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Como a mudança de algoritmo do Facebook está ajudando os “coletes amarelos” a sacudir a França

Os piores protestos na França nos últimos anos poderiam não ser tão graves sem a decisão do Facebook de priorizar notícias locais.

Nesta semana, manifestantes escalaram o Arco do Triunfo, incendiaram carros e entraram em confronto com a polícia no terceiro fim de semana consecutivo de protestos na França. Mais de 300 pessoas foram presas em Paris no último final de semana, e 37 mil policiais foram mobilizados em todo o país na tentativa de restaurar a ordem.

Os protestos dos “gilets jaunes”, ou “coletes amarelos”, só vêm ficando mais violentos desde que começaram, no mês passado. Três pessoas morreram e centenas ficaram feridas. Os manifestantes dizem que lutam contra o aumento dos preços dos combustíveis e contra o alto custo de vida no país – mas, tirando esses dois pontos, o discurso deles é um vale-tudo ideológico. Houve conflitos e ameaças de mortes entre os próprios participantes dos protestos.

Mas o que está acontecendo agora na França não surgiu do nada. O movimento dos coletes amarelos – que recebeu esse nome em homenagem aos coletes de segurança coloridos e brilhantes dos manifestantes – é uma fera que nasceu nas entranhas do Facebook. E o movimento está ficando cada vez mais popular. Pesquisas recentes indicam que a maioria dos franceses agora apoia os manifestantes. O movimento francês, que está corroendo a popularidade do presidente Emmanuel Macron, guarda similaridades com as manifestações de março de 2013 ou a greve dos caminhoneiros no Brasil, pelo menos em se tratando de atos que reunem multidões, sem liderança clara e mobilizadas por redes sociais. Os coletes amarelos se comunicam quase que inteiramente via pequenas páginas do Facebook, sem nenhuma centralização. As ações são coordenadas por meio de memes e vídeos virais. O que for mais vezes compartilhado acaba se tornando parte da plataforma deles.

As alterações que o Facebook fez em seu algoritmo no início deste ano acabaram gerando uma estranha combinação com a devoção na França à identidade local e regional, e o resultado é que agora o país enfrenta os piores protestos em muitos anos – em Paris, é o pior em meio século.

Não é a primeira vez que um fenômeno viral no Facebook termina em violência na vida real, e certamente não será a última. Muito já foi escrito sobre os protestos antimuçulmanos com origem no Facebook em Mianmar e no Sri Lanka, e sobre os linchamentos insuflados via WhatsApp no Brasil e na Índia. Bem, o mesmo processo está acontecendo na Europa agora, e em grande escala. Veja como o Facebook ajudou a incendiar a França.

Em janeiro deste ano, "grupos raivosos" (groupes colère) começaram a aparecer pelo Facebook francês. O primeiro grupo foi intitulado “Você está farto? Agora é o momento!” e foi iniciado por um pedreiro português chamado Leandro António Nogueira, que vivia no département — ou território administrativo, equivalente a Estado no Brasil — de Dordonha.

O grupo de Nogueira pediu que os membros protestassem pacificamente contra as autoridades locais bloqueando as estradas. Nogueira então rapidamente ajudou a criar "grupos raivosos" em outros départements pela França. Esses grupos imediatamente deram às pessoas de classe média-baixa e das classes trabalhadoras das pequenas cidades a chance de protestar sobre questões locais. O primeiro grupo de Nogueira no Facebook, que é privado, tem atualmente cerca de 90 mil membros.

Não era por acaso que essas páginas estavam ganhando popularidade. No mesmo mês em que Nogueira organizou seu primeiro grupo, Mark Zuckerberg anunciou uma mudança de algoritmo no feed de notícias do Facebook para que ele priorizasse "notícias confiáveis, informativas e locais". As atualizações foram feitas para combater o sensacionalismo, a desinformação e a polarização política, dando maior visibilidade às postagens locais em detrimento das páginas de publicações editoriais.

Então, o Facebook mexeu no seu algoritmo, e os "grupos raivosos" locais se espalharam pelo Facebook francês em uma velocidade alarmante. Os grupos conseguiram organizar mais de dez protestos de tamanho considerável no inverno passado. Os départements franceses são identificados pelo número de seu código postal, e por isso entre janeiro e fevereiro manifestações com nomes como "Raiva 24" ou "Raiva 87" apareceriam, fechariam estradas e protestariam por coisas como reformas da legislação trabalhista, redução dos limites de velocidade em estradas movimentadas, ou propondo planos locais de vacinação. Os "grupos raivosos" também eram, e ainda são, um grande foco de desinformação antivacinação.

Na primavera, o movimento de protesto tinha mais ou menos diminuído. Mas em 29 de maio, uma mulher de 32 anos do subúrbio de Sena e Marne, em Paris, chamada Priscillia Ludosky, entrou no Change.org e criou uma petição intitulada “Pour une Baisse des Prix du Carburant à la Pompe!”, ou “Por uma queda nos preços dos combustíveis nas bombas!”. O BuzzFeed News tentou entrar em contato com ela.

Priscillia, uma empreendedora que atualmente vende cosméticos orgânicos e dá orientação de aromaterapia online, disse ao Le Parisien que iniciou a petição após pesquisar a respeito dos impostos sobre os combustíveis e ficar escandalizada com seu valor. Mas sua petição não se tornou viral imediatamente. Ela recebeu apenas algumas centenas de assinaturas, a princípio.

De acordo com a página de Priscillia no Facebook, ela passou o verão na plataforma compartilhando links de vários produtos de aromaterapia e promovendo sua petição do Change.org. Enquanto isso, os preços da gasolina na França estavam aumentando. Mas as coisas não haviam realmente explodido até outubro.

Em 10 de outubro, Priscillia Ludosky escreveu em sua página que uma estação de rádio local prometeu recebê-la em um de seus programas se a petição passasse de 1.500 assinaturas. Um dia depois, ela escreveu que apareceria no programa no dia seguinte.

A entrevista para a rádio foi transcrita por uma pequena página de notícias locais de Sena e Marne e compartilhada em uma página no Facebook do département com cerca de 50 mil inscritos. Parece que foi aí que tudo começou a crescer. O artigo teve cerca de 500 compartilhamentos da página do Facebook local e muito engajamento.

No mesmo dia em que Priscillia foi à rádio, uma segunda petição contra os impostos dos combustíveis foi publicada no site francês de colaboração coletiva MesOpinions, intitulada “Pour un prix du carburant plafonné à 1€ le litre”, ou “Por um preço de combustível de € 1 por litro”. A petição do MesOpinions tornou-se viral rapidamente. De acordo com uma análise feita pela ferramenta de inteligência de mídia social BuzzSumo, essa petição recebeu 160 mil interações somente da página do MesOpinions no Facebook.

Houve também um evento no Facebook criado em 12 de outubro por dois caminhoneiros, Eric Drouet e Bruno Lefevre, do mesmo subúrbio parisiense de Priscillia Ludosky. O evento foi chamado de "Bloqueio Nacional Contra o Aumento do Combustível", e foi marcado para 17 de novembro. "Nós conversamos uma noite no telefone e dissemos que estávamos cansados de pagar impostos e ver o preço do combustível aumentar", disse Lefevre ao jornal francês Libération.

Em 15 de outubro, foi iniciado um grupo chamado “Pelo fim do combustível a preço de ouro”, e ele compartilhou a petição do MesOpinions. Desde então, o grupo mudou seu nome para "França Irada" e teve 17,3 milhões de interações desde outubro, de acordo com outra ferramenta de inteligência de mídia social, o CrowdTangle. Segundo o CrowdTangle, todos os dez "grupos raivosos" públicos mais populares foram criados na mesma semana em que Priscillia Ludosky foi à rádio e a segunda petição se tornou viral.

Em 22 de outubro, o Le Parisien publicou a petição de Priscillia de maio, que naquele momento ainda não tinha recebido tanta atenção, especialmente comparada ao tráfego de Facebook que a petição do MesOpinions estava recebendo na época. Mas, depois do artigo do Le Parisien, a petição de Priscillia finalmente saltou de 10 mil assinaturas para 225 mil. O artigo em si também se tornou viral. Em um texto de 24 de outubro, o Le Parisien se gabou de que a petição original de Priscillia Ludosky não tinha recebido nenhuma atenção até ela ser publicada pelo jornal dois dias antes.

Portanto, o que aconteceu em menos de duas semanas foi o seguinte: uma petição do Change.org com menos de 1.500 inscritos vira assunto em uma rádio local; a conversa na rádio é publicada por um site de notícias local; o artigo é compartilhado em uma página local do Facebook; graças a uma mudança no algoritmo do Facebook, que agora prioriza a discussão local, o artigo domina as conversas em uma cidade pequena; dois homens de um mesmo subúrbio transformam a petição em um evento no Facebook; uma cópia da petição se torna viral dentro de grupos locais do Facebook; depois, um jornal diário publica a petição original; esse segundo artigo sobre a petição também se torna viral, assim como a petição original. E então o resto da mídia francesa entra na onda.

A petição de Priscillia Ludosky agora tem mais de um milhão de assinaturas.

Os "grupos raivosos" sempre foram grandes centros de notícias falsas. A atenção nacional recém-descoberta está tornando as coisas ainda piores. A descrição do grupo "Cidadãos Irados" diz que seu verdadeiro objetivo é defender a França contra uma cabala maçônica de banqueiros globais que controlam o país. Atualmente, o grupo possui 15 mil membros.

Entre as primeiras publicações compartilhadas pelo grupo “França Irada”, um dos grupos públicos com maior engajamento no momento, está uma publicação que vem circulando pela internet desde pelo menos 2017 e que afirma que um milhão de alemães abandonaram seus carros e caminharam pelas ruas para protestar contra o aumento dos preços dos combustíveis. Os alemães não fizeram nada disso, e a foto que acompanha a publicação é provavelmente de um engarrafamento na China em 2010.

Outro rumor, supostamente espalhado por um youtuber francês, sustentava que a polícia nacional marcharia em 17 de novembro junto com os "coletes amarelos". Antes do mesmo protesto, grupos do Facebook dos coletes amarelos estavam cheios de fotos de uma carta falsa do Palácio do Eliseu, a residência oficial do presidente francês. Na carta, o presidente Emmanuel Macron pedia o "uso da força" contra os manifestantes. O texto não só era obviamente falso como ainda estava cheio de erros de digitação.

Como os coletes amarelos não têm uma liderança única, o movimento acaba indo na direção de qualquer vídeo que viralize o bastante para causar impacto.

Até mesmo o agora icônico colete de segurança que todos os manifestantes usam vem de um vídeo viral no Facebook. Ghislain Coutard, de 36 anos, de Narbona, publicou um vídeo em 24 de outubro pedindo aos manifestantes que usassem o colete amarelo, um item que todos os motoristas franceses precisam ter em seus carros. "Se pelo menos fizéssemos o que fizemos pela Copa do Mundo de 1998 e 2018, mas pelo combustível, pelos impostos, por tudo, tudo", diz Coutard no vídeo. “Todos nós temos um colete amarelo no carro. Exiba-o no painel do carro, toda a semana, até o dia 17 — um sinal simples para mostrar que você concorda conosco.”

Seu vídeo tem 5,4 milhões de visualizações e mais de 200 mil compartilhamentos.

Maxime Nicolle, uma das oito pessoas que afirmam ser porta-vozes do movimento, é um prolífico compartilhador de teorias da conspiração. Nicolle, que é conhecido como “Fly Rider”, foi gravado dizendo que um homem — que pediu para permanecer anônimo — o havia feito assinar recentemente um acordo de confidencialidade antes de dar a ele documentos secretos.

“Agora eu sei coisas que podem levar as pessoas a tentarem me matar. Se você visse apenas uma folha das 30 que eu vi esta noite, isso provocaria uma terceira guerra mundial em menos de uma hora”, disse ele a um grupo de coletes amarelos. Nicolle disse em uma transmissão ao vivo no Facebook que, se o nome do homem anônimo fosse revelado, "Macron teria um derrame". No mesmo vídeo, Nicolle disse depois que, independentemente dos segredos que ele sabe, as pessoas deveriam continuar protestando.

Por trás de qualquer tipo de teoria da conspiração na internet francesa que você possa imaginar, provavelmente há um colete amarelo em um "grupo raivoso" espalhando-a, incluindo a teoria de que o Facebook está censurando todas as publicações dos coletes amarelos.

Esse vale-tudo viral finalmente chegou ao auge em 17 de novembro, quando 300 mil coletes amarelos se mobilizaram em toda a França. Foi um desastre logístico. Uma pessoa morreu, 585 pessoas ficaram feridas, outros 115 policiais ficaram feridos, e os militares tiveram que ser enviados para a ilha francesa de Reunião, após saques e manifestações eclodirem. A violência só piorou desde então.

Mas, seja considerado indisciplinado e violento ou não, o movimento é popular: ele tem o apoio de 72% dos franceses atualmente. Os sindicatos estão anunciando seu apoio. E agora eles também têm colocado o presidente Macron contra a parede. O primeiro-ministro da França, Édouard Philippe, anunciou na terça-feira que os aumentos de impostos dos combustíveis seriam suspensos por seis meses.

Thomas Miralles, um porta-voz dos coletes amarelos que tem 25 anos e registrou o nome de domínio "gilets jaunes", disse ao BuzzFeed News que o movimento ficou muito grande e espera que a violência deste fim de semana ultrapasse a dos protestos anteriores. "Acho que será um verdadeiro desastre", disse ele.

Miralles disse que foi atraído inicialmente pelo movimento quando viu uma petição e o evento no Facebook, e achou que isso era uma boa maneira de organizar as pessoas. Mas, com a violência e as notícias falsas que ele está vendo, Miralles está inseguro sobre o que acontecerá. Além disso, o recuo de Macron acerca do aumento de impostos não o confortou muito. "Eles anunciaram que suspenderiam os impostos por seis meses, mas o que acontece em seis meses?", disse ele.

Não há planos para o movimento acabar. Dê uma conferida rápida em qualquer grupo dos coletes amarelos: eles não estão comemorando. Se os protestos do próximo fim de semana forem extremos como teme Miralles, não se sabe o que Macron fará. Ele já discutiu a possibilidade de decretar estado de emergência.

Mas, o que quer que aconteça, pode apostar que tudo será documentado e transformado em meme exaustivamente, e, é claro, postado no seu "grupo raivoso" local. ●

Com reportagem de Jules Darmanin.

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Este post foi traduzido do inglês.

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