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Como meu irmão sobreviveu ao mais mortal incêndio da Califórnia

"Meu irmão vive em Paradise, Califórnia (EUA). Durante cinco horas, no dia 8 de novembro, enquanto um incêndio devastava a cidade, eu não sabia se ele estava vivo ou morto."

Quando minha mãe me ligou, na manhã de 8 de novembro, dava para perceber o pânico em sua voz.

“Você está sabendo do incêndio, Janelle?” Pelo modo como ela falou meu nome, eu sabia que havia alguma coisa muito errada. Eu me preparei para ouvir que alguém havia morrido ou que as chamas haviam destruído nossa casa.

“Há um incêndio em Paradise. Ross saiu do hospital e me ligou da estrada. Ele está preso, cercado pelas chamas. Está 43 graus Celsius dentro da sua caminhonete e ele não consegue sair.”

Ross é meu irmão. Ele é dois anos e meio mais velho do que eu e trabalha como ginecologista e obstetra em Paradise, Califórnia (EUA), duas horas ao norte da cidade onde moro. Nós nos vemos com frequência, e os três filhos dele costumam brincar com os meus quatro. Somos mais do que irmão, somos amigos. Amigos muito, muito próximos.

Minhas mãos tremiam. Meu coração acelerava. Eu já estava preparada para a morte. Eu já estava preparada para algo que não deveria acontecer. Eu odiei minha mãe por me contar aquilo. Eu a odiei por não me contar mais nada.

“Ele está vivo?” – eu mal conseguia falar, mas sabe-se lá como gritei. “Ele conseguiu sair? O que ele vai fazer?”

“Eu não sei”, ela respondeu. “A ligação caiu.”

Ele contou à minha mãe que o para-choque do carro estava derretendo diante dos seus olhos. Ele disse que estava a poucos metros de prédios em chamas e que a fumaça havia feito o dia parecer noite. Ele disse que estava na Pentz Road. Que estava com muito medo.

E então a ligação caiu.

Você volta ao início do amor, da história, até que a pessoa que pode morrer – ou morreu – toma conta de todo o seu ser. 

Eu nos vi ainda crianças. Ele não era mais um homem crescido: ele era meu irmão mais velho de décadas atrás, antes de termos quarenta anos, antes de termos filhos. Ele era o menino com quem eu brincava na praia, com quem eu jogava Tetris no Nintendo, o que fazia macarrão de forno para nós nas noites em que mamãe não estava em casa. Nos vi vendo os Beastie Boys na MTV. Roubando o sinal da TV a cabo dos vizinhos quando não tínhamos condições de pagar por isso. Caminhando uma eternidade até nossa casa – pelo menos era o que parecia – quando saíamos da escola.

As coisas são assim. Você volta ao início de tudo, à origem. Você volta ao início do amor, da história, até que a pessoa que pode morrer – ou morreu – toma conta de todo o seu ser, transformando-se no sangue que corre em suas veias, como se fosse você no cadafalso, como se fosse você que estivesse ficando sem ar. E você tenta se segurar e implora para que tudo volte atrás. Volte a como era antes. A poucos minutos antes. Só voltar ao que era.

Você não volta às coisas do cotidiano, à amizade frívola com o papo furado, à distância e às briguinhas. Você volta ao início do amor, para e fica vendo aquilo sendo destruído.

Sabíamos que a mulher e os filhos do meu irmão estavam a salvo, já no caminho para a nossa cidade (Chico). Mas ele estava preso, e sabíamos disso também. Liguei para o meu marido e dirigi até a casa da minha mãe, onde ficamos sentadas como animais enjaulados. Eu checava compulsivamente o Twitter, chorando enquanto via um vídeo que mostrava a Pentz Road, naquele exato momento, queimando de maneira apocalíptica.

Você fica dizendo para si mesma que ele foi um escoteiro condecorado. Você fica dizendo para si mesma que ele é sensato. Você fica dizendo para si mesma que é possível encontrar uma maneira de escapar de um grande incêndio. Você fica dizendo para si mesma essas coisas todas, mas não acredita em nenhuma delas.

Durante cinco horas, ficamos esperando. Durante cinco horas, ligamos para toda a família, nos sentimos impotentes. Porque mesmo em momentos assim, ainda somos nós. Apenas uma família.

Eu só me desesperei depois de ouvir a voz do nosso pai, uma voz de confiança inabalável. “Ele está dirigindo por uma área que já queimou, Janelle. Ele está são e salvo.” Isso era evidentemente infundado. Algo criado por um pai aterrorizado, uma certeza imaginária na qual se segurar, porque a alternativa parecia impossível.

Após passar duas horas e meia sentado em sua caminhonete, Ross dirigiu 800 metros, lentamente, seguindo no meio da estrada. Ele sabia que o calor do fogo aumenta exponencialmente quanto mais você se aproxima dele, o que significa que 3 metros de distância para as chamas consumindo os prédios ao seu redor é bem diferente de 1 metro e meio. Por isso, ele não saiu do centro da estrada.

Outras pessoas não sabiam disso – eu mesma não saberia – e desviavam para o acostamento, para ultrapassar os outros carros ou para ver o que estava acontecendo à frente. E, quando faziam isso, às vezes seus carros pegavam fogo, forçando os ocupantes a abandonarem o veículo e correrem.

Um dos veículos tomado pelas chamas no acostamento era uma ambulância levando uma mulher que havia acabado de fazer uma cesárea no Feather River, o hospital onde meu irmão trabalha. Quando a ambulância pegou fogo, a equipe médica e os pacientes fugiram para uma garagem próxima. Lá, uma enfermeira subiu no telhado e usou uma mangueira para manter as chamas afastadas. Tanto a mãe quanto o bebê sobreviveram. Meu irmão tirou uma foto da ambulância em chamas de sua caminhonete.

Ao fim dos 800 metros, ele foi direcionado pelos bombeiros para uma via que levava ao estacionamento de um supermercado, onde estacionou a caminhonete (junto com dezenas de outros carros) e ficou aguardando. Um bombeiro estava de pé em um caminhão de bombeiros, à frente de todo mundo, usando sua enorme mangueira para jogar água a leste, circular ao redor de todos os carros para mantê-los resfriados e depois jogar água a oeste, mantendo as chamas afastadas.

Esse era o plano. Se mesmo assim as chamas se aproximassem, os bombeiros construiriam uma barricada com os trailers queimados e fariam todos se amontoarem atrás dessa barricada, para tentar bloquear o calor. E era isso. Esse era o único plano.

Segurei o rosto do meu irmão em minhas mãos. É difícil explicar o que senti no momento.

No dia seguinte, segurei o rosto do meu irmão em minhas mãos. É difícil explicar o que senti no momento.

A família dele havia perdido a casa, mas não tinha perdido tudo. Pelo menos 79 pessoas morreram no incêndio Camp Fire, o incêndio mais avassalador e mortal da história da Califórnia. Centenas de pessoas ainda estão desaparecidas. Podemos nos considerar pessoas de sorte.

Três dias após o incêndio, minha cunhada me enviou as fotos compartilhadas por uma amiga que havia voltado à cidade com seu marido, um policial. As fotos eram da Escola Primária de Paradise. Bem, do que havia sobrado dela. A escola foi completamente incinerada – todos os prédios, todos os brinquedos, todas as salas de aula.

Encostado em uma árvore no playground da escola primária, ficava o “Banco da Amizade”. Era o banco para onde as crianças iam quando precisavam de um amigo, quando precisavam de alguém com quem brincar. Você se lembra dessa sensação? De andar sem rumo, vendo as crianças brincando ao seu redor, querendo entrar na brincadeira, mas não tendo a coragem de se aproximar?

E agora, entre as cinzas e os escombros do playground onde as crianças do jardim de infância brincavam, entre uma faixa cada vez maior de objetos cinzentos, mortos e indecifráveis, ficou esse banco, imaculado.

Dezenas de milhares de hectares ao redor de Paradise foram destruídos pelo fogo, mas o Banco da Amizade resistiu – até mesmo a árvore na qual ele fica encostado não foi queimada. É quase debilmente poético, excessivamente meloso. E é silenciosamente importante.

Aquele banco parecia gritar algo, de um local muito distante, talvez uma caverna profunda: “Isto é o que você tem, cidadezinha nas montanhas. Tem um banco onde pode encontrar alguém que também precisa de você. Onde você pode sentar quando estiver com medo e ter a certeza de que alguém virá em seu auxílio”.

Enquanto o fogo consumia Paradise nas primeiras horas daquele dia, as pessoas foram incríveis indo ao auxílio das outras e tendo a certeza de que alguém apareceria para ajudá-las: a treinadora de cavalos, amiga do meu irmão, que anotou o número do seu telefone no corpo dos cavalos antes de soltá-los, já que não conseguiria transportar todos. Os homens, mulheres e crianças que pegaram carona com alguém que também estava dirigindo pela estrada em chamas. A enfermeira que deu meia-volta e voltou para Paradise para ajudar os outros. Os 600 estranhos que retuítaram o tuíte sobre meu irmão quando não tínhamos notícias dele. As vítimas do incêndio do ano passado na Califórnia que enviaram móveis e vale-compras para o povo de Paradise.

Eu continuo pensando sobre aquele banco que sobreviveu às chamas – um coração selvagem no meio de tudo aquilo, ainda de pé e bizarramente solitário em um mundo destruído, pedindo a nós que nos sentemos juntos.

Quando minha filha de 8 anos viu o tio, ficou olhando para ele em silêncio, com os olhos enchendo-se de lágrimas, até que falou: “Tio Ross, eu fiquei com muito medo por você.” Ao que ele respondeu: “Eu também fiquei.” Ele então a colocou em seu colo, e os dois ficaram sentados juntos por um bom tempo. ●


Janelle Hanchett é a fundadora do blog Renegade Mothering. Seu primeiro livro, I’m Just Happy to Be Here (Apenas Estou Feliz de Estar Aqui, em tradução livre), foi publicado pela editora Hachette em maio de 2018. Ela vive no norte da Califórnia com seu marido e seus quatro filhos.



A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Luísa Pessoa.

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