A evidência da eficácia da cloroquina contra o coronavírus é muito fraca

    A cloroquina está sendo apontada como um remédio milagroso contra o Covid-19, mas tenha cuidado: apesar de discursos de Trump e Bolsonaro, substância ainda não comprovou eficácia e tem efeitos colaterais.

    O início de um estudo clínico para testar o remédio cloroquina como tratamento para a pandemia de coronavírus, anunciado no fim de semana pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, provocou uma corrida pelo remédio não testado, em meio a relatos de desabastecimento.

    No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro também "anunciou" que o Hospital Albert Einstein estava pesquisando um remédio para o coronavírus à base da substância – o que também provocou críticas da comunidade científica e, como nos Estados Unidos, aumento de procura pela cloroquina nas farmácias.

    "Há um aumento significativo na demanda de cloroquina/hidroxicloroquina, e estamos fazendo o possível para trabalhar com os fabricantes para aumentar a produção", disse Michael Felberbaum, do FDA (o equivalente à Anvisa nos EUA), ao BuzzFeed News.

    “Estamos trabalhando com os fabricantes para analisar seus suprimentos e estamos avaliando ativamente a demanda do mercado por pacientes dependentes do remédio para tratamento de malária, lúpus e artrite reumatoide. Mas, por favor, saibam que essa é uma situação flutuante e dinâmica em que estamos ativamente envolvidos.”

    A cloroquina tem sido usada no tratamento da malária há décadas, com sua reformulação mais recente na forma de hidroxicloroquina sendo frequentemente prescrita para pacientes com lúpus e artrite. Como ela foi aprovada para o tratamento da malária pelo FDA em 1949, também pode ser facilmente prescrita pelos médicos para a Covid-19.

    "Vamos usar alguns medicamentos — vamos ver se eles funcionam", disse Trump, que sugeriu que os estudos clínicos de cloroquina podem começar na terça-feira (pelo menos seis já estão registrados no site do NIH). "Eles certamente são eficazes de outras maneiras." A Bayer anunciou na semana passada que doaria ao governo dos EUA 3 milhões de comprimidos de fosfato de cloroquina para serem usados em estudos clínicos, e o FDA disse que está coordenando esses esforços com faculdades de medicina e agências de pesquisa.

    No Brasil, o presidente Bolsonaro anunciou no sábado (21) que os laboratórios do Exército iriam intensificar a produção de cloroquina.

    Apesar da empolgação de líderes políticos como Trump e Bolsonaro, especialistas médicos, incluindo o chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA, Anthony Fauci, levantaram uma série de alertas sobre a prescrição generalizada de um medicamento para uma doença totalmente nova.

    A evidência da eficácia da cloroquina é muito fraca

    A cloroquina foi adicionada ao formulário da China para o tratamento da Covid-19 em fevereiro, levando ao uso disseminado lá e na Coreia do Sul. Mas os dados chineses de divulgação da eficácia são escassos, baseando-se em um estudo de células de macacos em tubos de ensaio e em um relatório de consenso de médicos na província de Guangdong.

    Mais recentemente, um estudo francês divulgado por Trump causou controvérsia, comparando 20 pacientes que tomaram o remédio com 16 que não tomaram.

    Porém, especialistas externos criticaram fortemente o estudo francês.

    O geneticista de doenças infecciosas Gaetan Burgio, da Universidade Nacional da Austrália, observou que, estatisticamente, avaliar as respostas nacionais a uma pandemia com base em um estudo com 20 pessoas não era sensato, que o estudo francês não foi duplo-cego, ou seja, foi realizado com médicos e pacientes conhecendo o tratamento, e que apenas um quarto dos pacientes que receberam o placebo tiveram sua carga viral medida. "Isso é loucura!" disse ele no Twitter.

    In short, all this hype on the clinical trial is based on a open label, non randomized and underpowered clinical trial on HCQ treatment against #COVID19 with viral load as an outcome that was not properly measured in 2/3 of the control cohort !!!

    Pior ainda, seis pacientes do grupo que recebeu o medicamento desistiram do estudo, três deles acabaram em terapia intensiva e um morreu. Tudo isso pode ser visto como falhas do medicamento contra o vírus, disse Alfred Kim, da Clínica de Lúpus da Universidade de Washington, à revista Undark.

    O remédio tem efeitos colaterais

    Uma das razões que Trump observou para testar remédios mais antigos é que os médicos estão familiarizados com seu uso. "Eles são seguros", disse Trump. "Do ponto de vista de que não estão matando pessoas. Nós não teremos isso."

    Mas eles têm efeitos colaterais, como a maioria dos remédios, alguns graves. A Clínica Mayo lista 14 remédios que não devem ser tomados com a cloroquina, cujos efeitos colaterais podem incluir visão embaçada, náusea, vômito, cãibras, dor de cabeça e diarreia. Efeitos colaterais semelhantes estão associados à hidroxicloroquina, outra forma do medicamento, que também está ligado a convulsões e "alterações mentais" pela Biblioteca Nacional de Medicina dos EUA.

    A literatura científica contém vários relatos de casos de overdoses, algumas fatais. A Nigéria relatou duas overdoses fatais após as declarações de Trump e pediu que as pessoas não tomem o remédio sem ordens médicas.

    #FactsNotFear @WHO has NOT approved the use of chloroquine for #COVID19 management. Scientists are working hard to confirm the safety of several drugs for this disease. Please DO NOT engage in self-medication. This will cause harm and can lead to death. #COVID19Nigeria

    "Você não pode imaginar como isso é errado, me dá arrepios, é muito errado", disse o epidemiologista clínico Peter Jüni, da Universidade de Toronto, ao BuzzFeed News, quando questionado sobre políticos incentivando as pessoas a testar a cloroquina ou outros remédios não testados para o tratamento da Covid-19.

    "Se tivermos milhões de pessoas tomando aleatoriamente um remédio com toxicidades conhecidas, teremos grandes problemas de segurança."

    Na segunda-feira, um homem do Arizona (EUA) com cerca de 60 anos morreu após se automedicar com fosfato de cloroquina, uma produto químico feito para limpar aquários.

    Pode haver desabastecimento para as pessoas que precisam

    Pacientes com artrite e lúpus rapidamente relataram uma corrida aos estoques das farmácias em busca do medicamento após os comentários do presidente na semana passada.

    "Para muitas pessoas com lúpus, não há alternativas para esses medicamentos", disse a Fundação Lúpus da América em um comunicado divulgado na segunda-feira, alertando sobre relatos de desabastecimento. "A hidroxicloroquina ou a cloroquina são os únicos métodos de prevenção de inflamação e atividade de doenças que podem levar a dor, incapacidade, danos a órgãos e outras doenças graves."

    Well it finally happened to me. A dentist just tried to call in scripts for hydroxychloroquine + azithromycin for himself, his wife, & another couple (friends). NOPE. I have patients with lupus that have been on HCQ for YEARS and now can’t get it because it’s on backorder.

    O site de compras de medicamentos GoodRx mostrou que entre 1º de março e 16 de março, houve um aumento de 57% na demanda de hidroxicloroquina e um aumento de 90% na demanda de cloroquina, informou a Bloomberg News. E as farmácias de manipulação, que podem fabricar medicamentos em cápsulas rapidamente e normalmente entram em cena quando surgem as carências de comprimidos fabricados, também notaram uma corrida em busca da cloroquina. Um farmacêutico de manipulação de Nova York, Gopesh Patel, disse ao BuzzFeed News que os pedidos passaram de cerca de 20 por semana para mais de 200 por semana nos últimos dois meses.

    "Vimos a demanda pelo medicamento aumentar exponencialmente", disse Gus Bassani, diretor científico do grupo de indústrias farmacêuticas de manipulação da PCCA. “Por enquanto, os fabricantes estão reagindo às necessidades aumentando a produção, e temos material confirmado para ser enviado."

    “Continuamos em contato regular com nossos fornecedores em todo o mundo e estamos trabalhando para agilizar esses envios sempre que possível. Portanto, os sinais de fornecimento são bons.”

    Grandes fabricantes de medicamentos, como a Novartis AG, a Teva Pharmaceutical Industries Ltd. e a Bayer AG planejam aumentar a produção, mas alguns observadores temem que uma corrida pelo medicamento leve a versões de baixa qualidade inundando o mercado.

    For all those rushing to get chloroquine + hydroxychloroquine, the US is lifting restrictions on a pharma co in India that has had factories banned from US sales on quality concerns so it can make the drugs touted by @realDonaldTrump as covid-19 treatments https://t.co/wCb3qjQMaD

    A pressa pelo medicamento pode interferir nos esforços para testá-lo em estudos clínicos

    "São os estudos que nos dirão o que está acontecendo", disse Jüni, acrescentando que é impossível entender "com base em evidências incompletas e inválidas se o remédio funciona ou não".

    Mas multidões indo aos médicos para tomar remédios não comprovados podem interferir nesses esforços de testá-los e descobrir se eles realmente funcionam ou não, preocupam-se Jüni e outros especialistas. Por que participar de um estudo clínico, onde há uma chance de não receber um medicamento experimental se estiver no grupo de controle para servir como comparação, apenas com o tratamento padrão, quando você pode simplesmente pressionar seu médico para receitar a você para uso não aprovado?

    A Universidade de Minnesota anunciou o início de um estudo clínico nacional de hidroxicloroquina no início da semana passada, por exemplo, buscando até 1.500 pessoas expostas à Covid-19 nos últimos três dias, no qual metade dos voluntários receberia o medicamento, enquanto a outro metade receberia uma pílula de açúcar de aparência idêntica, um placebo.

    E os estudos clínicos também não têm retorno imediato. O da Universidade de Minnesota tem data de término em maio de 2021. Dada a incerteza da situação, Jüni relutou em fornecer um cronograma para o estudo típico, mas falou sobre projetos com duração de 4 a 6 meses, que podem levar a resultados em 8 a 10 meses.

    "Não existem milagres", disse ele. "Temos que realizar os estudos".

    Esperanças de falsos remédios podem diminuir o distanciamento social muito cedo

    A parte mais difícil de "achatar a curva" ocorrerá nas próximas semanas nos EUA, onde, com as taxas de crescimento atuais, a contagem nacional de mais de 40.000 casos atualmente aumentará para centenas de milhares até o final do mês.

    Isso porque leva semanas para o distanciamento social começar a diminuir os números de novos casos, devido ao período de infecção de aproximadamente 14 dias do novo coronavírus. Mesmo depois que tudo é fechado e a economia se retrai, as pessoas ainda estão desenvolvendo a doença, indo para o hospital e aumentando a contagem de casos.

    Enquanto isso, o presidente Trump já está ansioso para remover os pedidos de fechamento de negócios ao final da campanha "15 dias para achatar a curva", anunciada em meados de março (posição apoiada recentemente pela mídia conservadora), observou o Washington Post.

    WE CANNOT LET THE CURE BE WORSE THAN THE PROBLEM ITSELF. AT THE END OF THE 15 DAY PERIOD, WE WILL MAKE A DECISION AS TO WHICH WAY WE WANT TO GO!

    Isso poderia levar ao aumento da pressão para confiar em um "remédio milagroso" como determinante para evitar uma recessão pior. O fundo de hedge de Los Angeles Hercules Investments, por exemplo, divulgou, na segunda-feira, uma newsletter que dizia aos investidores que o estudo clínico francês era a “razão mais promissora” para estar “otimista em relação a um contágio de curta duração seguido por uma rápida recuperação”.

    O conflito entre autoridades de saúde pública e interesses comerciais na Casa Branca já estava ocorrendo na segunda-feira, com Trump dizendo: "Não devem ser meses", quando perguntado sobre quanto tempo o distanciamento social duraria nos EUA.

    Trump signals he probably won't just listen to the medical pros: "If it were up to the doctors, they may say, let's keep it shut down. Let's shut down the entire world."

    "Se você observar a trajetória das curvas de surtos e outras áreas, deveriam ser pelo menos várias semanas", disse Fauci, do NIAID, na semana passada, no programa Today, da NBC.

    Fauci não estava no evento de segunda-feira à noite na Casa Branca.


    Este post foi traduzido do inglês.

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