez, necessário. É algo muito impactante quando você vê de fora, à distância, mas é ainda mais impactante quando você está no meio daquilo.”

“Se eu sou uma excelente pessoa quando estou de roupa privativa, também sou uma excelente pessoa fora da roupa privativa. Eu não deveria ter de viver em dois mundo diferentes, separados apenas pelo meu uniforme.”

Sarah
Idade: 23
Local: Fort Myers, Flórida
Trabalho: Enfermeira licenciada em um hospital.

Nos últimos meses, Sarah tem trabalhado incessantemente em uma unidade para pacientes com COVID em seu hospital. Mas ela não hesitou em participar de uma manifestação pacífica neste fim de semana, em que ela e uma multidão de pessoas usando máscaras ficaram em silêncio durante oito minutos, o tempo que o policial Derek Chauvin ficou com o joelho em cima do pescoço de George Floyd.

Sarah, que preferiu não informar o seu sobrenome por motivos de segurança, possui ascendência dominicana, mas disse que o seu tom de pele claro faz dela “a pessoa mais branca na minha família”. E ela sabe que essa diferença faz dela uma privilegiada, por poder viver despreocupadamente e defender aqueles que não o podem.

Sobre o o motivo pelo qual decidiu participar da manifestação: “Sendo uma enfermeira licenciada, senti que tinha um dever para com a minha comunidade: não apenas cuidar deles no ambiente hospitalar, mas também reconhecer as disparidades sanitárias, o racismo, as microagressões e esse tipo de estresse, de ver o seu povo morrendo, ver pessoas que se parecem com você frequentemente assassinadas pela polícia e ver a violência com a qual são tratadas.”

O que você acha da probabilidade de haver um grande aumento no número de casos de COVID-19 como consequência das manifestações? “Eu ando por aí, percebo a dor que as pessoas estão sentindo e acho que elas precisam expressar isso, colocar isso para fora. Porque você não pode simplesmente lidar com isso, internalizar isso.

“Exigir justiça é necessário, e nós podemos proteger os manifestantes da melhor maneira possível através do uso de máscaras. Mas, óbvio, não dá para controlar uma pandemia e o modo como as pessoas são expostas. É importante não manipularmos a experiência negra e culpá-los pela exposição à COVID por estarem expressando essa dor e exigindo justiça. Não é minha função julgar, principalmente por ser enfermeira não é minha função julgar, e eu tratarei meus pacientes como o faço normalmente, com respeito e empatia, independentemente de onde vieram e independentemente de como ficaram doentes.

“O engraçado é que há pessoas que estão conscientemente saindo de casa sem máscara, indo para o supermercado, indo para lojas de departamento, indo para todo lugar, intencionalmente fingindo que a COVID não está acontecendo e depois aparecendo em nossas salas de emergência. E eu vou tratar essas pessoas da mesma maneira. As pessoas estão tomando decisões sobre sua própria saúde. E creio que para muitas pessoas, agora, não existe outra alternativa que não seja a busca de justiça para suas comunidades. Porque eles não suportariam um outro assassinato. E para falar a verdade, eu também não suportaria.”


Yasmin Rawlins
Idade: 27
Local: Los Angeles, Califórnia
Trabalho: Residente no primeiro ano de Psiquiatria.

Rawlins estuda sobre disparidades raciais e étnicas na assistência médica desde quando ainda era uma universitária em Harvard, em 2012. Esse também foi o ano em participou pela primeira vez, um protesto contra a morte Trayvon Martin, baleado por um segurança. Historicamente, observou ela, comunidades negras têm receio de estabelecimentos de saúde, e com razão: elas foram submetidas a experimentos e a tratamentos desiguais. “De certa forma, isso, no meio de uma pandemia, é uma receita para um desastre”, afirmou. Na semana passada, Rawlins, que é negra, deu início ao DOCS 4 POC (DRS. PARA PESSOAS NÃO BRANCAS, em tradução livre), um grupo para médicos dedicados à justiça racial.

Sobre a diferença entre estas manifestações e as recentes manifestações pela reabertura da economia: “Eu diria que o conceito de manifestações durante essa pandemia é inerentemente perigoso. E quando você pesa os prós e os contras da manifestação, eu diria que se você acha que a balança pesa em favor do protesto, depende da causa pela qual você está protestando. Creio que o objetivo da manifestação está inerentemente vinculado à sua decisão, pesando todos os riscos e benefícios de protestar ou não. A diferença que eu vejo entre as manifestações do Black Lives Matter e as manifestações pela reabertura da economia são, mais uma vez, propósito e objetivo.

“Não é que a ideia de reabertura da economia seja problemática. Creio que muitos especialistas em saúde pública afirmaram que há maneiras de reabrir a economia com segurança, mas isso deve ser feito cuidadosamente e com muito planejamento... Na minha opinião, com base no que vi nos noticiários, as pessoas queriam reabrir a economia agora, independentemente das consequências. ... Isso não faz sentido para mim. Por outro lado, o movimento Black Lives Matter está lutando por comunidades negras que já enfrentavam um trauma absurdo e a desigualdade na linha de base antes de tudo isso. E que continuaram enfrentando isso durante a pandemia.”


Danny Kim
Idade: 32
Local: Los Angeles, Califórnia
Trabalho: Residente no terceiro ano de Medicina da Família no Harbor-UCLA Medical Center.

Na semana passada, Kim e sua companheira foram à uma manifestação com kits de primeiros socorros, máscaras e outros equipamentos que indicavam que eles eram médicos. E no fim das contas, tudo aquilo foi necessário. Kim tratou manifestantes que foram atingidos no torso com balas de borracha disparadas pela polícia. E sua companheira também foi atingida por uma bala de borracha que ricocheteou, mas sem se ferir.

O coronavírus é uma ameaça sanitária real, afirmou Kim, assim como a violência causada em ações policiais.

Sobre protestar: “Eu sou um coreano-americano, não fui vítima deste tipo de violência. Tenho esse privilégio. Mas para meus irmãos e irmãs negros, para minha companheira, que é afro-latina, isso é o cotidiano, isso é a realidade, isso é a família. Todos com quem falei têm um ente querido que poderia ter sido George Floyd, poderia ter sido Trayvon Martin, poderia ter sido Tamir Rice. É um acerto de contas, e todos nós precisamos fazer nossa parte.”

“Acho que todos estão tomando decisões pessoais – o quanto eles querem evitar o coronavírus versus protestar contra este vírus de supremacia branca e racismo ”

Sobre os riscos sanitários do coronavírus: “Primeiramente, devo dizer que as manifestações estão ocorrendo ao ar livre, e as pessoas estão usando máscaras e outras coisas por cima dela. Isso diminui o risco de transmissão, pensando apenas com relação ao vírus. Mas obviamente as pessoas estão nas ruas, isso vai aumentar o risco de transmissão. Mas acho que todos estão tomando decisões pessoais – o quanto eles querem evitar o coronavírus versus protestar contra este vírus de supremacia branca e racismo que está profundamente enraizado no nosso sistema judiciário penal.”

Se as manifestações ajudarem a gerar uma nova onda de contaminações em algumas semanas, isso mudaria o seu ponto de vista? “Acho que não mudaria minha opinião, mas certamente a qualificaria. Quero deixar bem claro, eu não recomendo... se você tiver problemas crônicos de saúde, se você for uma pessoa idosa, se for mais vulnerável aos impactos danosos e inflamatórios do coronavírus... não vá para as manifestações. Mas acho que todos devem tomar sua própria decisão quanto a isso. O pessoal que está indo, sem dúvida eles precisam ter cuidado com o que acontece quando chegam em casa. E não vamos nos esquecer, muitas pessoas estão sendo presas e indo para a cadeia, onde não está sendo feito um bom trabalho de controle do vírus. Então é possível que as pessoas não peguem nos protestos, é possível que elas peguem sendo presas e detidas. Acho que esse é um caso em que não há uma única resposta correta.”


Jessica Edwards
Idade: 32
Local: New Braunfels, Texas
Trabalho: Médica da família e presidente do Comitê de Internos e Residentes, uma associação que representa internos, residentes e afins.

Edwards possui sua própria clínica na sua cidadezinha do Texas, que conta com apenas três ou quatro médicos negros, afirmou ela. A urgência do momento a levou para a praça local, onde algumas dezenas de pessoas estão se reunindo.

Seu conselho para os profissionais da saúde que estão pensando em ir a manifestações: “Depende do quão importante isso é para você. Para mim, eu sou a mãe de uma criança negra. Acho que eu não tenho escolha. Acho que a vida dele importa mais para mim, a sua capacidade de ser um cidadão americano sem se preocupar ou temer pela sua vida, ser assassinado pela polícia, importa muito mais para mim. Eu daria a minha vida pelo meu filho, certo? Para mim, acho que o risco é muito maior.

“Olhe sua cidade, veja se você tem aliados, garanta que não fique completamente só por aí... É identificar isso e o melhor momento para você. Se você já está cercado por muitas pessoas doentes no hospital, talvez essa não seja a sua luta, mas você pode ajudar de outras maneiras caso não possa estar fisicamente presente nas manifestações: doando para comitês de ação política, conversando francamente com amigos e entes queridos, apontando as injustiças e preconceitos raciais de amigos e entes queridos.”

“Eu sou a mãe de uma criança negra. Acho que eu não tenho escolha.”

Hannah Janeway
Idade: 39
Local: Los Angeles
Trabalho: Médica de urgência, Universidade da Califórnia de Los Angeles.

Janeway geralmente usa de propósito o jaleco branco nas manifestações: sendo uma médica branca, ela afirma, é capaz de servir como uma barreira de proteção contra a polícia. “Às vezes, eles podem acabar hesitando antes de atirar em nós com balas de borracha”, disse.

Sobre os riscos sanitários das manifestações: “Óbvio que há um aumento no risco, mas creio que estamos em um ponto da história em que você tem de tomar uma decisão quanto ao nível do risco que está disposto a correr. Como uma pessoa cheia de privilégios, e eu sou jovem e saudável, não tive dúvidas. Há todas estas pessoas nas ruas – até mesmo pessoas mais velhas do que eu, que talvez não tenham um plano de saúde – e elas estão lá, arriscando sua própria saúde na tentativa de chamar atenção para este problema que está devastando uma raça inteira, nosso país e também outras minorias. Parece que essas coisas continuam se repetindo, de novo e de novo, e não há justiça. Em algum momento, vai ter algum tipo de grande manifestação e uma grande demonstração de apoio a isso para que haja uma mudança.

“Certamente haverá casos de COVID em decorrência desses eventos. Não tenho dúvida disso. Acho que haverá um pico. E acho que isso é muito, muito lamentável. É triste que um grupo inteiro de pessoas tenha de ir às ruas e continuar protestando, dia após dia, para lutar por algo que não deveria ser um problema atualmente em nosso país. As pessoas não deveriam ter de ir às ruas clamar por uma justiça básica. As pessoas não deveriam ter de ir às ruas pedir para não serem assassinadas à luz do dia por um policial sem motivo algum. Isso não deveria ser algo que ainda tivesse de ser debatido em 2020. Mas é.”

Este post foi traduzido do inglês.

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