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Terra devastada chega a valer até 20 vezes mais que floresta em pé na Amazônia

O BuzzFeed News percorreu a região destruída por queimadas para revelar como funciona o milionário negócio dos desmatamentos criminosos que abrem espaço para a pecuária na Amazônia.

Por trás das queimadas na Amazônia que se transformaram em uma crise diplomática para o presidente Jair Bolsonaro, há um vigoroso negócio de compra e venda de terras para o avanço da pecuária em áreas de floresta devastada.

Em Apuí (AM), que já registrou mais de 2.000 focos de incêndio e é uma das campeãs nacionais de queimadas, um hectare de terra com pastagem chega a valer 20 vezes mais do que a mesma área com a floresta em pé.

Um estudo do Incra de 2016, ao qual o BuzzFeed News teve acesso, mostra que um hectare de floresta custa, em média, R$ 712. A área de pasto vale, na média, R$ 832. Os dados constam do relatório de análise de mercado regional de terras do sul amazonense. Os preços estão longe, no entanto, do que é de fato negociado entre os fazendeiros.

No mercado de terras do sul do Amazonas, onde se situa o chamado "arco do desmatamento, um alqueire (2,4 hectares) de pastagem pode valer até R$ 10.000 se estiver perto da rodovia, com acesso a água e luz. A mesma área de floresta é negociada por R$ 500. Muitos desses negócios correm à margem da lei.

Apuí é uma cidade de 21.500 habitantes. Fica mais perto de Porto Velho (600 km) do que de Manaus (1.100 km). E, apesar dos rios de seu entorno, seu perfil pecuarista é mais parecido com o de Rondônia ou do Mato Grosso. O rebanho é um dos maiores do estado: 175 mil cabeças. Numa divisão simples, são 8 bois por pessoa. E cada cabeça de gado tem mais que um hectare para pastar sozinho. Um hectare equivale a um campo de futebol.

“O alqueire de floresta é barato, o pasto não. E agora o desmatamento aumentou, a queimada aumentou, porque vem muita gente de fora, que está vendendo sua chácara em Rondônia e vindo para cá”, afirma o pecuarista Demésio Souza da Luz.

Luz também é “de fora”. Originário do Mato Grosso, o produtor chegou à comunidade de Sucunduri no começo dos anos 2000, comprando terra, desmatando e colocando algumas cabeças de gado para pastar.

“Foi um amigo que convidou pra eu vir. Comprei o direito de posse da terra, mas não tenho documentos. A maioria das pessoas aqui em Apuí não tem título. É tudo terra da União”, explica o pecuarista, que tem um pequeno comércio na comunidade.

A reportagem percorreu mais de 60 quilômetros de estradas vicinais na região de Sucunduri, que pertence ao município de Apuí

Em todo o trajeto é possível ver grandes extensões de floresta desmatada, cinzas e um rastro de fogo que insiste em acender aqui e ali alguma chama na mata, mesmo depois de pancadas de chuva. A fumaça das queimadas deixou uma nuvem densa no ar, que ainda não se desfez.

Luz se orgulha de ter tirado da terra o dinheiro para custear a faculdade dos dois filhos, que ele não quer ver trabalhando com ele. Ali, na comunidade de cerca de 3 mil pessoas, faltam emprego e renda.

As diárias de trabalho braçal ficam entre R$ 70 e R$ 80. Por isso é comum que trabalhadores aceitem sem pestanejar o pagamento de R$ 500 para desmatar um alqueire de floresta.

“R$ 500 para no máximo dois dias de serviço, se o caboclo for bom de derrubar. Se for tudo por conta dele (a motosserra e o combustível), pode ganhar até R$ 1.000. Mas é arriscado. Pode vir um pau doido e matar você”, diz Luz, sobre possíveis acidentes com a derrubada de árvore.

Se depois da derrubada das árvores pelos mateiros é que põem fogo?

“Certeza”, afirma o pecuarista.

Além do derrubador de árvores, são contratados os ajudantes, que são chamados de melosos. “É meloso porque fica só ali, do lado, pondo combustível e ajudando em alguma coisa”, explica Demésio Luz.

Caminhão-tanque

O que está acontecendo em Apuí reflete uma tendência maior de destruição da Amazônia. O desmatamento cresceu 67% nos sete primeiros meses do ano em relação ao mesmo período do ano passado, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). No governo, Bolsonaro criticou ambientalistas, prometeu travar demarcação de novas áreas de proteção e terras indígenas e reviveu o discurso da Guerra Fria ao atacar outras nações por supostos interesses na Amazônia.

O avanço do desmatamento e a política do governo pró-agronegócio provocou a ruptura e o fim dos repasses da Noruega e da Alemanha para o Fundo da Amazônia, que desde 2008 aportou R$ 3,4 bilhões para ações de preservação do bioma. A gota d'água para o corte dos recursos foi a decisão do Ministério do Meio Ambiente de alterar unilateralmente o conselho responsável pelas diretrizes e acompanhamento de resultados do fundo.

Segundo os produtores rurais de Apuí (AM) e os técnicos do Ibama, as queimadas deste ano foram coordenadas como nunca antes. Um dos casos sob investigação seria a chegada de um caminhão-tanque, cheio de combustível, ao interior do município, com dois ônibus forrados de gente e motosserras. Ninguém desceu nem na cidade para não chamar a atenção.


Primeiro, as motosserras puseram abaixo as árvores nativas, aguardaram alguns dias para os troncos secarem e, logo depois, espalharam combustível na área, iniciando uma onda de novos focos de incêndios.

O roteiro de primeiro desmatar e depois tocar fogo é comum e contraria a primeira versão do presidente Jair Bolsonaro, que primeiro culpou ONGs pelos incêndios que jogaram seu governo em uma crise internacional.

Coordenador do grupo de combate ao desmatamento do Ibama na região de Apuí, Danilo Nascimento contabilizou 20 autuações de desmatamento e queimada desde a semana passada. “O fogo é uma prática comum para controle das ervas daninhas da pastagem, mas, aliado a isso, houve um avanço do desmatamento”.

O “dia do fogo” em Apuí, conta o fiscal, aconteceu em 24 de julho, um mês antes de no Pará. E julho foi justamente o mês, segundo ele, de recorde de desmatamento.

Nascimento explica que a região é chamada de “vermelha”, dada a relevância do desmatamento. E que a dinâmica é simples: os grileiros invadem terras da União, “apropriação indébita, mesmo”, retiram a madeira valiosa e derrubam o resto da floresta. O fogo vem depois e se mistura com os incêndios provocados para “limpar” os pastos já existentes.

Enquanto não vira pasto, a área grilada acaba vendida por preço irrisório, avalia Nascimento.

Apesar das autuações, o fiscal admite a dificuldade de localizar os autores das queimadas de áreas desmatadas.

“O crime existe, você tem a materialidade, que é a floresta queimada, mas não tem a autoria”, diz.

“Tem desmatamento de até 3.000 hectares. Eu não entendo como é que um cara investe um recurso desses em uma área que fica longe de tudo, que não é dele”, lamenta o secretário de Meio Ambiente de Apuí, Domingos Bonfim.

Seu gabinete foi transformado em uma espécie de quartel-general com policiais militares florestais e agentes do Ibama.

Laranjas e insegurança

“Nós fizemos as contas e tem gente que gasta até R$ 3 milhões para desmatar a floresta. Depois, pega a terra e põe no nome de laranja para não ficar com a multa do Ibama, diz o pecuarista Paulo Sancler Lopes, que tem 500 cabeças de gado e há 21 anos faz o manejo do pasto sem precisar usar fogo.

"Tem gente que gasta até R$ 3 milhões para desmatar. Depois, põe no nome de laranja para não pagar a multa"

Assim como mais de 90% dos fazendeiros de Apuí, Sancler não tem título da terra e, segundo ele, não há segurança jurídica. Hoje, tem 3.000 hectares porque já perdeu terra para dois outros “proprietários”.

Primeiro, perdeu 6.000 hectares para um homem que apareceu com um papel de compra e venda de terra, afirmando que a terra era dele, mais de dez anos atrás.

Recentemente, perdeu outros 2.000 hectares para outro fazendeiro, que disse que a terra era dele, também com outro papel de compra e venda. Ninguém tem o título definitivo da área.

“Eu não vou ficar brigando na Justiça por 20 anos e criando conflito com pessoas que não conheço. Eu preferi perder”, explica ele.

A relação do fogo com a grilagem de terras

Dono de 83 hectares e produtor de leite com 130 cabeças, Adelário Ronnau, está em Apuí há mais de 30 anos. Chegou à região em 1983 desmatando como todos os colonos de sua época, incentivados pelo governo militar a povoar a região.

Hoje, tem um laticínio familiar e se orgulha de ser um dos poucos da cidade com o título definitivo da terra. “Faz muitos anos que isso aqui [sua terra] não vê fogo. Mais de 25 anos. Nós escolhemos trabalhar com uma outra via e não essa de degradação da terra”.

“Esses desmatadores estão querendo se apropriar da terra. O negócio deles é o seguinte. Eles desmatam agora, esperam um pouco e vendem depois de formar uma fazenda, de fazer o pasto”, fala Ronnau.

Os fazendeiros antigos culpam os grileiros e fazem questão de se diferenciar porque contam que vieram para Apuí incentivados pelo governo e não empurrados pelo agronegócio que se expande em Rondônia e Mato Grosso.

“O grande problema nosso chama-se Estado brasileiro. O Estado nos trouxe para cá prometendo estrada, educação, moradia e crédito. Jogou esse povo todo aí e deu as costas. Nem a regularização fundiária ele fez”, diz Sancler.

“Existe um divisor de águas que é o povo que entrou de desbravador e os mais recentes”, pondera.

A regularização fundiária foi uma das reivindicações dos governadores da Amazônia em reunião com o presidente Jair Bolsonaro.

Boi de desmate

O gado encontrado em área de desmatamento e queimada pode ser embargado e até tomado do fazendeiro pelo Ibama. A multa é de R$ 5.000 por hectare desmatado, acrescida de 50% se a área estiver queimada.

Mas o fato é que, com um rebanho de 175 mil cabeças, Apuí não tem frigoríficos e negocia o boi vivo em Manaus, sem distinção entre o gado comum e o fruto dos desmatamentos criminosos.

“A gente não sabe o que é gado de desmate e o que não é”, confirma Sancler.

“O gado sai daqui para ser vendido em Manaus. Eu nunca vi um boi voltar porque era de desmate”, resume o técnico florestal da base do Idesam (Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia) em Apuí, Melk Alcântara.

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