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“Alta Fidelidade” trocou um homem branco por uma mulher negra e acabou dando muito certo

A nova série estrelada por Zoë Kravitz tem mudanças muito bem-pensadas – e bem executadas – em relação ao livro e ao filme originais.

Na última semana, a Barnes & Noble, em colaboração com a Penguim Random House e uma empresa de propaganda, anunciaram que seria lançada uma edição limitada de livros clássicos com capas "diversas" modernizadas. Um exemplo particularmente insensível: O monstro de Frankenstein, representado por um homem negro. A repercussão no Twitter foi imediata, escritores como Angie Thomas e Nnedi Okorafor argumentaram contra a tentativa bastante literal da livraria de encobrir a falta significativa de diversidade do setor editorial. No final do dia, a Barnes & Noble anunciou que estava suspendendo a iniciativa, estabelecendo o mais curto escândalo editorial em um ano já sofrido por eles (e estamos apenas em fevereiro).

É fácil acreditar que gestos como esse são bem intencionados, mas é difícil não ser cínico em relação a eles. Criar um personagem negro ou gay ou trans em um livro, filme ou programa de TV, que antes costumava ser retratado como branco ou heterossexual ou cis, pode muitas vezes parecer como um populismo transparente. (Veja a decisão meia-boca de J.K. Rowling, anos depois do fato, de fazer um Dumbledore gay ou o recente quadro de filmes de ação medíocres com gêneros trocados.) E quando esses tipos de mudanças são meramente cosméticas — quando não houve nenhuma tentativa de considerar como diferentes marcadores de identidade afetam a vida dos personagens — a história geralmente não é das melhores.

Isso não quer dizer que mudar um personagem para uma identidade mais marginalizada não pode funcionar – pode, às vezes, ter um efeito glorioso! A formação do elenco "sem olhar a cor" para obras consideradas canônicas pode funcionar como uma reivindicação — um argumento poderoso de que as grandes histórias pertencem a todos. (O teatro talvez seja o melhor exemplo disso. Veja o excelente desempenho de Ruth Negga como Hamlet, no St. Ann's Warehouse, ou a aclamada inversão de gênero da versão de Company, de Stephen Sondheim, que chega à Broadway em março.) Ainda assim, nem todos os criadores que vão por esse caminho parecem capazes ou dispostos a fazer o esforço necessário para realmente consegui-lo.

Foi por isso que eu encarei com ceticismo a notícia, em 2018, de que a Hulu estaria transformando "Alta Fidelidade" — o romance mais vendido de Nick Hornby em 1995 e material de origem do filme de 2000 com John Cusack, com o mesmo nome — em uma série de TV. A reviravolta? Rob, o dono e protagonista de uma loja de discos, altamente opinativo e eternamente apaixonado, seria interpretado por uma mulher. Nossa. Que vergonha. Quem pediu isto?

Mas a série, lançada no começo deste mês, é uma adaptação surpreendentemente ponderada — uma adaptação que leva em consideração a raça e especialmente o gênero. Desenvolvida para a TV pela equipe de redação de Veronica West e Sarah Kucserka, com Zoë Kravitz no papel principal, a nova "Alta Fidelidade" mantém o charme do filme — replicando até mesmo algumas tomadas e falas palavra por palavra —, mas elimina a misoginia implícita e nojenta do personagem de Cusack e apresenta uma Rob que, apesar de igualmente egocêntrica, é também compassiva e insegura. As mudanças não parecem ser populistas, didáticas ou excessivas. E mesmo quando o programa ocasionalmente fica aquém do esperado, aproveitando pouco a única outra personagem negra de destaque na série, só me deixa curiosa para ver o que outra temporada da série pode trazer. A nova "Alta Fidelidade" é a prova de que, às vezes, mudar a raça ou o gênero ou a orientação de uma personagem pode, quando feito com cuidado, criar novas possibilidades.


Uma das razões pelas quais eu estava cética quato à adaptação, pelo menos no início, foi o elenco. Kravitz passou sua carreira até agora como a simbólica personagem "étnica" em meio a um grupo de mulheres brancas, em participações em minisséries ou longas, de "A Noite É Delas" a "Big Little Lies". Será que ela poderia ser suficientemente convincente num papel principal, especialmente em um que depende tanto de um ponto de vista específico?

Mas isso demostrou que Kravitz é uma boa atriz que, até agora, nem sempre recebeu um bom material. Como Rob, diminutivo de Robin, em "Alta Fidelidade", ela realmente tem personalidade, é mordaz, naturalmente descolada em seus Doc Martens e convincentemente conhecedora de música, mas desconcertantemente vulnerável também. Como o Rob de Cusack, ela se dirige à câmera diretamente sabendo o que está por vir, e volta a ser taciturna, sensual e ironicamente engraçada. Embora os detalhes de como ela adquiriu uma loja de discos aos 29 anos sejam frustrantemente nebulosos, ela se parece um tipo reconhecível de elemento nova-iorquino.

A nova "Alta Fidelidade" é a prova de que, às vezes, mudar a raça ou o gênero ou a orientação de uma personagem pode, quando é feito com cuidado, criar novas possibilidades.

Como no filme, a série começa com Rob lidando com uma separação recente. Mas há algumas diferenças. Esse "Alta Fidelidade" é filmado e ambientado no Brooklyn (Nova York, EUA) em vez de em Chicago (no filme) ou em Londres (no livro). Os dois colegas de trabalho de Rob, os aliados do mal-estar machista de Cusack no filme, também foram reconstruídos aqui. Simon (David H. Holmes) é o homem branco nerd de música e indispensável na série, só que ele é gay e segue o estilo não-sei-dançar-mas-sei-tudo-sobre-a-estrela-andrógina-da-disco-Sylvester. (Há também um ótimo episódio narrado do seu ponto de vista sobre a sua própria tortuosa relação volta-separa com um ex.) E depois há a Cherise, interpretada memoravelmente por Da'Vine Joy Randolph. Ela é a amiga extrovertida, negra, gorda, com tiradas espirituosas e estilo, que está sempre falando sobre seu EP ainda não lançado.

A química entre os três protagonistas parece genuína. Todos os personagens — incluindo Cam, o irmão mais velho de Rob — vão ressoar como qualquer um da geração Y vagamente criativo, vivendo em uma grande cidade. Mas, comparado com seus predecessores, "Alta Fidelidade" é muito mais autoconsciente do que algo como "Girls" e menos moralista do que algo como "Master of None". Os personagens discutem sobre o legado de Michael Jackson ("E se os únicos artistas que nos fosse permitido ouvir fossem pessoas indiscutivelmente boas?") e têm situações confusas. Rob sai com homens e mulheres, entre as pessoas incluídas na sua "ilha deserta das cinco desilusões amorosas mais memoráveis" de todos os tempos está Kat, uma mulher cujo tipo é "alta, loira e branca", e uma pessoa negra e britânica.

A série, filmada principalmente em Crown Heights e Williamsburg (Brooklyn, Nova York), também tem uma fotografia ótima — apenas rústica o suficiente para não parecer uma comédia antisséptica. E as poucas participações especiais de famosos (Jack Antonoff e Debbie Harry) parecem naturais no contexto da série. Questlove é um dos produtores executivos de música, por isso as referências musicais são muito variadas — como uma playlist do Spotify com curadoria especializada! — com algumas faixas obscuras o bastante para lisonjear pessoas como eu a pensar que temos gostos idiossincráticos de música. Acima de tudo, "Alta Fidelidade" deixa claro que ser um especialista em música — e um idiota complicado e emocionalmente carregado — não é de procedência exclusiva dos homens brancos.

Em um episódio de destaque, "Uptown", Rob e seu potencial amante Clyde (Jake Lacy em mais um papel de bom namorado — em time que está ganhando não se mexe) vão para o Upper West Side para sondar uma coleção de discos inestimáveis sendo vendidos por uma ex-mulher vingativa e artista (Parker Posey). Reconhecendo o valor da coleção, Rob e Clyde tentam determinar se o ex é realmente um babaca. Ele é! Ele só fala com Clyde e rejeita o conhecimento musical obviamente superior de Rob, com o tipo de direito impensado e privilégio cego que os homens de meia-idade possuem em abundância. É tão convincente que senti a minha própria pressão arterial subir em solidariedade.

O episódio capta a essência do que o programa está tentando fazer: pintar um retrato de uma personagem complicada, diferenciada, que às vezes pode ser uma idiota, que se apega à falsidade de que você é aquilo que gosta e que aprende algumas coisas pelo caminho — tudo isso enquanto é uma mulher birracial, com todas as complicações que essas identidades trazem.

Embora não seja como se o mundo precisasse desesperadamente de mais uma série sobre pessoas mal-humoradas da geração Y em Nova York lutando com corações partidos e se unindo às suas listas de músicas do Spotify e coleções de vinil com curadoria perfeita, eu definitivamente continuarei assistindo a essa de qualquer forma. ●

Este post foi traduzido do inglês.

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