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Na Rocinha, a maior favela do Brasil, tem gente vendendo o celular para comprar comida

A pandemia deixou exposta a enorme concentração de renda no Brasil: coronavírus atingiu primeiro os estratos mais ricos, mas tende a bater com mais força em comunidades densamente povoadas e de baixa renda, segundo especialistas.

Arthur Carvalho tem 22 anos e mora na Rocinha, no Rio, a maior favela do Brasil. Ele era servente de pedreiro até semana passada, mas o trabalho desapareceu junto com a expansão do coronavírus no país.

Na Rocinha, cuja população ultrapassa 100 mil pessoas, há ao menos 34 casos confirmados. Nas favelas do Rio, ao menos 10 pessoas já morreram por causa da Covid-19, 3 delas na Rocinha. O número pode ser bem maior, porque a falta de testes é um problema crítico no país inteiro.

O colapso financeiro das famílias nas favelas chegou junto com a doença. Além de retirar parte do sustento do barraco de Arthur, sua mulher estava trabalhando há algum tempo num restaurante em Recreio dos Bandeirantes (Zona Oeste) e antes que sua carteira fosse assinada recebeu o comunicado que ali não haveria mais trabalho para ela.

“Estou desempregado e pago aluguel. O dono da casa me aliviou mas pediu pra pagar as contas da casa, a água. Eu não consigo entrar no seguro desemprego porque preenchi alguma coisa errada e os locais estão fechados, não dá pra resolver nada”, lamentou.

Para sobreviver aos primeiros dias, sua esposa vendeu seu aparelho celular. “A gente precisava comprar comida”.

São nessas comunidades, onde famílias inteiras se espremem em moradias minúsculas, que cresce o risco de o coronavírus produzir o maior número de vítimas, segundo os infectologistas e o Ministério da Saúde.

Segundo o DataRio, a Rocinha tem 48 mil habitantes por km quadrado – quase nove vezes mais do que a média do restante da cidade. É praticamente impossível manter medidas de isolamento urbano em moradias com alta densidade populacional.

Nos primeiros dias da quarentena, entre 17 a 20 de março, a favela ficou vazia como nunca se viu, como disse ao BuzzFeed News Severino Franco, 38, da Associação de Cultura, Arte e Esporte da Rocinha (ACER). Mas as medidas de isolamento social aos poucos foram sendo relaxadas porque as famílias precisam buscar a sobrevivência.

O problema é que, à medida que os dias foram passando, mais e mais pessoas começaram a sair de casa. “Eu não diria que está todo mundo fora não. Mais pode colocar aí, de dia, uns 70% da comunidade na rua. Já à noite tudo está fechado”, disse o líder comunitário.

Segundo relatos dele e de outros moradores, no início, os comércios do pé do morro ficavam fechados. Os menores, na parte alta, não respeitaram o toque de recolher.

Hoje, até os bares que ficam na entrada da favela abrem um pequeno pedaço na porta para conseguir vender seus produtos e ganhar algum dinheiro.

Além disso, Severino relatou vários problemas que impedem a quarentena para os moradores da favela. “Tem o porteiro, a faxineira, e se a pessoa não for pro trabalho, ela perde. Esse é um momento que nos mostra a disparidade social entre o morro e o asfalto”.

A Rocinha ficou irreconhecível em março por causa do isolamento, mas a situação está mudando...

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CORONAVÍRUS TENDE A BATER MAIS FORTE NAS FAVELAS

A pneumologista Margareth Dalcolmo, da Fiocruz, uma das mais importantes instituições de pesquisa do país, diz que é irrealista esperar que o confinamento funcione em favelas e bairros pobres do mesmo jeito que funciona nas regiões mais ricas do país.

"É comum na Rocinha e em outras comunidades que 5, 6 ou 7 pessoas dividam o mesmo cômodo, sendo que este cômodo é ao mesmo tempo onde as pessoas dormem e cozinhem", disse.

Dalcomo, que integra o comitê de cientistas que assessora o governo do Estado do Rio na crise do coronavírus, é uma veterana na Rocinha – ela trabalhou durante a última década num projeto visando reduzir a incidência e as mortes por tuberculose, doença infecciosa que ataca os pulmões.

A experiência com a tuberculose na favela dá pistas de como o coronavírus pode bater mais forte em comunidades com alta densidade demográfica e baixa renda. No Brasil, são diagnosticados, em média, 34 casos de tuberculose para cada 100 mil habitantes. A taxa da Rocinha é de 300 casos por 100 mil habitantes.

A única política capaz de funcionar na Rocinha e em outras favelas, segundo a cientista, precisa ser fortemente assistencialista.

"O que defendemos é que haja doações pesadas de cestas básicas para que as pessoas não precisem sair e fazer chegar grandes quantidades de sabão líquido, luvas e máscaras para os moradores", diz.

A água é outro problema. Nem todos os moradores da favela têm água encanada em casa e os que têm precisam ter a garantia de que não haverá cortes por falta de pagamento, diz Dalcolmo.

Em abril, as medidas de isolamento na Rocinha não estão funcionando completamente porque as pessoas precisam sair de casa para ganhar o sustento.

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VÍRUS, CLASSE SOCIAL E BRIGA POLÍTICA

No maior país da América Latina, o coronavírus chegou primeiro aos ricos e às classes sociais mais altas. Antes do início do contágio comunitário, que é como os especialistas em epidemias definem o momento em que o vírus passou a circular livremente, os primeiros casos registrados no Brasil foram de pessoas que se contaminaram no exterior e trouxeram o vírus.

A primeira morte por Covid-19 no Rio é reveladora deste abismo entre ricos e pobres no Brasil. A primeira vítima foi uma empregada doméstica de 63 anos, moradora do município de Miguel Pereira, que nunca tinha estado fora do país, mas foi contaminada pela patroa que voltou de férias na Itália.

A paciente trabalhava no apartamento de uma família no Leblon, a 120 km de onde morava, e dormia no emprego quatro noites por semana. A empregadora esteve na Itália durante o Carnaval, e quando morreu a empregada voltou ao trabalho. Os primeiros sintomas apareceram em 16 de março. 48 horas depois ela morreu.

“A patroa não avisou para ela que achava que estava doente”, contou o irmão da paciente para a Agência Pública. O BuzzFeed News não conseguiu contatar a família antes da publicação desta reportagem.

O Brasil registrou seu primeiro caso do novo coronavírus no dia 26 de fevereiro. De lá para cá, 30.425 pessoas foram contaminadas e 1.925 morreram devido à doença. No Rio a doença apareceu oficialmente na estatística em 5 de março. Hoje o Estado soma 3.944 casos com 301 mortes, segundo o dado mais recente. Outras 130 mortes estão sob investigação no Estado.

Segundo a pesquisadora Margareth Dalcolmo, os dados oficiais estão fortemente distorcidos pela subnotificação. Ela estima que para cada caso confirmado existam outras 15 pessoas contaminadas fora da estatística.

"Um fator crítico é como detectar e tratar os casos graves em locais desfavorecidos, sem ou com pouca presença de serviços médicos", diz a pesquisadora.

"De certa maneira, essa pandemia mostrou que o rei está nu e já está expondo, de maneira muito cruel, a obscena concentração de renda no Brasil", disse.

A REDE DE SOLIDARIEDADE

Com o colapso econômico trazido pela crise do coronavírus, a gestão de doações está sendo feita por lideranças comunitárias.

“Nós temos como identificar os moradores que precisam. Anotamos o nome e marcamos uma hora para eles pegarem as cestas na Associação, evitando a aglomeração, nem sempre é possível, e a gente vai ali pedindo para o pessoal dispersar para proteger a saúde”, diz o diretor da Associação de Moradores da Rocinha, Antonio Ferreira, conhecido o Xaolin.

Praticamente todas as entidades que atuam na Rocinha estão empenhadas em distribuir alimentos e tentar convencer os moradores a não sair de casa. Nem sempre dá certo.

Arthur Carvalho, o servente de pedreiro desempregado, explica por que o confinamento tem sido impraticável.

“A gente sai de casa por necessidade, precisa ir atrás de uma cesta básica, algo desse tipo, por mim, ficaria dentro de casa. Mas o tédio acaba consumindo também. Acaba que a gente sai quase todo dia. Precisa ir na casa da mãe, ir no correio. Durante o dia a maioria do pessoal para resolver alguma coisa."

"Tem dia que acaba detergente, esses dias acabou o gás e um colega que estava sendo despejado, eu dei meio botijão. E assim a gente vai se virando".

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NO ISOLAMENTO

Ao mesmo tempo em que muitos dos moradores não estão em isolamento na Rocinha, há também aqueles que fazem questão de ficar em casa e criam uma espécie de rotina para manter a sanidade.

Um exemplo é Ronaldo Deolindo, de 61 anos. Ele é motorista de micro-ônibus para uma faculdade do Rio. Ainda não sabe se, com a crise, irá ou não retornar ao emprego.

Sua única certeza é a de que não quer sair de casa.

“Minha esposa tem 45 anos, temos uma filha de 4, quando precisa comprar leite e pão minha esposa vai, e vai tomando cuidado”.

Para aguentar o isolamento, diz que dá varanda até seu quarto são 30 passos. Ele repete o percurso por 100 vezes e depois faz algumas flexões de braço para aguentar o tédio de ficar em casa.

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