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Quem são e o que pensam estas duas mulheres trans eleitas deputadas em SP

As trajetórias de Erika Hilton e Erica Malunguinho, do esquerdista PSOL, vão da pobreza e da discriminação por serem negras e trans até o sucesso eleitoral bem no meio da onda de extrema-direita em outubro.

SÃO PAULO — Em uma eleição que levou à Presidência Jair Bolsonaro, um populista de extrema-direita, duas mulheres trans negras fizeram história.

Poucas semanas antes, no primeiro turno das eleições, Erika Hilton e Erica Malunguinho se tornaram as primeiras mulheres trans a serem eleitas para a influente Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Ambas filiadas ao PSOL, Malunguinho teve 55.223 votos e Hilton, eleita por um coletivo chamado Bancada Ativista, teve 149.844.

Apesar de terem trajetórias diferentes — uma era uma adolescente sem teto que entrou na política, a outra veio de uma família de ativistas —, Hilton e Malunguinho compartilham uma visão radical para seu país, centrada no empoderamento de outros afro-brasileiros. E elas não se deixam abater pelos comentários de Bolsonaro ou de seus apoiadores, e não especulam sobre quais poderão ser as futuras ações do presidente eleito. Para elas, isso não é muito diferente da discriminação que enfrentaram a vida toda.

"Um negro vivo é o maior ato de resistência nesta sociedade racialmente estratificada."

A violência contra membros da comunidade LGBTQ já havia chegado a um recorde histórico quando a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco foi baleada e morta com seu motorista, Anderson Gomes, em 14 de março deste ano. Marielle, ativista negra e lésbica, há muito tempo criticava a brutalidade policial nas favelas do Rio e era uma representante das mulheres, das mães solteiras e da comunidade pobre da cidade.

O crime abalou o país, forçando as pessoas a reconhecerem o racismo e a violência que ainda permeiam o Brasil. Oito meses depois, nenhuma prisão foi feita relacionada à morte de Marielle e do motorista Anderson. A Anistia Internacional disse que a falta de avanços nessa investigação é inaceitável.

O ambiente político tenso tornou as vitórias de Hilton e Malunguinho ainda mais notáveis. Como as duas primeiras deputadas trans na história de São Paulo, o estado mais rico e mais populoso do país, elas terão muito trabalho no Brasil de Bolsonaro.

A incursão de Erika Hilton na política começou há três anos, com uma briga com uma empresa de ônibus.

Hilton, que tinha 22 anos na época, tentava comprar um bilhete de ônibus em Itu, sua cidade natal. Mas a empresa se recusou a imprimir seu “nome social” no bilhete, o nome que ela escolheu para si depois da transição de gênero. São Paulo tem uma lei estadual que protege os direitos das pessoas trans, mas ela se estende apenas a instituições estatais, não à empresa privada com a qual Hilton entrou em conflito.

A disputa levou-a a lançar duas petições online defendendo que pessoas trans pudessem escolher seus próprios nomes. Ela acabou vencendo a briga e, assim, ganhou a reputação de defensora dos direitos dos trans. Pouco tempo depois, começou a receber convites para dar palestras em universidades e continuou a aprender mais sobre política.

Hilton disse ao BuzzFeed News que, quando um coletivo político de esquerda chamado Bancada Ativista entrou em contato com ela no início deste ano e pediu que ela fizesse parte do grupo, ficou cética. No entanto, depois considerou o significado simbólico de participar da disputa eleitoral como uma mulher negra trans, independentemente do resultado. "Aceitei o convite da Bancada Ativista, pensando em apresentar meu corpo [trans], agenda e narrativa, mas não pensei que iríamos vencer", disse Hilton.

Como Hilton concorreu sob a bandeira da Bancada Ativista, todos os nove membros compartilham tecnicamente uma única vaga, o que torna sua vitória um pouco diferente da de Malunguinho, que concorreu individualmente. O partido da Bancada Ativista e de Erica Malunguinho é o PSOL, o mesmo de Marielle Franco.

Quando Erica Malunguinho entrou no elegante restaurante do centro de São Paulo para a entrevista, a primeira coisa que fez foi colocar uma pasta verde-clara e laminada sobre a mesa. Era um currículo que alguém tinha dado a ela na rua no caminho. Desde a sua eleição, a mulher de 36 anos recebeu quase dez pedidos de emprego de pessoas que se aproximaram dela aleatoriamente na rua, disse ao BuzzFeed News.

Ao responder sobre o que a levou à política, Malunguinho imediatamente questionou se a pergunta se referia à política branca ou à política negra. Para ela, o simples fato de ser negro no Brasil — que tem a maior população de afrodescendentes no hemisfério ocidental e ainda luta contra o legado de racismo, colorismo e brutalidade policial desproporcional cometida contra os negros — é inerentemente político.

"Um negro vivo é o maior ato de resistência nesta sociedade racialmente estratificada", disse. Para Malunguinho, a política hegemônica no Brasil frequentemente ignora a história afro-brasileira, como os quilombos – comunidades fundadas por escravos fugitivos (o Brasil foi o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão, em 1888).

Há dois anos, Malunguinho estabeleceu uma espécie de quilombo moderno em São Paulo: um espaço inclusivo chamado Aparelha Luzia, que celebra a arte, a educação, a cultura e a resistência afro-brasileira. Ao decidir candidatar-se, ela sabia que sua plataforma seria uma projeção dos ideais que seu quilombo representa: o empoderamento dos marginalizados, o que inclui negros, LGBTQs e pobres. Segundo ela, nenhum dos grandes partidos políticos de esquerda era radical o suficiente para ela.

"Não parem de olhar para o Brasil. Estamos passando por um colapso."

De acordo com Malunguinho, a eleição de Bolsonaro é tanto o resultado do racismo de extrema-direita quanto da “ausência de radicalismo da esquerda, da falta de radicalismo daqueles que têm estado no poder para incluir a raça nas pautas”. Essa ausência, disse ela, "abriu espaço para que ideias racistas, homofóbicas e misóginas ganhassem poder – não apenas por meio do próprio Bolsonaro, mas por meio das pessoas que se sentem representadas por ele".

Essa ascensão de uma esquerda mais jovem, mais diversificada, mais feminina e mais radical tem paralelos com a mudança do Partido Democrata dos EUA após as eleições de meio de mandato no dia 6 de novembro. Hilton disse que foi encorajador ver os democratas americanos retomarem o controle do Congresso dos EUA.

Dada a violência que atinge desproporcionalmente os negros e homossexuais no Brasil, Hilton e Malunguinho reconhecem como seu novo status político as coloca ainda mais em risco. No entanto, como mulheres negras e trans, elas dizem que o que enfrentarão no cargo não será diferente daquilo que lidaram durante a maior parte de suas vidas.

Para Malunguinho, o maior problema enfrentado pelo Brasil, antes mesmo de Bolsonaro ser eleito, é a privação de direitos dos afro-brasileiros. Ainda que proporção de afro-brasileiros na população total oscile entre 51 e 54%, eles historicamente têm sido sub-representados no governo, mas sobre-representados nas prisões e em bairros pobres.

Antes da eleição de outubro, os brasileiros brancos representavam 71% do Congresso. Um estudo de 2015 da Oxfam Brasil apontou que, em todos os setores de trabalho, os afro-brasileiros ganham 56,5% a menos do que brasileiros brancos.

Se os comentários anteriores de Bolsonaro sobre os afro-brasileiros servem de indicação de como ele pretende lidar com essa comunidade, Malunguinho enfrentará uma tarefa difícil. O presidente eleito disse em um programa de TV local em 2011 que não permitiria que seus filhos namorassem uma mulher negra porque eles tinham sido bem-educados. Bolsonaro alegou que não havia entendido a pergunta. Em julho, disse que não achava que os brasileiros negros mereciam nenhum tipo de compensação pela escravidão.

"Que dívida da escravidão? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida", disse. "Veja, se você olha para a história, os portugueses nem pisaram na África. Os próprios negros eram quem entregavam os escravos."

Ele também se referiu aos afro-brasileiros que vivem em quilombos como pessoas que "não servem nem pra procriar", e sugeriu planos para restringir as leis federais de ação afirmativa que beneficiam brasileiros negros e pobres nas universidades.

Quando perguntei a Hilton e Malunguinho se elas tinham medo de se tornarem alvo de violência por serem as primeiras políticas trans em um país que teve o maior número de assassinatos de mulheres trans no mundo, elas responderam de outra forma.

Hilton disse que "medo" é uma palavra que resumia sua vida. Foi expulsa de casa aos 14 anos e passou vários anos vivendo nas ruas, às vezes se prostituindo para pagar as contas. Ela disse que, embora logo se torne uma figura política, sua vida não é diferente da vida das pessoas trans que conheceu quando estava lutando para sobreviver na adolescência.

Se for ter medo de sair de casa, "não é por ser uma representante parlamentar". "Tenho medo de sair de casa por ser uma mulher negra, uma mulher trans. Eu sou tão vulnerável quanto aqueles que estão nas ruas e à margem da sociedade."

A única diferença entre Hilton e outras mulheres trans, disse, era que agora ela tinha um pouco mais de influência. Ainda assim, ela reconhece que pode enfrentar perigo por se manifestar contra uma legislatura estadual tradicionalmente conservadora.

Para Malunguinho, a aceitação do que significa viver no Brasil como uma mulher negra e trans quase a liberta do medo. "Não tenho medo", disse. "De acordo com o sistema, já nasci morta." Ela diz que, além de seus próprios sentimentos, constantemente pensa no medo que outras pessoas da comunidade negra e LGBTQ vivem.

Para combater essa incerteza, disse Malunguinho, ela concentrará a maior parte de seu trabalho político na criação de "redes de solidariedade, redes de proteção e redes econômicas, para podermos fazer o trabalho necessário de ser a voz da oposição".

A votação de outubro apenas revelou quantas pessoas apoiam não apenas Bolsonaro como indivíduo, mas suas visões políticas e culturais, que favorecem os religiosos (especificamente os cristãos), os conservadores e os defensores da polícia e do livre comércio.

Após 13 anos do Partido dos Trabalhadores ocupando a Presidência da República — período que terminou com a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff em meio a um multibilionário escândalo de corrupção —, uma economia estagnada e um aumento acentuado da violência, os eleitores enxergaram em Bolsonaro uma possibilidade concreta de mudança.

No entanto, a eleição também mostrou quantas pessoas apoiam Hilton e Malunguinho. Elas não assumirão oficialmente seus cargos na Assembleia Legislativa até janeiro, quando Bolsonaro também tomará posse, mas já estão sendo reconhecidas.

Quando Hilton estava sendo fotografada para esta reportagem, um homem se aproximou dizendo o quanto estava feliz por ela ter sido eleita e que tinha esperança de que ela trouxesse mudanças. Recentemente, ela proferiu uma palestra na Universidade de São Paulo (USP) sobre a importância da representação política; os estudantes ficaram em silêncio e focados durante o discurso de quase 30 minutos, antes de irromperem em aplausos no final.

A base política de Malunguinho no Aparelha Luzia é forte; foi o primeiro lugar para onde foi quando soube que havia sido eleita e continua sendo um local de encontro animado para todas as coisas relacionadas à política. O gerente do restaurante onde nossa entrevista foi realizada a abraçou várias vezes, e, em seguida, insistiu que sua refeição fosse por conta da casa.

Hilton disse que reconhecer o progresso em meio à incerteza política é um equilíbrio complicado de atingir e fez um apelo ao resto do mundo para continuar de olho no que está acontecendo no Brasil. "Estamos vivendo um momento em que os militares retomarão o poder, e, desta vez, não por um golpe, mas pelo processo democrático", disse. "Isso dá a eles ainda mais poder para fazer o que quiserem. E nós já sabemos como são os militares no poder. Não parem de olhar para o Brasil. Estamos passando por um colapso."


A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Luísa Pessoa.

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