Em Hong Kong, a vigilância contra os manifestantes pode ir muito além do reconhecimento facial

    "Não sabemos o que este governo pode fazer. Não sabemos o que estes policiais podem fazer."

    HONG KONG — Sob as luzes de neon dos shoppings e restaurantes de Causeway Bay, um homem de capacete amarelo e camisa preta pressionava seu joelho nas costas de um manifestante pego pela polícia. Com seu rosto no chão sobre sua própria poça de sangue, o manifestante implorava por misericórdia.

    “Até meu dente da frente está quebrado. Me desculpe”, ele dizia, seu corpo se debatendo enquanto chorava.

    O capacete e as roupas pretas tornaram-se o uniforme padrão de manifestantes pró-democracia em Hong Kong, mas o homem que ajudou a polícia na prisão no domingo passado fazia parte de uma operação secreta, disse o departamento de polícia em uma entrevista para a imprensa. Foi a primeira vez que as autoridades confirmaram publicamente o uso de policiais disfarçados. A diretora do executivo de Hong Kong, Carrie Lam, disse que a operação visava "os principais manifestantes extremistas".

    Desde que os protestos começaram em junho, tendo como pano de fundo um polêmico projeto de lei de extradição, os manifestantes têm rotineiramente coberto seus rostos, bloqueado ou quebrado câmeras de circuito fechado e se comunicado por meio de aplicativos criptografados para esconder suas identidades. Mas com os protestos crescendo em um movimento de resistência mais amplo, com a polícia expandindo suas táticas e quase 750 pessoas presas, os manifestantes estão cada vez mais paranoicos a respeito de como as autoridades estão fazendo para identificá-los — e em quem se pode confiar.

    Antes de Hong Kong se tornar um território da China, ele esteve sob domínio britânico por 150 anos. E quando o Reino Unido devolveu Hong Kong à China em 1997, Pequim prometeu que Hong Kong poderia manter suas próprias leis por 50 anos — sob o que ficou conhecido como "um país, dois sistemas". Mas a China tem lentamente invadido as liberdades de Hong Kong — mais especificamente tirando a habilidade de escolher seus próprios líderes políticos — e o projeto de lei de extradição passou dos limites, dando início ao verão do caos. Subjacente a todos os protestos de rua, à recente ocupação do aeroporto e às nuvens de gás lacrimogêneo, está o medo de que Hong Kong seja simplesmente absorvido por seu vizinho ao norte.

    "Nós só queremos o que nos foi prometido", disse um manifestante a um viajante frustrado que perdeu seu voo por causa da ocupação do aeroporto na segunda-feira.

    Mas isso também significa lidar com um dos países autoritários mais poderosos do mundo — um país cujos cidadãos são fortemente vigiados, muitas vezes com o uso de tecnologia de reconhecimento facial. Inicialmente, a China respondeu censurando notícias no continente, mas, desde então, sua retórica tem se tornado cada vez mais agressiva. Na segunda-feira, a China comparou a crescente violência dos protestos a "sinais de crescimento do terrorismo".

    Entre os medos mais óbvios dos manifestantes está uma preocupação em como eles podem ser rastreados conforme as prisões continuam a se acumularem. Para se ter uma melhor noção disso, o BuzzFeed News analisou centenas de páginas de documentos publicadas em uma petição de registros públicos do Departamento de Logística do Governo. Esses registros mostraram que há pelo menos três áreas onde o governo de Hong Kong já emprega algum tipo de tecnologia de reconhecimento facial. Atualmente, essas áreas estão nos seus documentos de identidade de Hong Kong, nos seus passaportes e na entrada da fronteira da recém-inaugurada ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau — a maior travessia marítima do mundo.

    Os registros não são aprofundados — o Departamento de Logística processa apenas qualquer contrato com valor superior a aproximadamente US$ 1,2 milhão. Contratos menores são processados em seus respectivos departamentos. A Força Policial de Hong Kong negou uma solicitação e um apelo do BuzzFeed News para divulgar qualquer documento sobre o uso da tecnologia de reconhecimento facial. E ainda há outras maneiras de rastrear e identificar pessoas além do uso dessa tecnologia em particular. Ainda assim, os documentos esclarecem de alguma forma quais recursos o governo tem agora, enquanto a desconfiança se aprofunda entre Hong Kong e seus dissidentes.

    Tanto os passaportes quanto os documentos de identidade de Hong Kong dos residentes usam chips que armazenam dados biométricos. Em setembro de 2016, o Departamento de Imigração pediu que empresas ajudassem a substituir os documentos de identidade de Hong Kong por um documento de identidade mais moderno. Em novembro passado, o governo começou a emitir os novos documentos, que têm um chip biométrico que armazena impressões digitais e foto de um morador. A cidade ainda está em processo de substituição dos documentos antigos dos moradores, então nem todos têm um ainda.

    As fotos tiradas para os documentos de identidade usam o reconhecimento facial ao vivo para confirmar a identidade de uma pessoa e, em seguida, são armazenadas em um banco de dados pelo Departamento de Imigração. As fotos devem ter resolução alta o suficiente para incluir recursos de identificação, como pintas e cicatrizes, a fim de fornecer um nível sofisticado de capacidade de reconhecimento facial, de acordo com uma descrição dos requisitos da empresa contratada. A tecnologia também deve “suportar reconhecimento facial de diferentes fontes, incluindo câmera e vídeo ao vivo”.

    A Safran Identity & Security, uma empresa francesa, ganhou um contrato de US$ 41 milhões para fornecer os documentos de identidade em abril de 2017, de acordo com um anúncio de concessão. Depois de uma consolidação no mesmo ano, a Safran agora faz parte da Idemia, que tem escritórios em todo o mundo.

    O Departamento de Estado dos EUA também tem contrato com a Idemia para tecnologia de reconhecimento facial para processar passaportes americanos. Nada disso é incomum — muitos países estão usando cada vez mais documentos de identidade nacionais similares que armazenam dados biométricos.

    Mas esses documentos também têm gerado preocupações com a privacidade, pois os dados podem ser usados para rastrear cidadãos, especialmente se esses dados estiverem centralizados dentro do governo. Quase uma década atrás, o Reino Unido introduziu um documento de identidade nacional, mas depois decidiu descartá-lo, e destruiu o banco de dados em 2011. O Electronic Freedom Frontier, um grupo de defesa da privacidade de dados, é contra a integração de dados biométricos em documentos de identidade nacionais.

    Em Hong Kong, há proteções legislativas para o uso de dados pessoais, incluindo o que é mantido pelos bancos de dados do Departamento de Imigração. "A exigência mínima da lei é não coletar dados excessivos", disse Anita Lam, uma advogada de Hong Kong que trabalha em casos de privacidade de dados.

    Mas, uma vez que os dados são coletados, a legislação permite algumas isenções da proteção desses dados para impedir ou detectar atividades criminosas. Alguns casos criminais “poderiam justificar o uso de meios mais intrusivos”, acrescentou Anita Lam — como, potencialmente, o acesso aos dados.

    Muitas das centenas de prisões ocorreram nos confrontos de rua rotineiros no final deste verão. Mas a polícia também prendeu o administrador de um grupo do Telegram, o aplicativo que os manifestantes têm usado para compartilhar informações, e recentemente prendeu um estudante carregando 10 apontadores laser por suspeita de posse de armas ofensivas (ele foi liberado mais tarde).

    Essa ação enfureceu os manifestantes, que realizaram um protesto em resposta, apontando lasers em massa no Museu Espacial de Hong Kong para contestar a ideia de que as canetas laser poderiam ser consideradas uma arma de verdade.

    Nas noites em que a polícia e os manifestantes se enfrentam, é comum ver a rua iluminar-se com as canetas laser verdes e azuis dos manifestantes, junto com os raios brancos e brilhantes das luzes ofuscantes da polícia de Hong Kong, passando de um lado para o outro.

    Um tuíte recente se tornou viral sobre como os manifestantes estão “usando lasers para evitar câmeras de reconhecimento facial; uma guerra cibernética contra a inteligência artificial chinesa”, e foi mostrado pelos canais de mídia. Mas, embora os lasers possam danificar o chip em uma câmera, é mais provável que eles apenas obstruam a visualização e tornem difícil para a polícia obter fotos claras dos manifestantes, de acordo com Sam Samuels, um ex-policial do Reino Unido.

    A polícia tradicionalmente tem equipes de coleta de evidências que poderiam estar trabalhando para tirar fotos em alta resolução dos manifestantes, a fim de identificá-los, disse Samuels. Policiais disfarçados provavelmente também estão tirando fotos e filmando os manifestantes. E, se houver um banco de dados com fotos vinculadas a um documento de identidade nacional, “assim que obtêm uma boa foto facial, eles podem simplesmente jogá-la no banco de dados e encontrá-lo facilmente”, ele disse.

    Embora isso seja legal, como explicou a advogada de privacidade de dados, Lam, até agora Hong Kong diz que não está fazendo isso. Em resposta às perguntas sobre se o Departamento de Imigração tinha compartilhado dados com a polícia de Hong Kong, o departamento disse que “emprega controle de acesso rigoroso para proteger a confidencialidade e a integridade dos dados. Somente pessoal autorizado desse departamento pode ter acesso aos dados, e não há compartilhamento do banco de dados entre os departamentos do governo (incluindo a Força Policial de Hong Kong)”.

    Em junho, o governo também disse que nenhum de seus departamentos, incluindo a força policial, tinha usado ou testado o reconhecimento facial automatizado como parte de seus sistemas de circuito fechado de TV. Mas uma solicitação de registros mais específica à Força Policial de Hong Kong para obter informações sobre qualquer uso da tecnologia de reconhecimento facial foi negada por razões de segurança e pela alegação de que isso atrapalharia as operações atuais.

    Fotos de alta resolução, operações secretas e dados de telefone também podem ser usados para identificar e rastrear alguém. "Se eu fosse um manifestante, usaria algo para esconder meu rosto e não levaria meu celular — e então você se tornaria anônimo", disse Samuels.

    Os manifestantes têm tomado precauções para esconder seus rostos desde o início das manifestações. Antes de invadirem o legislativo da cidade em julho, os manifestantes quebraram as câmeras do lado de fora das portas da frente do prédio do governo. Na rua naquela tarde, outro manifestante segurava um cartaz de papelão com as palavras “Sem Fotos” escritas em inglês e cantonês.

    Regular cheers here for ppl not to take photos to protect identities as crowds keep getting bigger #AntiELAB #HongKongProtests #HongKongextraditionbill

    E, no sistema de metrô da cidade, os manifestantes muitas vezes deixam bilhetes de papel de viagem única colados nos quiosques para que possam eles se locomover sem passar seus cartões Octopus — que podem ser usados para pagar virtualmente qualquer coisa em Hong Kong, mas que também armazenam dados pessoais e de uso.

    "Estamos todos nos protegendo e escondendo nossas identidades", disse Bun Chen, um manifestante que estava em Causeway Bay na noite de domingo, usando o uniforme padrão dos manifestantes — todo preto e com uma máscara.

    "Não sabemos o que este governo pode fazer. Não sabemos o que estes policiais podem fazer", disse ele.

    À medida que a retórica em Hong Kong se torna mais violenta e bate com mais força, são levantadas questões sobre quais medidas adicionais o governo tomará para manter a lei e a ordem na cidade. No início desta semana, a chefe de Governo de Hong Kong, Carrie Lam, alertou que os manifestantes estavam "empurrando a cidade para um abismo".

    Ela também disse à mídia que não podia determinar como a polícia deveria lidar com os manifestantes — basicamente adotando uma abordagem de não intervenção. A polícia de Hong Kong é "o pilar do Estado de direito", disse ela.

    Mas muito tempo depois que os protestos pró-democracia anteriores — conhecidos como o Movimento dos Guarda-Chuvas — terminaram em 2014, a polícia continuou a atacar seus líderes com prisões. Desta vez, o movimento pró-democracia tem permanecido em grande parte sem liderança, dando ao governo menos pessoas específicas nas quais se concentrar. Mas, conforme a polícia emprega novas táticas, a paranoia sobre em quem se pode confiar também tem gerado sua própria reação.

    No dia em que a polícia confirmou a operação em Causeway Bay, manifestantes que ocupavam o Aeroporto Internacional de Hong Kong agrediram e mantiveram como reféns duas pessoas que eles acusaram de terem se infiltrado em seu movimento. Um dos homens eles acreditavam ser um policial da cidade chinesa de Shenzhen, e o outro foi confirmado como sendo repórter do Global Times, um jornal apoiado pelo governo na China.

    Os dois foram retirados mais tarde em uma ambulância, mas somente depois que a polícia invadiu o aeroporto em uma operação de resgate que levou a violentos confrontos na entrada do terminal.

    “Lamentamos profundamente o que aconteceu ontem. Estávamos desesperados, e tomamos decisões ruins. Por favor, aceitem nossas desculpas”, estava escrito em uma placa no aeroporto na quarta-feira.

    Este post foi traduzido do inglês.

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