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Como Margot Robbie mudou seu destino em Hollywood

Depois de ser rotulada de "a loira mais sexy de todos os tempos", a estrela de "Aves de Rapina" tornou-se uma das produtoras mais promissoras de Hollywood.

Perfis de celebridades sempre têm aquele trecho em que o autor declara o que a estrela em questão representa — seu papel, seu estilo, seu lugar no sistema de Hollywood. Margot Robbie não escapou disso quando estampou a capa da "Vanity Fair" em 2016. "Como Robbie é nova na cena, os repórteres estão tentando enquadrá-la em uma narrativa", escreveu Rich Cohen sobre a atriz australiana. "O trabalho do jornalista de celebridades: rotulá-las, para que não seja apenas como se você as conhecesse, mas como fosse alguém como elas. Mas Robbie é muito nova para ser rotulada."

Além da esquisitice total de usar a frase "muito nova para ser rotulada", Cohen — um criador de perfis das antigas do jornalismo de celebridades — então tenta fazer exatamente o que ele afirma ser impossível. "A América está tão decadente, que temos de ir à Austrália para encontrar uma garota para nos apaixonarmos", escreve ele. E então ele cita o famoso produtor Jerry Weintraub: "'Quando penso em Margot Robbie, uma única palavra me vem à mente', Weintraub me disse. 'Audrey Hepburn'".

Durante décadas, este tipo de linguagem — e a imposição do olhar de um escritor (masculino) sobre a imagem de uma estrela (mulher) em ascensão — tinha sido prática comum, especialmente em veículos de destaque, como a "Vanity Fair". (Veja: Cohen debochando de Jessica Simpson por causa do seu peso em 2009, Chris Jones assistindo a Penélope Cruz comendo um bife na "Esquire", em 2014, ou as descrições inexplicavelmente lascivas de Anthony Lane sobre o corpo de grávida de Scarlett Johansson, na "New Yorker", naquele mesmo ano).

O enquadramento de Margot Robbie por Cohen, como tantos desses perfis, também foi, bem, errado. Mesmo lá em 2016, qualquer um que visse a atuação de Robbie poderia dizer que seu estilo não era o mesmo da Audrey Hepburn. A sua imagem em Hollywood naquele momento estava mais próxima de sua personagem no filme de 2013 de Martin Scorsese, "O Lobo de Wall Street": uma interesseira, uma "pinup" adornada com a vulgaridade do novo rico. Muito mais Lana Turner, ou mesmo Marilyn Monroe, do que Audrey Hepburn.

Tal como os perfis de Cruz e Johansson, o perfil de Robbie foi recebido com desgosto geral. Até a própria Robbie admitiu que estava errado: "Lembro-me de pensar: Foi uma entrevista muito estranha, não sei no que isso vai dar", ela disse a uma agência de notícias australiana. "E depois quando a li, fiquei assim, Certo, o tom é muito estranho — tipo, eu não sei o que ele quer com isso ou qual a jogada dele".

Esse tipo de retaliação, mesmo de uma estrela poderosa, é muito mais raro do que se possa pensar. O complexo industrial de Hollywood é construído sobre uma simbiose entre as estrelas e as publicações que as cobrem: cada uma precisa da outra para sobreviver. A dinâmica de poder desse arranjo mudou repetidamente ao longo do século passado, mas a essência permanece a mesma: a estrela se oferece (seu olhar, sua atitude e as suas histórias sobre sua vida pessoal) como matéria-prima, e a publicação cria uma história sobre quem é essa pessoa, e porque é que o público deve ser atraído a ela.

Desde esse perfil da "Vanity Fair", Robbie tem redefinido os termos do seu acordo com a mídia. Ela tem feito isso gradualmente, sem destaque ou anúncio: ela não anunciou que estava desistindo da maquiagem, como Alicia Keys, nem pediu para ser "excluída dessa narrativa", como Taylor Swift, nem sequer insistiu em controlar todas as entrevistas e cobertura da imprensa, como Beyoncé. Ela simplesmente tirou o foco da atenção do público sobre seu corpo e sobre a imagem pré-fabricada para ela pelo seu papel de estreia em "O Lobo de Wall Street" e o deslocou para o seu talento e o seu trabalho, que é moldado pelos três objetivos que ela e a sua equipe de produção discutem em verificações mensais regulares: qualidade, variedade, longevidade.

Olhando por cima, essas palavras podem soar tão sem sentido quanto as do artigo de Cohen. Mas elas permitiram que Robbie, agora com 29 anos, moldasse seu estrelato de uma forma que historicamente tem sido reservada aos homens. Como vários de seus contemporâneos de Hollywood, ela lançou sua própria produtora, LuckyChap, que lhe permitiu ditar o tom de seus próprios projetos, de "Eu, Tonya" a "Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa", a sequência centrada em Arlequina de "Esquadrão Suicida", recém-lançada. Mais importante ainda, ela está desenvolvendo dezenas de filmes e programas de TV, quase todos escritos e/ou dirigidos por mulheres — alterando gradualmente a paisagem de Hollywood como um todo.

Se você estivesse baseando suas previsões de como a carreira de Robbie poderia se desenrolar na leitura da "Vanity Fair" sobre ela em 2016, tudo isso soaria como uma surpresa. Margot Robbie deixou de ser a próxima loira ingênua substituível para se tornar uma produtora verdadeiramente extraordinária antes de completar 30 anos. Então, como exatamente ela fez isso?

Robbie cresceu em Gold Coast na Austrália, no extremo leste do país. Gold Coast é um lugar que muitos australianos, incluindo a própria Robbie, sempre comparam à Flórida. "Eu não tinha ideia de que morava em um estado que era motivo de piadas até que me mudei para Melbourne (Austrália)", Robbie disse à "Vogue" em 2016.

Robbie também cresceu com três irmãos, criados por uma mãe solteira, fisioterapeuta, e começou a trabalhar por meio período quando era adolescente, o que contribuiu para um monte de conclusões estereotipadas sobre classe social nos perfis sobre Robbie ao longo da última década: A "Net-a-Porter" afirmou que ela era "uma oportunista natural"; a Vogue destacou que sua família tinha apenas um banheiro na casa para cinco pessoas, "o tipo de ambiente que pode escaldar o coração de alguém com ambições". Sua infância "deu-lhe uma visão detalhada sobre as portas que o sucesso financeiro pode abrir", afirmou o "Hollywood Reporter", "assim como sua própria educação ilustrou como a falta de meios pode mantê-las fechadas". Ela trabalhou em bares aos 14 anos, limpou casas e trabalhou na Subway. Ela se orgulhava do seu passado ("tive a melhor educação") mas ficou rapidamente frustrada com a forma como isso a definiu: como uma "garota do interior da Austrália" quase selvagem.

Quando Robbie tinha 16 anos, esteve no elenco de uma microprodução independente, na qual experimentou pela primeira vez o sabor de atuar — algo que ela, até aquele momento, nunca havia considerado como um potencial futuro. Quando se formou no ensino médio, mudou-se para Melbourne, onde esteve no elenco da novela noturna "Neighbours", que, juntamente com "Home and Away", serviu de trampolim para quase todos os grandes atores australianos. Os espetáculos permanecem no ar como meios confiáveis, testados pelo tempo, de satisfazer as exigências de programas de TV produzidos na Austrália, funcionam como uma programação alternativa aos noticiários noturnos e representam algo diferente das novelas americanas: mais como se "The Young and the Restless" se juntasse a "O.C.: Um Estranho no Paraíso" e nunca acabasse.

A indústria australiana de cinema e televisão é pequena, por isso muitos jovens atores australianos que começam nas novelas se mudam para Hollywood para tentar se tornar o próximo Chris Hemsworth. Alguns desses atores acabam labutando em uma interminável obscuridade, mas, depois que Robbie passou um ano refinando seu sotaque americano e se mudou para Los Angeles (EUA), foi prontamente escalada para "Pan Am" (2011–2012), uma imitação de "Mad Men: Inventando A Verdade" com comissários de bordo. A série foi cancelada antes do final de sua primeira temporada, mas Robbie conseguiu um pequeno papel no drama de Rachel McAdams "Questão de Tempo" (2013), e submeteu uma fita de teste para um papel descrito, no roteiro, como " a loira mais sexy de todos os tempos".

Esse papel era para "O Lobo de Wall Street", estrelado por Leonardo DiCaprio, como um cafajeste do mercado financeiro dos anos 80. A "loira mais sexy de todos os tempos" era a sua esposa-troféu: uma beleza vulgar, com um sotaque pesado do Brooklyn. De acordo com a "W Magazine", "quase todas as atrizes na casa dos 20 anos tentaram o papel", mas Scorsese há muito tempo tem a tendência de escalar mulheres desconhecidas para contracenar com homens muito famosos. Quando Robbie voou para Nova York (EUA) para uma teste presencial, ela apareceu de jeans e botas. Mas, como Robbie recorda, o diretor de elenco lhe disse: "Desça a rua e compre o vestido mais apertado e os saltos mais altos que puder encontrar. Essa é a Naomi".

E essa, pelo menos para o público americano na esteira de "O Lobo", era também Robbie. Ela "alojou-se permanentemente na libido coletiva masculina", segundo um perfil da "Vogue" de 2016, como "alguma nova geração de super predadoras altamente exigentes". O papel "a definiu", como Cohen colocou na "Vanity Fair", embora, na época, ela mal tenha merecido um comentário na grande maioria das críticas do filme. Robbie "não é ruim", Wesley Morris escreveu no "Grantland". "Ela está comprometida com o papel. Mas é como assistir a alguém mirar na Lorraine Bracco de "Os Bons Companheiros" e na Sharon Stone de "Cassino" mas aterrissar em "The Real Housewives".

A maioria das pessoas viu a "verdadeira" Robbie como se sobrepondo aos seus personagens: uma criança da classe trabalhadora que usou sua beleza para ajudá-la a ter sucesso.

Foi apenas em retrospectiva que o talento real de Robbie na sua performance como Naomi se tornou evidente. "A personagem dela poderia ter sido um clichê ambulante", Lynn Hirshberg escreveu na "W Magazine" em 2014, "mas Robbie deu a Naomi bordas afiadas sob o exterior liso e envernizado; ela não só tinha uma aparência fantástica, como também era astuta e autoprotetora". Em 2016, Jared Leto, que coestrelou "Esquadrão Suicida" com Robbie, explicou que ela "assumiu um papel com o qual outras pessoas teriam tido muita dificuldade e o elevou a algo espetacular". Escrevendo para a "Vogue" em 2016, Jonathan Van Meter admitiu que ele tinha "subconscientemente apostado na queda dela", da mesma forma que alguém aposta na queda de uma ação.

Mas para chegar a esse ponto de reconhecimento, Robbie tentou se afastar da performance "definidora" que havia sido dada a ela. Depois de "O Lobo", ela foi inundada com ofertas para papéis ao estilo Naomi. "Eu sabia que precisava ajustar a percepção que as pessoas tinham de mim naquele momento", ela relembrou mais tarde, "porque, de outra forma, só iriam me dar esse tipo de coisa". Ela inicialmente perdeu o papel principal de uma "garota morena da fazenda" em "Os Últimos na Terra" (2015), um suspense pós-apocalíptico, para Amanda Seyfried, mas quando Seyfried optou por sair, Robbie convenceu os financiadores do filme de que ela era muito mais parecida com a menina da fazenda do que com a esposa promíscua de "O Lobo". O filme fracassou com uma bilheteira muito limitada, mas a essa altura Robbie já tinha sido escalada como parceira/par romântico de Will Smith em "Golpe Duplo" (2015), um filme meia-boca que quase custou o carisma de seus atores.

"Golpe Duplo" não foi uma repetição do personagem de Robbie em "O Lobo", mas foi mais um final alternativo para ela: Jess Barnett cresceu em lares adotivos, tem sotaque, é uma vigarista, mas também é inimaginavelmente sexy — mais uma vez, de uma forma um pouco grosseira. Em "O Lobo", sua falta de sofisticação foi compensada pelo peso de seu sotaque, sua atração geral pelo personagem de DiCaprio e seu corpo, que era bronzeado e untado nas cenas de nudez para se parecer com o de uma Coelhinha da "Playboy". Em "Golpe Duplo", Robbie consegue interpretar com um pouco mais de refinamento na segunda metade do filme, mas o público sabe que é fingimento, um golpe. E a maioria das pessoas viu a "verdadeira" Robbie como se sobrepondo aos seus personagens: uma criança da classe trabalhadora que usou sua beleza para ajudá-la a ter sucesso.

O que ajuda a explicar o foco, em perfis e entrevistas, na própria origem de “oportunista natural” de Robbie, em Gold Cost (Austrália). Para os australianos, a combinação de sua criação e sotaque a codificou como uma variedade um pouco mais refinada de "bogan" — gíria para o que é comumente conhecido, nos Estados Unidos, como "lixo branco".

Ela não é Rebel Wilson, cujo humor, petulância para com a imprensa e corpo "indisciplinado" fazem dela a "bogan"nova-rica por excelência. Mas ela também não é Cate Blanchett, cujo afeto é muito mais britânico do que australiano, e que usou sua fama cinematográfica para financiar uma companhia teatral em Sydney (Austrália).

Em entrevistas, Robbie é frequentemente convidada para beber, ou falar sobre bebida, ou evocar a bebida australiana; ela faz em si mesma e em outros "tatuagens vagabundas"; ela anda com os trabalhadores nos sets de filmagem (dublês, pessoal de suporte e diretores-assistentes). "Margot não se reúne com as outras celebridades”, sua amiga de infância disse ao “Hollywood Reporter” em 2018, "porque, para ser honesta, acho que ela nem se vê como tal".

Robbie poderia dar mais classe, como ela fez, brevemente, em ”Golpe Duplo”, novamente como correspondente de guerra em ”Uma Repórter em Apuros” (2017), e como Jane, uma legítima moça britânica rica do século 19, em ”A Lenda de Tarzan” (2016). Mas também essa personagem, na verdade, estava apenas "se misturando" como parte da alta sociedade. Como seu marido (uh, Tarzan), ela passou anos de formação no Congo e se sentia mais em casa na selva (o que explica porque ela passa uma parte significativa do filme molhada e coberta de lama). Jane também é americana, o que na Grã-Bretanha do século 19 era apenas mais uma forma de dizer "dinheiro novo".

Em ”Esquadrão Suicida” (2016), as duas faces da imagem de Robbie — a sensualidade e a agressividade — foram misturadas para o papel da Arlequina. Segundo o cânone da DC Comics, Arlequina era uma psicóloga com doutorado que, ao conhecer o Coringa num hospital psiquiátrico, apaixona-se, experimenta uma espécie de ruptura mental e torna-se sua companheira. Poderia ter sido um papel semelhante ao de Michelle Pfeiffer como Mulher Gato, em ”Batman: O Retorno” — mas, quando os escritores de ”Batman: A Série Animada” escreveram pela primeira vez o papel de Arlequina no início dos anos 90, queriam uma atriz específica, Arleen Sorkin, para interpretá-la, e para completar um sotaque do Bensonhurst (no Brooklyn). O guarda-roupa de Arlequina em ”Esquadrão Suicida” (rabo-de-cavalo e shortinho bem atrevido) ajudou a transformá-la num objeto de adulação dos fãs e, juntamente com o sotaque, reafirmou a compreensão de qual tipo de sensualidade Robbie deveria incorporar.

"Eu não queria pegar outro roteiro em que fosse a esposa ou a namorada, apenas um catalisador para um enredo masculino" 

Na época, Robbie admitiu sentir-se ambivalente a respeito do personagem: "quando li pela primeira vez, pensei, não tenho nada em comum com ela", ela contou à "Vogue" em 2016. "Eu a odiei. Era realmente uma personagem muito difícil de entender." Ela explicou ao "New York Times" que a Arlequina gravita em torno de suas escolhas de figurino "pois elas são provocantes e divertidas", não porque "ela quisesse que os caras olhassem para sua bunda", mas que "como Margot, não, eu não gosto de vestir isso". Seu desempenho foi elogiado e aclamado pela crítica, mas o filme, assim como ”Golpe Duplo”, "Uma Repórter em Apuros” e ”A Lenda de Tarzan”, foi um desastre.

A esta altura, Robbie estava em Hollywood por cinco anos, desenvolveu suficiente influência e ganhou dinheiro o bastante não apenas para mudar o tipo dos papéis que aceitava, mas para começar a criar o tipo de papéis que desejava para si mesma. (Esse tipo de influência, deve ser observado, é muito mais difícil de ser conquistado tão facilmente por atrizes não brancas.) De volta em 2014, ela e seus então colegas (a amiga de infância Sophia Kerr e os assistentes de direção Josey McNamara e Tom Ackerley, este último que mais tarde se tornaria seu marido) fundaram a "LuckyChap Entertainment". Como Robbie disse ao "Harper’s Bazaar", o motivo foi simples: "Eu não queria pegar outro roteiro em que fosse a esposa ou a namorada, apenas um catalisador para um enredo masculino".

Produzir também foi uma maneira para Robbie se livrar dos imperativos patriarcais de Hollywood, cujos padrões podem tê-la ajudado a se elevar no início, mas que tinham se tornado claustrofóbicos rapidamente. "Isso é uma coisa muito inteligente para ela fazer", explicou em 2016 Tina Fey, que tem produzido seu próprio trabalho desde sua saída da SNL. "Pois, caso contrário, como uma peça do elenco, ela sempre terá alguém dizendo, 'você está incrível, mas gostaríamos que perdesse peso'. Já aos 25, ela diz, 'Quer saber? Vou acabar com essa merda e ficar à frente de minha carreira'."

O primeiro passo à frente: um roteiro baseado na vida da patinadora artística americana Tonya Harding. Quando Robbie leu o roteiro pela primeira vez, ela não tinha ideia que Harding era uma pessoa real: ela era muito nova para ter visto a contusão de Nancy Kerrigan nas Olimpíadas de 94 e o caos que se seguiu na mídia. Mas Robbie se viu compelida pela história que, por meio de uma mistura de perspectivas, flashbacks e falsos documentários, tentou complicar a narrativa da mídia sobre Tonya Harding. Tonya muito provavelmente tinha conhecimento da trama para prejudicar sua concorrente, mas era também uma vítima de abuso físico e psicológico e era o ponto principal de ideias nocivas a respeito de classe e feminilidade. Em vez de interpretar uma personagem coadjuvante, cujas características definidas eram "sensualidade" e vulgaridade implícitas, ela seria a personagem principal em um filme que questionou as duas.

O papel exigiu que Robbie "ficasse feia": usar perucas desagradáveis, roupas igualmente desagradáveis dos anos 80 e 90 e usar preenchimento nas pernas para se aproximar do corpo mais musculoso de Harding. E, pelo menos no início, essa foi a primeira discussão sobre desempenho, destacando a "coragem" necessária para se fazer parecer, bem, não como Margot Robbie. Mas o desempenho superou em muito a transformação física. "Robbie é capaz de reconhecer que a natureza dura de Tonya está enraizada num lugar de dor, que é aparente em todo sorriso hesitante e graciosidade penetrante", escreveu Angelica Jade Bastién em uma apreciação na "Vulture". "Ela se move como um animal ferido, operando melhor durante flashes de violência, verbal ou não."

"Eu, Tonya" rendeu para Robbie as indicações ao Globo de Ouro e ao Oscar, e Allison Janney, que interpreta a mãe de Harding, ganhou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. A revista "Time" considerou Robbie uma das "100 pessoas mais influentes" de 2017 e recrutou Scorsese para escrever a crítica sobre ela. Ele comparou a "extrema exuberância" dela a Carole Lombard e "sua tenacidade firme e resistente" a Joan Crawford, mas declarou ser "como nenhuma outra, é assim que Margot Robbie é".

O filme e a discussão que ele iniciou foram um ponto central na carreira de Robbie e em sua habilidade de tomar o controle de seus próprios papéis. Desde "Eu, Tonya", a LuckyChap produziu alguns fracassos: "Terminal" (2018) e "Dreamland", que ainda está aguardando distribuição.

Mas a LuckyChap também está por detrás de um amplo quadro de novos e promissores projetos: "Aves de Rapina", a série de Kat Denning, "Dollface", que vai ao ar na Hulu e foi escrita e produzida por Jordan Weiss, o filme de vingança contra um estupro "Promising Young Woman", estrelado por Carey Mulligan e dirigido por Emerald Fennell, Greta Gerwig assume "Barbie" (definido para ter Robbie como estrela), uma adaptação de "My Year of Rest and Relaxation", de Ottessa Moshfegh, e uma adaptação da Netflix de "Maid", de Stephanie Land, além de outros vários projetos em estágios iniciais de desenvolvimento. Robbie também fez parceria com a roteirista Christina Hodson para criar o programa "Lucky Exports Pitch", em que seis roteiristas mulheres, quatro delas negras, desenvolveram propostas que agora estão sendo produzidas por Hodson e LuckyChap.

Desde o início, a LuckyChap produziu roteiros com mulheres poderosas como ponto central. Mas, depois das revelações de #MeToo, Robbie e sua equipe fizeram um esforço concentrado de colocar as mulheres no poder também por detrás das câmeras. "Aves de Rapina" foi escrito por uma mulher (Hodson) e dirigido por uma mulher (Cathy Yan), as quatro personagens centrais são mulheres que, em vez de se colocarem umas contra as outras, são só... amigas? E o Coringa nem é visto. Você pode perceber a mudança no controle até na forma como Arlequina está vestida: as calças sexies se foram, substituídas por um blazer, uma sutiã esportivo e calções laranja. "É isso o que acontece quando se tem uma produtora, diretora e escritora mulheres", disse a designer de figurino de "Aves de Rapina", Erin Benach, à "Vogue" em 2019. "Sim, é certamente uma visão menos masculina", Margot Robbie acrescentou.

O contraste é ainda mais acentuado quando você olha para as produções que não são da LuckyChap, em que Robbie apareceu depois de "Eu, Tonya": houve "Maria da Escócia", uma história de duas monarcas históricas que de alguma maneira se sentem incapazes e sem brilho e "Era Uma Vez em... Hollywood", em que Robbie interpreta uma Sharon Tate alegre e quase silenciosa no contexto de um roteiro classicamente masculino, de Tarantino. Ela foi indicada para Melhor Atriz Coadjuvante por seu papel em "O Escândalo", a tomada ideologicamente confusa sobre os escândalos de assédio sexual na Fox News. Seu desempenho é impressionante, mas é preciso se perguntar se uma história diferente teria emergido caso o filme — sobre a reação das mulheres à sua própria objetificação, dentro e fora da tela — tivesse sido escrito e dirigido por uma mulher, em vez de apenas produzido por uma (na forma da empresa de produção de Charlize Theron).

Com essa mudança na produção, algo notável aconteceu fora do set: a cobertura de imprensa sobre Robbie começou a focar quase inteiramente em seu papel como uma produtora. Um perfil da "Vogue", de 2019, antes do lançamento de "Era Uma Vez em... Hollywood", deixa de fora os tópicos comuns de perfis de celebridade (sua vida amorosa, planos sobre filhos, rotina de beleza e relacionamento com as mídias sociais) em favor de seu talento para a produção. O vídeo "73 Questions", que acompanha o perfil, não ocorre em sua casa, mas em uma cabana estilo casa de fazenda que abriga a LuckyChap. Em 2018, a "Variety" indicou Robbie como uma de suas 10 "produtoras para se assistir"; a história de capa da revista de janeiro de 2020 declara que esse é o "seu momento" e a rotula como uma "atriz e produtora". Ela tem um Instagram, mas é profundamente sem graça. Quando Robbie se casou com Tom Ackerley, a única foto que liberou foi um "close" de si mesma mostrando o dedo para a câmera. Sua vida pessoal, ela sugere, não tem nada a ver com o assunto.

O ponto é o trabalho. "A fama é uma coisa muito estranha", ela admitiu para Charlize Theron em janeiro. "Tem um jeito de vir muito rápido. E me senti livre por ela. Eu estava procurando maneiras diferentes de tomar o controle da minha vida, de chegar onde queria estar. Como uma produtora, você consegue ter participação em tudo. E não apenas no set, mas nos anos que levam até esse ponto. Gosto de exercitar essa parte da sabedoria de negócios na minha cabeça, até fazendo a porcaria dos incentivos fiscais." As histórias sobre ela que acabaram nos perfis não são sobre uma coisinha fofa que fez com os amigos, mas sobre trabalhar por 13 horas com a escritora de "Aves de Rapina". "Ela é impressionante nesse sentido", Hodson contou à Variety. "Eu realmente não conheço nenhuma atriz como ela que faria isso."

Mesmo a maneira como Robbie tem sido fotografada ultimamente reflete a mudança. Lá em 2016, ela estava vestindo biquíni nas capas da "Vogue" e "Vanity Fair" para promover "A Lenda de Tarzan". Nos últimos dois anos, suas capas da "Vogue" e "Vanity Fair" foram fotos de rosto; na capa de "W", ela, Theron e Nicole Kidman usam terninhos. É claro, não há nada verdadeiramente errado em vestir um biquíni na capa de uma revista, mas a mudança destaca que não apenas Robbie está pensando em si mesma de maneira diferente, mas também a imprensa e, por extensão, o público. "Quero que as pessoas me vejam como uma atriz", ela disse à "Net-a-Porter" em 2018. "Não sou uma modelo."

Uma empresa de produção centralizada em uma estrela não é nada novo: em 1919, a atriz de cinema mudo Mary Pickford, juntamente com seu então marido Douglas Fairbanks, Charlie Chaplin e o diretor D.W. Griffith fundaram a United Artists como uma maneira de tomar o controle (e os lucros) dos estúdios, que vinham explorando o estrelato deles por anos. Em 1950, estrelas clássicas de Hollywood, recentemente liberadas de seus contratos com os estúdios, tentaram achar um jeito de diminuir seus impostos de renda.

Então, como agora, a "incorporação própria", também era uma forma de tentar alavancar algum controle (e aumentar a porcentagem de lucro) sobre um projeto, porém esse tipo de controle raramente estava disponível para as mulheres. As empresas de produção da época dos anos 50 também eram quase todas limitadas aos projetos apresentando a estrela, e raramente incluindo quaisquer responsabilidades de produção reais. Lucille Ball e Mary Tyler Moore produziram seus próprios programas (e, no caso de Moore, muitos outros), mas permaneceram relegadas ao que era então o entretenimento retrógrado da televisão. Na década de 1990 e início dos anos 2000, estrelas já poderosas se tornaram ainda mais poderosas por meio das produtoras fundadas com um parceiro de produção (Tom Cruise e Paula Wagner), um diretor/colaborador (George Clooney e Steven Soderbergh) ou um cônjuge (Brad Pitt e Jennifer Aniston).

Era uma maneira de ganhar (mais) dinheiro, mas também de implementar o que era frequentemente descrito como a filosofia "um pra eles, um pra nós": os filmes comerciais, de grande sucesso ajudariam a financiar os projetos mais estranhos, mais pessoais e menos comerciais. Para a Section Eight, de Clooney e Soderbergh, essa filosofia por fim se esgotou. Para a Plan B de Brad Pitt, que ele assumiu depois de se separar de Aniston, tornou-se uma maneira de produzir filmes, frequentemente de cineastas sub-representados, que talvez não consigam o financiamento, atenção ou distribuição tradicional. Mais famosa, a Plan B produziu "12 Anos de Escravidão", mas esteve também por detrás de "Selma: Uma Luta pela Igualdade", "Moonlight: Sob a Luz do Luar", ”Okja” e "Se a Rua Beale Falasse".

Até recentemente, no entanto, o papel de dirigir uma produtora imensa, experimental e poderosa, com o campo próprio de direção, tem sido amplamente reservado para estrelas masculinas brancas. Depois do enorme sucesso de "O Pecado Mora ao Lado", Marilyn Monroe, cansada de papéis horríveis e estereotipados, se "autoincorporou" como Marilyn Monroe Productions. Ela negociou um novo contrato com a Fox, com a condição de se tornar uma produtora em futuros filmes e a capacidade de rejeitar roteiros e diretores. Mas ela acabou fazendo apenas dois filmes ("Nunca fui Santa" e "O Príncipe Encantado") antes de sua morte em 1962.

"Gosto de exercitar essa parte da sabedoria de negócios na minha cabeça, até fazendo a porcaria dos incentivos fiscais."

Algumas estrelas dos anos 1990 e 2000 — incluindo Sandra Bullock, Julia Roberts e Drew Barrymore — têm empresas de produção, mas o seu alcance tem sido em grande parte limitado quase inteiramente a filmes em que elas próprias estrelaram. Mais recentemente, Reese Witherspoon, Charlize Theron, Kerry Washington e Viola Davis expandiram seus raios de ação na produção de filmes para incluir séries para a internet, contratos com estúdios e emissoras, e séries para Amazon, Hulu e Netflix — algumas com elas nos papéis de protagonistas, mas muitas sem elas. Robbie é significativamente mais jovem do que qualquer uma dessas estrelas, mas os objetivos delas são os mesmos: elas não estão apenas ajudando a produzir seus projetos de vaidade — elas estão repensando como a produção de Hollywood poderia ser.

No ano passado, Nicole Kidman, coestrela de Robbie em "O Escândalo", foi questionada sobre as diferenças entre ela e Robbie. Ambas são australianas, ambas com imagens codificadas — de formas ligeiramente diferentes — como "bogan" e ambas cada vez mais vistas como atrizes brilhantes. Mas o primeiro terço da carreira de Kidman foi profundamente ofuscado pela sua relação com Tom Cruise, e sua vida pessoal era incluída sempre que se falava sobre ela. Como escrevi em 2017, em meio à sua performance espetacular em "Big Little Lies", ela tem sido rotulada como uma "revelação" com tanta frequência que se tem que perguntar o que está fazendo as pessoas se esquecerem, ano após ano, como ela tem consistentemente atuado bem por décadas.

Aos 52 anos, Kidman teve que lidar com muita cobertura de tabloides e muitos papéis mal concebidos para que o público finalmente admitisse a sua grandeza. Robbie abriu a LuckyChap aos 24 anos, e produziu um filme que lhe valeu uma indicação ao Oscar aos 26 anos. Sua claquete está cheia de projetos — para ela e para outros — que são diferentes e desafiadores, e estão trazendo outras pessoas para posições de poder das quais mulheres como ela e Kidman geralmente têm sido excluídas. "Eu não tive a oportunidade de produzir minhas próprias coisas ou controlar meu destino dessa maneira", Kidman explicou. "Então isso é definitivamente diferente."

Ser sexy não torna você interessante. Nem, necessariamente, a capacidade de atuação. "Qualidade, variedade e longevidade" podem fazer de alguém uma lenda de Hollywood, mas há dúzias delas. O que o Robbie e as outras estrelas/produtoras como ela estão fazendo é mais profundo que isso. Em 2014, Robbie posou para o renomado fotógrafo de arte Bill Viola. "Margot parece uma sereia da mitologia grega", ele disse para a "W Magazine". "Eu a vejo como uma deusa sedutora que pode encantar ou destruir."

Foi um comentário típico sobre Robbie e sua imagem, pelo menos naquela época — em linha com o rótulo de "viciante", que ela ganhou naquele mesmo ano do "Los Angeles Times", e a preocupação de Jonathan Van Meter, na "Vogue", de que ela poderia ser uma "superpredadora altamente exigente". Essas descrições evocam o mesmo medo: de que os homens sejam seduzidos pela beleza e depois destruídos por ela. Margot Robbie e as outras produtoras/estrelas que estão mudando o cenário de Hollywood não vão destruir os homens. Mas elas podem destruir, ou pelo menos refazer radicalmente, o sistema. E isso, para as mulheres que trabalham em Hollywood e para o público por toda parte, é a promessa de algo como um deleite real e verdadeiro. ●

Este post foi traduzido do inglês.

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