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"Fracassar não é opção": a missão desesperada do único navio que ainda resgata refugiados no Mediterrâneo

MEDITERRÂNEO CENTRAL — “Deixe a área agora, imediatamente”, disse a voz do navio al-Khifa, da guarda costeira da Líbia. “Eu sou a autoridade aqui. Deixe a área agora, imediatamente."

Eram 4h quando a ameaça chegou pelo rádio ao Aquarius, que navegava em águas internacionais a cerca de 30 milhas da Líbia.

Em meio aos dois navios, um minúsculo barco de madeira esperava a resolução do impasse, lotado com pessoas que o navio da ONG tentava resgatar. Eram homens, mulheres e crianças que haviam fugido de Zuara (Líbia), na noite anterior, na esperança de chegar à Europa.

O BuzzFeed News esteve a bordo da última missão do Aquarius e pode testemunhar as inúmeras dificuldades que hoje enfrentam operações de resgate no Mediterrâneo. No caso do Aquarius, os líbios foram apenas mais um obstáculo.

Quando o sol raiou, o contorno do al-Khifa se aproximou. "Vocês já nos causaram muitos problemas", disse o rádio. “Vocês estão ajudando contrabandistas e imigrantes ilegais. Nós dissemos para vocês prestarem atenção. Como de costume, vocês desobedeceram nossas instruções. Vamos nos aproximar."

Da ponte — a central de controle silenciosa do navio, iluminada apenas pelo brilho vermelho do radar —, a ordem foi dada para “recuarem de forma amigável e tranquila”. As pessoas do barco de madeira, que ficaram à vista do Aquarius por horas, não estavam mais em segurança, pois os funcionários do navio humanitário foram forçados a se afastarem devido à presença dos líbios.

"Quando vimos uma embarcação se aproximando, já imaginávamos que seria a guarda costeira da Líbia", disse Lotte Bridgham, de 20 anos, sentada em uma das duas lanchas infláveis equipadas para missões de resgate. “Era [como] um navio de guerra saído de Mordor.”

Desde o seu lançamento em 2016, o Aquarius, dirigido pelas ONGs Médicos Sem Fronteiras (MSF) e SOS Méditerranée, foi ao mar 44 vezes. O BuzzFeed News se juntou à eles por 20 dias, em setembro, para ver o funcionamento dessas missões de busca e resgate de refugiados em alto mar.

Politicamente, as nações europeias estão ignorando as mortes no Mediterrâneo central, empurrando o problema para os líbios. Os europeus estão cansados da chegada de refugiados e migrantes — como demonstrado pelo resultado das últimas eleições em todo o continente.

Isso tem tornado as missões de resgate do navio cada vez mais difíceis. A pergunta agora é: até quando navios de busca e resgate, como o Aquarius, conseguirão continuar salvando refugiados?

“Eu não me chamaria de humanitário. Afinal, você não chamaria a brigada de bombeiros de humanitária", disse Nick Romaniuk, de 33 anos, coordenador de busca e resgate do SOS Méditerranée. “As pessoas estão morrendo no mar. Simples assim."

Aproximadamente 14.743 homens, mulheres e crianças morreram tentando atravessar o mar vindos da Líbia, do Egito e da Tunísia até a Europa desde 2014, de acordo com o projeto Migrantes Desaparecidos. Segundo a Organização Internacional de Migração, 128.082 pessoas completaram essa viagem em 2017 e 39.145 neste ano.

Ainda que o número de pessoas tenha diminuído, a viagem nunca foi tão perigosa: em julho deste ano, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) estimou que uma pessoa morria afogada para cada sete que tentavam atravessar o Mediterrâneo.

O Aquarius é um dos poucos barcos de ONGs que ainda trabalham para salvar vidas no Mediterrâneo central. Desde o seu lançamento, em 2016, de acordo com os registros do navio, ele salvou a vida de 29.523 pessoas que tentavam atravessar o mar — e assim se tornou sinônimo da crise de refugiados, provocando tanto o ódio como ganhando respeito.

A operação do navio de 2 mil toneladas custa aproximadamente US$ 12,6 mil por dia — divididos entre o SOS Méditerranée e o Médicos Sem Fronteiras — e opera em águas internacionais ao longo da costa da Líbia, origem da maioria dos barcos ilegais que tentam chegar à Europa. Quando um barco é localizado, as equipes do SOS Méditerranée lançam duas lanchas infláveis (conhecidas como RHIBs) para retirar as pessoas da água e transferi-las para o Aquarius. A equipe médica a bordo do MSF — um médico, uma parteira e duas enfermeiras — imediatamente faz a triagem e trata as pessoas resgatadas. Então o Aquarius leva as pessoas que resgatou para a Europa e imediatamente retorna às águas internacionais para continuar trabalhando.

Pelo menos, é assim que costumava funcionar.

Quando o Aquarius zarpou acompanhado pelo BuzzFeed News, de Marselha, na França, em 15 de setembro, ele havia ficado parado no porto por mais de duas semanas. Ele não podia partir porque havia perdido o direito de navegar sob a bandeira de Gibraltar em 13 de agosto. De acordo com a lei marítima, qualquer embarcação que navegue em águas internacionais deve estar registrada em um Estado. Um navio sem uma bandeira não é exatamente um navio pirata, mas não está muito longe, e, de forma crucial, a bandeira de um navio fornece proteção caso ele tenha dificuldades em mar aberto. Quase um mês se passou até o SOS Méditerranée e o MSF garantirem uma bandeira panamenha — que responde por aproximadamente 18% da navegação mundial — e o navio poder partir com segurança.

Mas sempre que o Aquarius entra nas águas da Líbia, ele agora enfrenta outro problema: os rádios não respondem. Falando ao BuzzFeed News, a tripulação não conseguiu explicar por que desde sua última missão (mais de um mês antes) o navio não tem mais recebido as mensagens de rádio padrões — geralmente transmitidas através de um canal disponível para todos os navios na área — assim que ele entra nos mares sob a autoridade da guarda costeira da Líbia.

"É um completo apagão de informações", disse Romaniuk, que trabalhou em navios de resgate no Mediterrâneo central por três anos. "Era difícil no começo — milhares de pessoas morriam porque a operação de resgate em si já era difícil —, mas agora a parte de busca está se tornando ainda mais complicada."

O navio se tornou dependente da equipe do SOS Méditerranée para observar (em turnos de hora em hora do nascer ao pôr do sol), para ouvir trechos de comunicações de rádio entre navios mercantes e para obter sinais de socorro pedidos pelas embarcações ilegais e que chegam a ONGs em terra firme. A tripulação não sabe — e muitas vezes não é informada até que seja tarde demais — quando há barcos em perigo. E quando é informada, ela pode entrar em confronto com a guarda costeira da Líbia.

Em parte, isso decorre de um acordo com o governo líbio, negociado pelo político italiano Marco Minniti em 2017. O acordo destinou € 43 milhões de fundos da UE para a Líbia combater a crise de refugiados e evitar que eles chegassem à Europa. O efeito foi dramático. O número de barcos que voltaram para a Líbia aumentou em aproximadamente 194%, ou cerca de 13 mil pessoas, desde o acordo. O acordo da UE também rompeu com uma das principais convenções de resgate marítimo, de que as pessoas devem ser levadas de volta a um local de segurança internacionalmente reconhecido. As Nações Unidas e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos concordam que a Líbia não é um lugar seguro.

Na última missão, 11 de 42 mulheres disseram explicitamente à parteira Nina Egger, 32 anos, do MSF, que elas haviam sido vítimas de abuso sexual — "e esse é apenas o número de mulheres que veio falar comigo", disse ela. Ela já ouviu mulheres falarem sobre estupros coletivos, homens forçados a estuprarem uns aos outros ou mulheres sob sua proteção, mães estupradas na frente de crianças e pessoas estupradas até a morte com objetos. Basicamente, a Líbia levou a “violência sexual a outro nível”. E o país recentemente quebrou o acordo e entrou em guerra civil aberta.

"Sabemos que Trípoli está desmoronando", explicou Egger. "Não sabemos como a guarda costeira da Líbia está funcionando no momento, se está funcionando corretamente."

Políticos europeus têm fechado os olhos para a situação, deixando a guarda costeira da Líbia fazer o trabalho sujo — uma tentativa de salvar seus próprios interesses políticos, já que a imigração se tornou um tema nocivo entre os eleitores na Europa.

A Alemanha, que já foi vista como "o exemplo" do continente para a migração, tem testemunhado a extrema-direita protestar e atacar os migrantes, inflamados por rumores on-line. A França limitou ainda mais suas regras de imigração em julho, incluindo uma medida que permite que migrantes não autorizados sejam detidos por até um ano. A Espanha recebeu apenas 11% de sua cota da UE de refugiados, e o novo líder da Frente Popular de direita do país recentemente prometeu “defender as fronteiras” contra os “milhões” de migrantes.

Liderando essa mudança de atitude está o ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, que tem uma antipatia especial pelo Aquarius, sobre o qual ele tuitou repetidamente durante a última viagem. Em comentários recentes, ele afirmou que o navio estava "auxiliando a imigração ilegal e os contrabandistas" e prometeu que não haveria porto seguro para o Aquarius quando transportasse migrantes.

As implicações mais amplas são abrangentes. Se a tripulação de um navio qualquer não tiver certeza de que poderá voltar às águas europeias se estiver transportando migrantes ou refugiados, ela simplesmente nem fará o resgate. “As convenções são tão fortes quanto as pessoas que as seguem”, disse Tom de Kok, 39, coordenador do MSF em exercício. “Estamos no processo de destruir algo que tem sido um pilar da civilização há 2 mil anos. O resgate no mar é um valor fundamental dos marinheiros.”

Naquela noite, parecia que só o Aquarius ainda seguia as regras marítimas.

F., 37 e pai de quatro filhos, não sabia nada disso. Ele estava no barco de madeira com sua família quando o Aquarius, e depois a guarda costeira da Líbia, se aproximou. O BuzzFeed News está identificando F. apenas por sua inicial porque ele teme que a divulgação de seu nome possa colocar sua família em perigo na Líbia.

Romaniuk e F. — um acima, um na água abaixo — observavam com crescente pavor o navio líbio cada vez mais perto. F., agarrando seu filho mais novo, Oles, de 2 anos, estava aterrorizado.

Embora o Aquarius estivesse seguindo as convenções marítimas, os líbios não pareciam se importar. De acordo com a lei marítima, o Aquarius era o navio mais próximo capaz de realizar um resgate de um barco em perigo com segurança, por isso havia entrado em operação para fazer o resgate. Romaniuk havia contatado repetidamente a central de coordenação marinha italiana em Roma, mas — agindo contra as convenções — os italianos deferiram a autoridade aos líbios. Esses mesmos líbios simultaneamente ameaçaram levar o barco de madeira para a Líbia e exigiram que o Aquarius deixasse a área imediatamente, sem realizar o resgate.

F. não sabia que na ponte de comando do Aquarius, Romaniuk, trabalhando ao lado de Seraina Eldada, de 24 anos, estava agora negociando desesperadamente em árabe com os líbios pelas vidas de sua família e das outras 41 pessoas no barco.

Lotte Bridgham, tentando levar as pessoas do barco de madeira para as lanchas infláveis da ONG, sabia que, no momento em que ela e a tripulação perdessem o controle da situação, o resgate poderia se tornar mortal, e, através de um intérprete, tentava desesperadamente comunicar o que estava acontecendo. “Quando o navio se aproximou, era possível ver pessoas olhando em volta e se sentindo muito tensas, quase como se tivessem perdido a confiança por um segundo, como se estivéssemos esperando pela guarda costeira da Líbia”, disse Bridgham, que trabalha para o SOS Méditerranée.

F. não podia falar com Bridgham de onde ele estava na água, mas ele podia ver o barco e estava paralisado de pavor. Como um berbere étnico e ateu, ele enfrentaria discriminação e perseguição se fosse devolvido à Líbia.

Horas antes, ele embarcara com sua família naquele barco frágil após pagar milhares de dinares líbios. Eles deixaram para trás quase tudo (incluindo a gata da família, Lily), na esperança de um futuro melhor na Europa. “Eu sei que muitas pessoas já morreram. Mas eu disse [à minha mulher] que talvez viveríamos, se fizéssemos a travessia”, disse ele.

"Na Líbia não há pessoas de cabeça aberta", disse ele. Quando sua filha mais velha entrou na escola, perguntaram a ela se havia um Alcorão na casa da família, e ela disse orgulhosa à professora que não. "[Eles disseram a ela] 'Vamos queimar você, você vai para o inferno se não acreditar.' São crianças", disse F., visivelmente aborrecido. "Como você pode dizer isso?"

"Eu não tenho escolha agora. Líbia — fico e morro. Se for embora, talvez eu viva", disse F.

Entre os que compartilhavam o barco com F. e sua família, estavam 17 crianças e 14 mulheres. Havia 47 pessoas a bordo — 37 delas líbias. A família de F. exemplifica o perfil de mudança daqueles que estão sendo apanhados pelo Aquarius. Anteriormente, a maior parte das pessoas que vinham do mar já era refugiada de seus países de origem: sírias, iraquianas, afegãs ou nigerianas, por exemplo. Mas, como visto pelo BuzzFeed News, a demografia dos que estão sendo resgatados está mudando.

Até julho de 2018, pouco mais de 400 líbios se refugiaram com sucesso na Europa, de acordo com dados do ACNUR. Muitos citam a instabilidade no país após anos de conflito depois da morte do ditador Muammar al-Kadafi. Algumas áreas estão agora nas mãos de uma mistura de milícias, que controlam a população muitas vezes por meio de intimidação, medo e extorsão violenta com sequestros. Embora relativamente em pequeno número, as pessoas que estão partindo demonstram a volatilidade de uma nação que deixou muitos de seus cidadãos sem opção, exceto fugirem ilegalmente.

As ameaças ainda estavam chegando na ponte de controle do al-Khifa, mas o tom estava mudando agora que havia um fluente em árabe na linha. Eldada fez sinal para Romaniuk. "Eles estão nos ordenando a voltar", disse ela. "Eles estão dizendo que devemos permanecer a 80 milhas da costa, e se [nós] os desobedecermos novamente, então você deverá ir a Trípoli e enfrentar uma ação legal."

“Diga a eles que entendemos a situação. Diga a eles que temos mulheres e crianças e que pedimos permissão para trazê-los a bordo”, disse Romaniuk a Eldada. A mensagem foi rapidamente transmitida em árabe. A ponte de comando estava silenciosa, exceto pela voz suave de Eldada.

"Há tanta responsabilidade sobre seus ombros nesse momento, você não pode se dar ao luxo de pensar nisso. Você não pode se dar ao luxo de se preocupar com o fracasso: não é uma opção", disse Eldada mais tarde.

Todos na ponte de comando prenderam a respiração enquanto Eldada falava no rádio, os olhos fixos no delicado cenário de vidas em risco nas águas calmas abaixo deles. De repente, o árabe parou. Uma voz do al-Khifa, falando em inglês, disse à ponte de comando: "Deixamos essa situação nas suas mãos."

Romaniuk virou-se na direção do rádio, e as lanchas aceleraram seus motores. Sua equipe finalmente tinha permissão para voltar ao Aquarius, de volta à segurança e longe dos líbios.

"Quando recebemos a luz verde, todos de repente respiraram", disse Bridgham.

A alegria durou pouco. Os líbios haviam lhes dado permissão para resgatarem as pessoas e devolvê-las à Europa — mas isso era com base na bandeira deles, a do Panamá. Ocorre que, poucas horas antes, esta mesma bandeira havia sido removida pelas autoridades panamenhas. A tripulação do Aquarius, assim como as pessoas que tinha acabado de resgatar, estava "sem pátria" e sem saber para onde ir.

Resumidamente, a bandeira de um navio é como o passaporte de uma pessoa. Sem uma, um navio não tem liberdade de movimento nem a proteção do Estado-nação com o qual está registrado.

A decisão do Panamá de remover a bandeira do Aquarius pegou a equipe de surpresa apenas algumas horas antes do resgate: as autoridades não acharam adequado alertar a organização de caridade comandando o navio. A notícia veio de um comunicado de imprensa divulgado na calada da noite.

Isso fez com que, de repente, a imprensa ficasse novamente interessada no Aquarius, e a polêmica sobre suas atividades reacendeu. Salvini imediatamente se pronunciou, afirmando que o Aquarius não seria bem-vindo de volta na Itália, enquanto os políticos suíços e irlandeses pediram a seus governos que dessem ao navio de resgate a chance de continuar seu trabalho.

No navio em si, reinava uma estranha sensação de calma: a tripulação continuava com suas tarefas diárias, cuidando das pessoas resgatadas – enquanto navegava sem rumo.

Publicamente, o MSF e o SOS Méditerranée divulgaram uma declaração cuidadosamente redigida, culpando a remoção da bandeira pela intromissão do governo italiano.

De forma privada, a tripulação — que inicialmente foi instruída a não falar com os repórteres sobre a situação — se irritou. "Isso é uma piada. É maluco", disse Bridgham. “Nossa bandeira foi retirada, por quê? Por razões políticas, por pressões econômicas? É uma piada como um Estado pode ter tal controle sobre o outro.”

Salvini tuitou negando qualquer envolvimento. O Ministério do Interior italiano disse ao BuzzFeed News por e-mail: "O Ministério do Interior jamais pediu nada às autoridades do Panamá."

Enquanto o navio navegava entre a Líbia e as águas europeias, os refugiados e migrantes começaram a perguntar para onde estavam indo.

"Eles estão todos com a impressão de que logo estarão na Europa", disse Eldada, que, apesar de sua idade, está entre os membros mais antigos do Aquarius e é a pessoa encarregada dos resgatados. “Então eles percebem: Ah... Agora minha família vai pensar que me afoguei porque eu disse que entraria em contato em breve.”

Das águas internacionais da Líbia, o Aquarius geralmente leva cerca de quatro dias, com dois de seus quatro motores ligados, para alcançar águas europeias. O navio traçou um curso para Malta — o porto europeu mais próximo —, mas não havia indicação de que os malteses os receberiam.

"E agora?", perguntou F. repetidamente. "Eu não consigo entender o que está acontecendo. [Mas] há chance de voltarmos? Eu não posso voltar."

Finalmente com terra à vista, as pessoas resgatadas foram informadas de que seriam levadas para Malta e ali divididas entre Alemanha, Portugal, Espanha e França.

Mas o Aquarius não estava atracando. Em vez disso, ele começou a girar em círculos enormes, enquanto uma enorme tempestade se aproximava. O humor piorou: havia a terra, havia a Europa, havia Malta. Por que eles não estavam atracando?

“A atmosfera é bastante tensa quando o barco não está em movimento. Isso mexe com o humor de todos”, disse Edouard Courcelle, 36 anos, do MSF. “É uma atmosfera difícil para os socorristas e para a equipe médica. É como se você tivesse essa atmosfera de motim. É uma péssima situação."

Assim que o navio virou, a tempestade começou. A tripulação entregou cobertores de emergência e sacos de dormir de plástico. Enquanto as mulheres e crianças ficavam do lado de dentro — embora dormindo no chão —, os homens dormiam do lado de fora. O tempo ficou tão ruim que a tripulação amarrou cordas pelo convés para as pessoas se agarrarem se necessário.

No dia anterior, o filho de F. foi atacado por um menino líbio mais velho. O garoto queria os brinquedos dele. Um membro da tripulação teve que conter fisicamente a criança mais velha. Enquanto ele lutava para manter os dois separados, a criança mais velha unhou violentamente os olhos do filho de F. "Eu nunca vi crianças brigando assim", disse o membro da equipe do MSF. "Isso não foi normal."

F. explicou que seus filhos não falavam a mesma língua dos outros líbios a bordo; em vez disso, falavam um dialeto de Zuara e do povo berbere perseguido, e isso — associado com a mãe deles não usar um lenço de cabeça — era uma diferença muito grande para muitos líbios. "As pessoas aqui, algumas delas não entendem", suspirou ele, balançando um Adan ainda chorando. Quanto mais o navio ficava no mar, pior ficava a atmosfera.

Finalmente, Romaniuk recebeu uma resposta — com uma condição sem precedentes. O Aquarius não teria permissão para entrar nas águas maltesas, disseram a ele. Em vez disso, o navio seria encontrado em águas internacionais pela marinha de Malta, a qual transferiria as pessoas para Malta. Sem uma bandeira e com a atmosfera a bordo cada vez mais difícil de controlar, Romaniuk aceitou a oferta e marcou a transferência das pessoas.

Pela segunda vez em uma semana, um navio de aparência militar navegou até o Aquarius. O navio maltês articulou-se com Romaniuk, percebendo apenas momentos antes da transferência que eles não tinham trazido coletes salva-vidas para crianças. "Dê a elas os nossos, e vamos entrar em contato com uma ONG em Malta para pegá-los de volta", disse Romaniuk à sua tripulação.

Muitas das mulheres começaram a chorar quando foram colocadas de volta nas lanchas infláveis que as resgataram pela primeira vez. F., ajudando a colocar sua família na lancha, acenando freneticamente para a tripulação, virou-se e disse: "Hoje talvez seja o último bom dia."

Assim que os resgatados desapareceram na popa do navio maltês, a tripulação do Aquarius perdeu todo o contato com eles. Eles foram informados de que as pessoas seriam deixadas na base naval de Malta e transportadas novamente — desta vez para um centro “aberto” em uma parte pobre da capital, Valletta.

O BuzzFeed News não conseguiu entrar no centro, embora fosse possível ver as pessoas — incluindo F. e sua família — através de uma cerca de arame. Em uma entrevista ao BuzzFeed News, quase três semanas depois de chegarem a Malta, F. confirmou que ele e sua família ainda estavam no centro. Ele não tinha certeza de quando partiriam ou para onde iriam.

“Nosso relacionamento com essas pessoas termina assim que elas desembarcam do nosso navio. Não temos nenhum poder ou competência além desse ponto", disse Eldada. “Somos um navio de busca e resgate — é aí que termina nossa responsabilidade. E isso é difícil."

Assim como as pessoas que eles resgataram, a tripulação do Aquarius não tem certeza de quem as receberá. Por enquanto, o navio retornou a Marselha, onde está no cais solicitando uma nova bandeira para que possa navegar novamente. Não há indicação de quanto tempo isso pode levar. As pessoas continuam morrendo no Mediterrâneo central, e a guarda costeira da Líbia continua arrastando as pessoas de volta para incerteza, perseguição e detenção arbitrária.

A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Luísa Pessoa.

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