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Pelo Grindr, homem enviou 1.000 homens à espera de sexo e drogas para seu ex, diz ação judicial

"Foi como um episódio de 'Black Mirror'", disse Matthew Herrick, que abriu um processo contra o app.

No auge do abuso sofrido por Matthew Herrick, 16 homens apareciam todos os dias à sua porta, todos esperando por sexo violento e degradante, drogas ou ambos. Herrick, ator de 32 anos que mora em Nova York (EUA), não conhecia nenhum deles, mas os homens insistiam que sim — afinal, eles tinham conversado no aplicativo de encontros Grindr. Essa cena se repetiu mais de 1.000 vezes entre outubro de 2016 e março de 2017.

Herrick havia desativado sua conta e excluído o aplicativo Grindr do seu celular no final de 2015, quando começou a namorar um homem que conheceu no aplicativo, referido nos documentos judiciais como J.C. Os dois terminaram no outono de 2016 e, pouco depois, de acordo com os arquivos judiciais, J.C. começou a perseguir Herrick e criou perfis falsos no Grindr como se fosse ele.

Os perfis diziam falsamente que Herrick era soropositivo, interessado em sexo desprotegido e bondage e que estava "Procurando por um grupo para vir destruir meu cu". Por meio do Grindr, Herrick diz que J.C. direcionava esses homens para seu apartamento ou local de trabalho, criando um mundo de caos diariamente.

“Foi como um filme de terror”, disse Herrick ao BuzzFeed News em uma entrevista. "Como no filme Feitiço do Tempo, mas da maneira mais horrível que você possa imaginar. Era como um episódio de Black Mirror.”

Ordens de proteção e boletins de ocorrência contra J.C. não pararam a enxurrada de assédio. Herrick, seus amigos e advogados enviaram 100 reclamações ao Grindr pedindo que ele bloqueasse J.C., mas não receberam nenhuma resposta. Por fim, Herrick levou o Grindr à Justiça para forçar a empresa a pôr fim ao pesadelo. O Grindr argumentou que, de acordo com a lei federal, não precisava ajudar Herrick, e, em fevereiro de 2017, um juiz federal concordou.

Agora, os advogados de Herrick argumentam que o juiz entendeu errado a situação. Recentemente, eles levaram o caso à Corte de Apelações dos EUA, cuja decisão pode ter amplas consequências sobre o que os aplicativos e as empresas de mídia social devem fazer para combater o assédio em suas plataformas.

No centro da disputa, estão os limites de uma lei de 1996 — a Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações [Communications Decency Act]— que diz que sites ou aplicativos não podem ser responsabilizados por atos atrozes cometidos por usuários em suas plataformas. É a lei que protege o Twitter de ser processado por tuítes controversos e protege o Yelp de ser levado ao tribunal por causa de comentários raivosos de usuários contra restaurantes.

Hoje, uma crescente coalizão de grupos de defesa do consumidor e defensores de vítimas de violência praticada por parceiros diz que a Seção 230 incentiva as empresas a fazerem vista grossa para casos de abuso.

O caso de Herrick expôs a divisão entre advogados que lutam contra abusadores domésticos (que, cada vez mais, usam smartphones e serviços on-line para rastrear e perseguir seus parceiros), e grupos de direitos digitais que temem a erosão da liberdade de expressão on-line.

J.C. foi preso em 23 de outubro de 2017 e foi acusado de perseguição, falsidade ideológica, fazer um boletim de ocorrência falso e desobedecer a uma ordem judicial. A próxima audiência de J.C. já foi marcada. Ele tem se declarado inocente e está sendo mantido com uma fiança estipulada em US$ 500 mil.

"A situação toda é horrível", disse o juiz Dennis Jacobs, um dos três que ouviram o apelo de Herrick. "Mas a questão é: qual é a responsabilidade do Grindr?"

Pouca, de acordo com a juíza que decidiu em favor do Grindr em 2017. "Não vejo o que o Grindr fez como aceitável", disse a juíza da Corte Distrital dos EUA, Valerie Caproni, na época. No entanto, baseada na Seção 230, ela decidiu que um aplicativo de namoro como o Grindr não pode ser processado porque um de seus usuários assediou alguém pela plataforma.

"É como no filme 'Feitiço do Tempo', mas da maneira mais horrível que você possa imaginar. Era como um episódio de Black Mirror."

No tribunal, Tor Ekeland, um dos advogados de Herrick, também questionou se o Grindr continuava rastreando a localização de seu cliente, mesmo depois de ele ter parado de usar o app. "Há muitas perguntas não respondidas nesse caso", argumentou. Os advogados do Grindr disseram que era "mágico e implausível" Herrick continuar sendo rastreado depois de parar de usar o aplicativo.

O tribunal não disse quando emitirá uma decisão. É a primeira vez que a Seção 230 é analisada em um caso envolvendo um app e a tecnologia de geolocalização, mas os advogados do Grindr dizem que isso não muda as coisas. "A geolocalização é um sistema neutro", disse Daniel P. Waxman, um dos advogados do Grindr, no tribunal. "Ela está aberta a bons e maus usuários."

Os advogados de Herrick dizem que esse caso vai além da Seção 230 porque o Grindr sabe que colocou um produto perigoso no mercado sem meios de filtrar os malfeitores – e isso mesmo quando soube que alguém como J.C. estava tirando proveito da plataforma. O Grindr poderia contratar mais pessoas para lidar com reclamações, identificar e banir assediadores em série como o Twitter faz, ou implementar uma tecnologia como a que o Facebook está usando para parar com a pornografia de vingança, mas ele decidiu que é mais barato não fazer nada e se esconder atrás da Seção 230, dizem eles.

"O Grindr assume o risco de que algumas pessoas terão suas vidas arruinadas pelo app", disse Carrie Goldberg, uma das advogadas de Herrick, ao BuzzFeed News.

O Grindr não respondeu a repetidos pedidos de comentários do BuzzFeed News. Em um processo judicial, a empresa declarou que é um “espaço seguro” para pessoas gays, bissexuais, trans e queer se conectarem e que, para fornecer aos usuários flexibilidade e discrição em seus encontros e vidas sexuais, pede pouca informação e não verifica os perfis. Se uma pessoa quiser, admitiu o advogado do Grindr em uma audiência no tribunal em 2017, ela pode criar diferentes perfis dela mesma vinculados a diferentes endereços de e-mail.

A proteção do Grindr a respeito da privacidade do usuário foi repetidamente questionada. No ano passado, um relatório do BuzzFeed News revelou que o aplicativo divulgava o status de HIV dos usuários — assim como seus dados de GPS, ID de telefone e e-mail — a duas empresas externas. De início, o Grindr disse que compartilhar esses dados era uma prática-padrão na indústria, mas depois voltou atrás e anunciou que daria fim a isso.

O Grindr se chamar de um "espaço seguro" para a comunidade gay é uma "fachada", disse Herrick. "Eles criam essa ideia de quem eles são e quem nós, como comunidade gay, queremos que eles sejam, mas eles nunca foram e nunca serão assim", disse Herrick ao BuzzFeed News. "Eles sempre vão querer apenas ganhar mais dinheiro."

A cidade de Nova York é o maior mercado do Grindr nos EUA, onde cerca de 426 mil usuários estão localizados. Ao contrário dos aplicativos de namoro, como Tinder ou Bumble, que só têm filtros baseados em idade e gênero, o Grindr exibe uma rede de parceiros potenciais que podem ser reduzidos por tipo de corpo, sexualidade ou tipo — bem-apessoado, nerd ou atleta, por exemplo —, e sua proximidade naquele momento para outros usuários. As provas arquivadas no tribunal incluem imagens dos perfis falsos de Herrick, mostrando-o a cerca de 30 metros de distância dos homens interessados.

Alguns dos homens que apareceram para se encontrar com Herrick não foram embora enquanto ele não lhes disse que havia ocorrido um engano. Alguns seguiam Herrick até a cozinha ou banheiro do restaurante onde ele trabalhava, enquanto outros esperavam do lado de fora do seu local de trabalho ou do seu apartamento em Manhattan por meia hora ou mais. Certo dia, seis homens apareceram em um intervalo de poucos minutos um do outro. Em várias ocasiões, de acordo com as queixas civis de Herrick, os homens pareciam estar drogados, verbalmente repreendiam Herrick como uma “puta mentirosa” e tiveram que ser fisicamente colocados para fora. J.C. também divulgou o número de telefone de Herrick, uma vez resultando em 75 mensagens de texto de números diferentes em um período de 24 horas, disse Herrick ao BuzzFeed News.

Herrick tinha certeza de que J.C. estava por trás disso. Uma vez, disse que viu J.C. do outro lado da rua do seu apartamento, observando os homens tocarem sua campainha. Herrick também teria recebido mensagens de texto de J.C. dizendo o que Herrick estava fazendo naquele momento. Herrick fez 14 boletins de ocorrência e obteve uma ordem de proteção proibindo J.C. de entrar em contato com ele, de acordo com o processo, mas era impossível provar que J.C. estava por trás da atividade on-line sem a cooperação do Grindr, e os perfis falsos no Grindr continuaram.

Sadie Diaz, advogada da organização sem fins lucrativos Sanctuary for Families, que ajuda vítimas de violência doméstica, disse que Herrick não está interessado em acabar com o Grindr; ele só quer sua vida de volta. "Até 16 pessoas apareciam em seu trabalho e em casa todos os dias", disse Diaz.

Em 27 de janeiro de 2017, um juiz estadual de Nova York emitiu uma ordem exigindo que o Grindr procurasse e desativasse os perfis falsos. Até Herrick ir ao tribunal, as únicas respostas que recebeu do Grindr foram respostas automáticas reconhecendo o recebimento de suas queixas, de acordo com seus advogados.

O Grindr transferiu o caso para o tribunal federal para combatê-lo usando a Seção 230, colocando em ação o processo de Herrick contra a empresa.

O Grindr disse no tribunal que não poderia parar J.C. sem saber quais contas eram perfis falsos de Herrick. Os advogados do Grindr sugeriram em determinado momento que Herrick pedisse aos homens que o abordavam para ver seus telefones, para que pudesse sinalizar os perfis falsos, disse Goldberg ao BuzzFeed News.

Alguns especialistas em leis cibernéticas temem que uma decisão contra o Grindr coloque em risco a criatividade da internet como a conhecemos. Eles dizem que exigir que as plataformas monitorem mais de perto os usuários daria vantagem aos gigantes da tecnologia, como Facebook, Twitter e Google, ao mesmo tempo em que prejudicaria start-ups menores com públicos específicos, incluindo o Grindr. Seria mais caro dar início a novas empresas on-line por causa do custo de contratar fiscalizadores, disse Jennifer Granick, assessora de segurança e segurança cibernética da União Americana pelas Liberdades Civis.

“Por pior que seja [esse caso], o princípio por trás da Seção 230 — que é 'deixar as pessoas serem responsáveis por seu próprio discurso' — é a razão pela qual somos capazes de usar hoje a internet como essa incrível plataforma para liberdade de expressão e criatividade”, disse Granick ao BuzzFeed News.

Seria um erro confundir o dever ético de uma plataforma com tornar a empresa financeiramente responsável pelo que falam ali, disse Lisa Hayes, conselheira geral da organização sem fins lucrativos Center for Democracy and Technology. "O que estamos enfrentando", disse Hayes, "é que a internet agora está sendo usada para mostrar o pior das pessoas. ... Mas há um risco real para a economia da internet se a Seção 230 for enfraquecida."

No entanto, a Electronic Privacy Information Center, que se separou de outros grupos de direitos digitais e apresentou um amicus curiae em apoio à Herrick, vê um tipo diferente de violação de privacidade nesse caso — a divulgação não autorizada do endereço, número de telefone e fotos de Herrick. Talvez o Grindr deveria ter se aprofundado nos dados pessoais fornecidos para identificar e bloquear o assediador de Herrick, mas "se há imunidade para as plataformas, então o indivíduo não tem a quem recorrer", disse Alan Butler, advogado da EPIC.

Assim que o caso chegou ao tribunal federal, as agências de notícias começaram a cobri-lo, e Herrick disse que logo começou a ver quantas pessoas estavam em situações parecidas, aparentemente sem opções.

"Quando tudo isso começou, recebi centenas de e-mails e mensagens no Facebook e no Instagram", disse Herrick. “Pessoas me contando suas próprias histórias, me perguntando o que deveriam fazer. Acho que isso abriu as portas para as pessoas. Por muito tempo, eu me perguntava, eu sou um homem de 32 anos, como sou uma vítima disso, como isso está acontecendo comigo? Eu sentia muita culpa e vergonha.”

A maioria dos casos de violência por um parceiro hoje envolve alguma forma de assédio por meio da tecnologia, de acordo com abrigos e advogados das vítimas. Uma pesquisa recente com adolescentes descobriu que vítimas de assédio digital provavelmente serão abusadas fisicamente ou sofrerão coerção sexual no futuro.

O Congresso aprovou a Seção 230 com a expectativa de que empresas de tecnologia agiriam de forma moralmente responsável em casos de abuso em suas plataformas, disseram especialistas ao BuzzFeed News. Diaz disse que os clientes da Sanctuary for Families tiveram experiências semelhantes com perfis falsos no Facebook, por exemplo, mas foram capazes de trabalhar com a empresa para resolver o problema. "Algumas empresas de tecnologia estão fazendo a coisa certa, outras não", disse Diaz. “O problema com a Seção 230 é que aquelas que não estão fazendo o certo não têm motivação financeira para tomar nenhuma providência.”

Eric Goldman, professor da Universidade de Santa Clara que estuda direito da internet, destacou que não é do interesse comercial do Grindr ignorar abusos no app, mas que legalmente obrigar o Grindr a aplicar uma solução tecnológica pode ser uma alternativa ainda mais perniciosa. O Grindr poderia acabar censurando ou vigiando o conteúdo na plataforma, “distorcendo o mercado de uma forma que acabaria piorando tudo”, disse Goldman. Ele chamou o processo de Herrick de “um caso simples da Seção 230”.

Waxman, advogado do Grindr, fez um argumento semelhante no tribunal, dizendo que a empresa não criou nenhum conteúdo e que ninguém estaria lá se não fosse por J.C.

Herrick se mudou para a Califórnia alguns meses depois de J.C. ter sido indiciado e, apesar de J.C. estar atrás das grades, Herrick ainda tem uma sensação estranha de que ele possa estar por perto. Às vezes, pequenas coisas o assustam, como receber uma mensagem de texto de um número desconhecido.

"Eu tenho um interesse pessoal nisso agora, não necessariamente para mim, mas para outras pessoas que não têm voz, que estão sofrendo e não sabem o que fazer", disse Herrick ao BuzzFeed News. "Temos a oportunidade de fazer com que as pessoas analisem essas leis, essas empresas e estabeleçam um precedente que possa finalmente fazer com que essas empresas ajam." ●


A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Luísa Pessoa.

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