O estudo que "concluiu" que mulheres não se interessam por exatas usou dados forjados, diz pesquisadora de Harvard

    Jordan Peterson citou o estudo para argumentar que mulheres teriam um desinteresse inato pelas áreas técnicas. Mas pesquisadores externos detectaram “um cenário forjado e distorcido” no estudo.

    Mulheres são sub-representadas em ciências, tecnologia, engenharia e matemática, e há dois anos um estudo ofereceu uma explicação contraintuitiva sobre o motivo. Os autores apontaram que países com maior igualdade de gênero, como a Finlândia, tendiam a ter menos mulheres obtendo diplomas nessas áreas.

    Mas mais mulheres estudavam ciência e tecnologia em países com políticas de gênero menos progressistas, como a Argélia, segundo os pesquisadores, que chamaram este fenômeno de “paradoxo da igualdade de gênero” na educação em exatas.

    A descoberta de 2018 atraiu a atenção de veículos tradicionais de comunicação, como The Atlantic e o Ars Technica, assim como do American Enterprise Institute, um órgão de pesquisa conservador, e de Jordan Peterson, o psicólogo polemista conhecido por seus vídeos no YouTube abordando o que ele chama de “crise da masculinidade”. Peterson e outros citaram o estudo para argumentar que, livres das restrições sociais, mulheres escolhem se manter longe de áreas técnicas — uma escolha feita por causa de um desinteresse inato.

    Mas pesquisadores externos questionaram essa conclusão após tentarem replicar o estudo original e falharem. Sarah Richardson, uma historiadora científica na Universidade de Harvard, disse ao BuzzFeed News que os autores do estudo utilizaram um “conjunto de dados bastante seletivo” para produzir “um cenário forjado e distorcido da distribuição global de realizações femininas na área de exatas”.

    Em dezembro de 2019, uma longa errata de 1.113 palavras foi acrescentada ao estudo, esclarecendo como os pesquisadores chegaram às suas conclusões e corrigindo várias sentenças e números enganosos. Em um artigo separado e em uma série de publicações no blog do Laboratório de Ciências de Gênero de Harvard na terça-feira, Richardson e seus colegas expuseram o que viram como problemas significativos na metodologia do estudo, incluindo os cálculos dos pesquisadores para determinar a porcentagem de mulheres formadas em exatas e as métricas que utilizaram para avaliar a igualdade de gênero em cada país.

    E eles questionaram a premissa fundamental do estudo: que a correlação que os autores aparentemente encontraram entre o nível de igualdade de gênero e o número de mulheres formadas em exatas em um país significa que o primeiro afeta o último diretamente.

    “Quando olhamos de forma mais aprofundada, esse parece ser um caso de manipulação de dados — selecionando medidas diferentes de igualdade de gênero e de mulheres em exatas para países diferentes — a fim de produzir a narrativa que se quer ver”, disse Richardson.

    “Concluindo, não achamos que exista um ‘paradoxo da igualdade de gênero’”.

    Quando o estudo foi publicado em fevereiro de 2018 na revista Psychological Science, ele forneceu munição para canais no YouTube como o Independent Man. “Não é que mulheres não sejam capazes de estudar exatas em sociedades mais igualitárias”, dizia um vídeo do canal. “Elas simplesmente optam por não fazer isso”.

    Este vídeo, que foi visualizado mais de 89.000 vezes, está acompanhado por vídeos como “Desmentindo a narrativa do Black Lives Matter” e “Feminilidade Tóxica”.

    Em uma entrevista na época, Peterson mencionou “um estudo excelente” mostrando que "à medida que as sociedades tornam-se mais igualitárias, a lacuna entre homens e mulheres matriculados em exatas aumenta”. Ele acrescentou: “E o que as feministas dizem sobre isso? Que é ‘pseudociência’”.

    E um membro do American Enterprise Institute citou o estudo para argumentar que a baixa representatividade de mulheres em exatas “pode ser, na verdade, o resultado de grandes avanços no empoderamento feminino, progressos e avanços ocorridos em décadas recentes, e não o resultado de uma discriminação sistemática de gênero”.

    No estudo, dois psicólogos — Gijsbert Stoet, agora na Universidade de Essex, e David Geary, da Universidade do Missouri — descobriram que, na maioria dos países, meninas são tão boas quanto meninos em matemática e ciências, e frequentemente melhores. Mas em países com maior igualdade de gênero, como Noruega e Finlândia, mulheres compõem menos de 25% dos formados em exatas. Por si só, essa lacuna entre os gêneros não é novidade. Mas os pesquisadores propuseram a teoria de que, como esses países tendem a ser mais ricos, as mulheres têm a liberdade financeira de buscar carreiras nas suas áreas de interesse naturais, o que as direciona mais para as humanas.

    Em contraste, segundo a análise, em países com um histórico de menor igualdade de gênero, tais como Argélia e Turquia, mulheres representam uma porcentagem muito maior de formadas em exatas. Visto que esses países tendem a oferecer menos oportunidades econômicas, essas condições “podem tornar profissões relativamente bem-remuneradas em exatas mais atraentes” para mulheres, escreveram Stoet e Geary.

    Mas Richardson achou que muitos desses números pareciam duvidosos. Portanto, ela e uma equipe tentaram recriar a análise com os dados publicamente disponíveis em que foi baseada, incluindo dados da UNESCO sobre formação universitária.

    Por exemplo, os pesquisadores relataram que “a porcentagem de mulheres entre os formados em exatas” na Argélia era de 40,7%. Mas Richardson descobriu que em 2015 a UNESCO informou um total de 89.887 formados em exatas na Argélia, e 48.135 deles — ou 53,6% — eram mulheres.

    Então de onde vieram os 40,7%?

    No fim das contas, a equipe de Richardson descobriu que Stoet e Geary somaram conjuntos diferentes de números: a porcentagem de formados em exatas entre mulheres (no caso da Argélia, 26,66%) e a porcentagem de formados em exatas entre homens (38,89%). A soma dessas porcentagens resultou em um total de 65,55%. Em seguida, eles dividiram a porcentagem de mulheres formadas em exatas pelo total, produzindo um índice de 40,7%.

    “O que eles fizeram foi criar seu índice próprio desses dois, que nunca foi validado ou utilizado em pesquisas na área de exatas”, disse Richardson.

    Essa métrica não foi explicada no estudo. Na errata recentemente publicada, os autores detalharam os cálculos que elaboraram.

    Após Richardson e seus colegas recalcularem os números de cada país, eles descobriram que, no geral, o estudo subestimou em 8% o número de mulheres formadas em exatas no mundo todo.

    Esse não foi o único problema. Mesmo após a equipe de Richardson descobrir o método que os autores do estudo utilizaram para calcular o índice, ela ainda não conseguiu replicar todos os seus resultados. Richardson também encontrou problemas com a métrica utilizada para avaliar o nível de igualdade de gênero de cada país e o fato de que o estudo não examinou tendências a longo prazo.

    A equipe de Richardson descobriu que há variações grandes nas lacunas de gênero entre os formados em exatas em diferentes países, não importa como são medidas. “Essas variações não se conformam a padrões simples”, escreveram Richardson e o aluno de graduação Joseph Bruch em uma publicação do blog, acrescentando que as desigualdades de gênero “não são facilmente representadas em uma única dimensão e com uma única medida, como Stoet e Geary tentaram fazer”.

    Maria Charles, uma socióloga na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara que estuda gênero e educação na área de exatas e que não estava envolvida na análise de Richardson, disse ao BuzzFeed News por e-mail: “Não há evidência de que estereótipos e vieses inconscientes de gênero sejam menos pronunciados em sociedades industriais avançadas, mesmo naquelas em que as mulheres são bem representadas em universidades, mercados de trabalho e política”.

    Em uma carta respondendo às alegações de Richardson, Stoet e Geary disseram ter escolhido sua métrica com o fim de refletir a probabilidade de uma mulher se formar em exatas em comparação à de um homem. Eles também disseram que, apesar da abordagem específica nos cálculos que fizeram, a correlação geral que encontraram entre os níveis de igualdade de gênero dos países e o número de mulheres em exatas permanecia a mesma. Stoet e Geary não responderam a pedidos de comentário para este post.

    Richardson disse ter enviado um e-mail para Stoet com perguntas sobre a fonte de seus números em dezembro de 2018. Segundo ela, ele respondeu e então parou de escrever de volta, e foi aí que ela entrou em contato com os editores do Psychological Science.

    Ao serem questionados sobre se o estudo deveria ser retratado em vez de corrigido, os editores Tim Pleskac e Steve Lindsay disseram por e-mail:

    “Em nossa opinião, a retratação seria apropriada caso houvesse sido demonstrado convincentemente que os resultados relatados são fundamentalmente incorretos. Em nossa opinião, o artigo de Stoet e Geary não estava fundamentalmente incorreto após a errata.”

    Richardson disse que a confusão por trás das descobertas reforça a inexistência de um único fator que determine se mulheres buscam carreira ou obtêm sucesso em ciências e tecnologia.

    “Padrões culturais em torno das conquistas e preferências femininas nas exatas são incrivelmente complexos e diversos ao redor do mundo”, ela disse.


    Este post foi traduzido do inglês.

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