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No país em que você pode comprar um homem negro por US$ 400

A escravidão está em profusão na Líbia, onde milhares de pessoas com esperança de chegar à Europa acabam compradas, vendidas, forçadas a trabalhar a troco de nada e torturadas.

CIDADE DE BENIM, Nigéria — Jude Ikuenobe pressentiu que um carro o seguia antes que pudesse ver o veículo. Com o coração acelerado, ele se virou. Sob o sol desértico da Líbia, a estrada que se estendia atrás dele estava tão quente que cintilava.

"Não tem ninguém", tentou se tranquilizar pela décima vez. Minutos antes, ele havia saído em busca de água junto com três de seus amigos. As ruas cobertas de areia estavam desertas, todas as lojas e cafeterias fechadas. Era uma tarde de sexta-feira, o que significava que até as milícias armadas que controlavam Saba, cidade a 770 km de distância da capital costeira, tinham se retirado para as mesquitas para as orações mais importantes da semana.

E, então, ele ouviu novamente o som: o inconfundível ronco de um motor.

Sem dizer uma palavra, ele e seus amigos saíram correndo em diferentes direções.

Ikuenobe sentiu como se estivesse correndo sobre areia movediça. Com o carro cada vez mais perto, ele sabia que um único erro poderia significar levar um tiro e morrer anônimo no meio da rua.

"Em Saba, todo homem negro é um alvo."

Ele olhou por cima do ombro e foi tomado pelo terror: um 4x4 branco de vidros escuros seguia em sua direção.

Todos os alertas que ele havia ouvido lampejaram em sua mente.

“Em Saba, todo homem negro é um alvo.”

“Nós, negros, na Líbia... somos dinheiro para os árabes. No instante em que eles nos pegam, eles podem nos vender.”

“Se eles chegarem perto, corra. Corra pela sua vida.”

Ikuenobe correu e continuou correndo mesmo ao som dos pneus cantando, o cheiro da borracha queimando e uma rajada de tiros. Ele continuou correndo enquanto um de seus amigos atingia o chão com um baque. Ele correu até suas pernas cederem em um beco de terra, desabando sobre o chão de areia, encharcado de suor e medo.

Ele levou várias horas para conseguir voltar ao complexo murado onde havia passado as últimas três semanas. A construção não era nenhum santuário, e Ikuenobe sabia que o dono do complexo lhe daria uma surra impiedosa, mas ele não tinha nenhum outro lugar para ir.

Pelo menos ele estava vivo. Nenhum de seus amigos havia nem sequer voltado.

Aquela tarde de verão de 2015 foi um lembrete de como sua vida havia fugido de seu controle e de como ele estava preso em uma rede que controla o novo comércio de escravos africanos.

Ao pensarmos na escravidão, geralmente nos vêm à mente imagens de navios transportando africanos negros pelo Atlântico ou das marchas da morte do comércio transaariano de escravos.

No entanto, esta versão contemporânea tem um novo toque de crueldade: desta vez, pessoas da África subsaariana estão muitas vezes vendendo a si mesmas para a escravidão, acreditando que estão comprando uma passagem de uma vida de conflito, miséria ou repressão para um futuro esplêndido na Europa. Em uma triste ironia, são exatamente as políticas de uma União Europeia cada vez mais fechada para a imigração as responsáveis não só por impedir que as pessoas cheguem até o continente, mas por fazer com que elas sejam escravizadas e mortas em suas tentativas.

Poucos lugares poderiam estar mais distantes da terra prometida do que a Líbia dos dias atuais, onde dezenas de milhares de pessoas são confinadas indefinidamente, passam anos trabalhando por somas arbitrárias ou sem pagamento algum e estão sob risco constante de ser sequestrados, vendidos e leiloados entre uma milícia e outra.

Em um país onde o caos reina, alguns especialistas argumentam que esse tipo de tratamento não é considerado escravidão, uma visão que minimiza o racismo por trás da situação.

Ikuenobe acabou preso na Líbia depois de deixar sua terra natal, a Cidade de Benim, na Nigéria, em busca de uma vida melhor na Europa. Ele planejou uma jornada de duas semanas em direção ao norte, cruzando o deserto do Saara até a Líbia, onde subiria em um barco para cruzar o Mediterrâneo. Em vez disso, ele passou mais de dois anos tentando sobreviver no cerne da escravidão moderna.

A partir de 2014, imagens de pessoas desesperadas amontoadas em barcos, tentando cruzar o Mediterrâneo, começaram a aparecer nos noticiários. A "crise migratória" logo revirou o cenário político europeu, criando uma onda de populismo de extrema direita e discurso anti-migração.

A União Europeia começou a barrar o fluxo, o que provocou debates sobre a legalidade e a moralidade de sua nova política. Ainda assim, as consequências mais nefastas dessa decisão geralmente eram omitidas da narrativa: as dezenas de milhares de africanos negros enredados em um florescente mercado de escravos.

Em novembro do ano passado, um vídeo que poderia ter saído de uma cápsula do tempo de 300 anos atrás viralizou. Em um vídeo de celular granulado obtido pela CNN, um grupo de africanos negros era leiloado como escravos em alguma parte de Trípoli, a capital da Líbia. Fora da imagem, um mercador de escravos enfatizava repetidamente a força dos homens à venda: "Este aqui é um escavador, grande e forte", dizia, tocando o ombro de outro homem como se fosse seu dono. Um nigeriano na casa dos vinte anos, olhos aturdidos de medo, era oferecido como parte de um grupo de "garotos grandes e fortes para trabalho na fazenda". Os homens eram vendidos a US$ 400 cada.

O governo, sediado em Trípoli, reagiu abrindo uma comissão que prometeu levar os responsáveis à Justiça — embora um ano depois, nenhum veredito tenha vindo a público. A Presidência, apoiada pela ONU, disse: “Nós, da Líbia, somos as vítimas da migração ilegal, não a origem dela".

Menos pessoas estão conseguindo chegar à Europa, mas mais estão morrendo, desaparecendo ou sofrendo abusos.

O vídeo do leilão de escravos era a ponta do iceberg de um mercado de trabalho forçado com valor estimado em US$ 150 bilhões em todo o mundo. Ressurgiram imagens de africanos negros sendo aprisionados por milícias nas jaulas do zoológico de Trípoli. Havia vídeos de guardas costeiros líbios açoitando mulheres e crianças aterrorizadas no mar.

Localizada na costa norte da África, a cerca de 120 milhas náuticas das costas da Itália e de Malta no Mediterrâneo, a Líbia, rica em petróleo, há muito tempo serve de ponto de partida à Europa. Por quase quatro décadas, os números de migrantes foram controlados pelo ditador do país, Muammar Gaddafi. Ele ameaçava periodicamente lançar um "influxo de africanos ignorantes e famintos" que transformaria o continente em uma “Europa negra”, com a intenção de obter acordos monetários em troca de controle de migração.

Em 2008, ele conseguiu um acordo de US$ 5 bilhões em reparações da Itália, uma antiga potência colonial. Em troca, Gaddafi barraria o fluxo de refugiados. Isso abriu caminho para que ambos os países começassem a capturar pessoas que buscavam asilo e as enviassem de volta à Líbia. A situação continuou até o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos determinar que o acordo violava os direitos humanos. O autoproclamado "rei dos reis da África" começou, então, a exigir 5 bilhões de euros (US$ 5,67 bilhões) por ano da União Europeia.

Depois que a Primavera Árabe e os bombardeios liderados pelos EUA derrubaram Gadaffi, em 2011, a Líbia foi repartida entre um governo central reconhecido pela ONU, em Trípoli, outro governo no leste e dezenas de milícias competindo pelo controle do sul. As rotas de migração que anteriormente eram controladas por Gaddafi foram subitamente reabertas.

Os governos europeus, em pânico, recorreram a uma velha e conhecida cartilha. Por meio de agências de segurança e financiamento da UE e da ONU, eles espalharam sofisticados equipamentos de vigilância, navios de guerra e bilhões de euros em países de toda a África — com a Líbia como ponto central — em um esforço para resistir, retornar ou conter os possíveis influxos. Sem um ditador aliado dessa vez, o dinheiro foi canalizado para treinar a guarda costeira líbia e financiar centros de contenção de migrantes — mesmo depois de surgirem notícias de guardas costeiros disparando contra barcos de refugiados ou campos de trabalho forçado controlados por milícias.

Muitos críticos dessas políticas diziam que, sem lidar com as causas-raiz da migração, esses tipos de controle de fronteira são, na melhor das hipóteses, imprudentes. Fechar uma rota simplesmente abre outra. É como enxugar gelo enquanto se paga um altíssimo preço. E a questão é: por quanto tempo isso é sustentável, e a que custo em vidas humanas?

Um número menor de pessoas está conseguindo chegar à Europa, mas mais estão morrendo, desaparecendo ou sendo abusadas durante a rota — ainda que isso não aconteça mais nas praias da Europa. Enquanto isso, nos EUA, o presidente Donald Trump chamou as denúncias de escravos na Líbia de “fake news”. Ainda assim, cada passo da jornada de Ikuenobe em direção à escravidão foi moldado não só pelo conflito ou a miséria na África, mas também diretamente pelas políticas de migração da Europa.

A intenção de Ikuenobe não era arriscar tudo para chegar à Europa. Ele simplesmente acreditava que a escravidão era algo confinado aos livros de história que lera na escola. Alto, de ombros largos e com covinhas nas bochechas, Ikuenobe passava seu tempo livre jogando futebol ou participando de atividades organizadas por sua igreja local. Graduado em ciências políticas, era sempre provocado por seus amigos, que diziam que ele havia desperdiçado seu talento por não jogar no time de futebol do Arsenal, cujas cores decoram seu quarto em sua casa.

Sua jornada em direção ao cativeiro começou em uma noite de julho de 2015, enquanto navegava distraído por sua página no Facebook depois de mais uma solicitação de visto feita ao consulado americano. Era a quarta vez no ano que ele tinha preenchido pacientemente os formulários, desembolsado dinheiro de suas escassas economias e enfrentado uma entrevista humilhante em uma embaixada. E, pela quarta vez, seu pedido retornou com sua solicitação recusada.

Desanimado, Ikuenobe estava prestes a fechar a página quando um rosto familiar surgiu sob uma aba de "pessoas que você talvez conheça". Sua alegria em reencontrar Asiri, um velho amigo de escola, logo foi substituída por uma reação típica do Facebook: o medo de ficar de fora. Exceto que o medo não era de ficar de fora de shows, viagens ou festas — sua conta bancária minguada cuidava disso todo dia. Ele sentiu que sua vida inteira estava passando em branco.

Ikuenobe acreditava que a escravidão fosse algo confinado aos livros de história que lera na escola.

Seu antigo colega de turma tinha ido parar na Itália, onde conseguiu um emprego de garçom. De acordo com a versão inflada de sua vida no Facebook, ele teria economizado o suficiente para comprar uma Vespa e logo daria um caução para alugar um apartamento. "Onde ele estava, dava para ver que atmosfera era diferente. Tudo parecia mais novo. Parecia bom”, recordou Ikuenobe, sentado no mesmo quarto na casa de sua família onde ele estava naquela noite, três anos atrás.

Ikuenobe queria trabalhar. Depois de se graduar em 2013, ele viajou 11.000 km pelo Atlântico até o México, onde conseguiu um emprego em uma fábrica de tecidos. Não era exatamente seu emprego dos sonhos, e ele tinha saudades de casa todos os dias, mas o salário de US$ 800 era suficiente para enviar dinheiro para sua família e ajudar a pôr seus cinco irmãos mais novos na escola. No entanto, pouco mais de um ano depois, ele teve que retornar à Nigéria para o serviço militar obrigatório — uma exigência, se algum dia ele quisesse se estabelecer novamente em sua terra natal.

Depois de concluir o serviço, seus planos de encontrar outro emprego fora do país foram frustrados pela realidade do mercado de trabalho da Nigéria: não havia empregos suficientes que permitissem que ele economizasse e todas as rotas legais para emigração haviam se fechado. Ele começou a penhorar seus bens, incluindo um Toyota Camry azul que havia comprado assim que voltou do México.

No dia seguinte, ele ligou para o número que Asiri havia dado a ele. O homem do outro lado da linha soava simpático e caloroso. Ele poderia abrir caminhos pelo norte da Nigéria, passando pelo país vizinho, Niger, e finalmente até a Líbia. De lá, a Europa estaria a seu alcance.

"Ele me disse que, em uma semana, eu estaria na Europa. Eu fiquei tipo—,” Ikuenobe arregalou os olhos para dar ênfase, “O quê?! E eu estive sofrendo esse tempo todo. Estive gastando dinheiro!"

Mas Ikuenobe tinha dúvidas. "Eu disse a ele: 'Mas nós vamos passar pelo deserto, o deserto do Saara'. Eu entrei na internet para pesquisar — um dos maiores desertos, um dos desertos mais quentes do planeta.”

"Ele me disse que, em uma semana, eu estaria na Europa." 

O homem assegurou a Ikuenobe que, se quisesse realmente ficar despreocupado, ele poderia pagar um pouco mais pelo que chamava de passagem VIP, um pacote que vinha com segurança extra e algo que o homem chamou de "alta gastronomia".

Para muitos, a sequência de eventos que leva à escravidão começa na Nigéria, onde contrabandistas conhecidos como "trolleys" (bondes) transportam os clientes até a Líbia, atravessando o Saara. Quando Ikuenobe entregou as últimas de suas economias de 800.000 nairas (US$ 2.200), acreditou que o homem enviaria as pessoas certas para transportá-lo por cada estágio da jornada de 1.500 km até a costa da Líbia.

Na noite anterior à partida, ele foi visitar sua mãe. "Mãe, consegui um trabalho", disse. Mal falou, sua mãe, de 74 anos, começou a gritar e pular de alegria.

Ela perguntou que tipo de trabalho era. Trabalho em estaleiro, Ikuenobe mentiu. Isso deu a ele uma desculpa para explicar por que não poderia telefonar — ele estaria frequentemente no mar, disse.

Ele não disse a nenhum dos seus irmãos sobre seu plano, sabendo que não conseguiria se desviar das perguntas deles com a mesma facilidade.

Na primeira vez que viu o homem que viria a escravizá-lo, Ikuenobe ficou aliviado.

A passagem VIP, na realidade, significava se agarrar ao corrimão de uma picape enquanto atravessava a vastidão do Saara. Em um comboio de oito carros, cada um lotado com cerca de 30 africanos ocidentais, os companheiros de viagem de Ikuenobe incluíam desde médicos a famílias inteiras, incluindo crianças pequenas. Eles levaram três dias para chegar a Agadez, antigo centro de comércio escravo transaariano no interior do Niger, na borda sul do Saara.

Eles dirigiram por quilômetros sob o sol, até que o calor e as dunas intermináveis fizessem muitos se perguntarem se estavam enlouquecendo. "Às vezes, você olha para seus colegas, e parece que tem sangue saindo dos olhos deles. Algumas pessoas simplesmente se partem, psicologicamente."

Eles dirigiram por quilômetros sob o sol, até que o calor e as dunas intermináveis fizessem muitos se perguntarem se estavam enlouquecendo.

As crianças tinham mais chance de sobreviver, Ikuenobe disse, pois precisavam de menos água. Duas vezes durante sua provação de mais de 3.000 km atravessando o deserto mais quente do mundo, Ikuenobe viu pais morrendo, depois, mães, até sobrarem somente as crianças mais jovens.

"Quando eles morrem", Ikuenobe recordou quase em silêncio, "você não tem escolha. Você os cobre com areia e põe suas garrafas de água sobre os corpos."

O comboio chegou à Líbia 10 dias depois de deixar o Niger, no final de agosto, parando no portão de uma mansão em ruínas na periferia de Saba.

Ao passar pelos portões do "gueto" de Ali — os complexos são chamados pelo nome de seus donos — ele se sentiu eufórico. Seus novos amigos o apelidaram de "Big Big", por conta de sua grande presença física, que eles achavam que o tinha ajudado a sobreviver ao deserto. Em um país onde a palavra para pessoas negras, "abd", literalmente significa "escravo", ele não fazia ideia de que a força de que tanto se orgulhava ali tinha um preço, estimado entre US$ 200 e US$ 400.

Depois que os "trolleys" transportaram os clientes cruzando o Saara até a Líbia, as cobranças são entregues a um "homem de conexão", que é parte de uma rede de comerciantes que os transporta pela Líbia em direção aos pontos de partida, ao longo de seus 1.700 km de litoral. Porém, a jornada pela Líbia raramente é simples. Subornando e se desviando de oficiais, as conexões também vendem migrantes e refugiados entre si, ou os amontoam em guetos de migrantes.

Ikuenobe esperava seguir os passos de centenas de milhares de outros que enfrentaram a mesma jornada naquele ano. Um a um, ele via seus novos amigos deixar o gueto de Ali quando sua conexão vinha buscá-los. Uma hora, ficou claro para Ikuenobe que ninguém viria buscá-lo.

Ele estava sozinho em um país estrangeiro do qual não conhecia nada quando começaram os disparos.

Em um canto do pátio, uma escadaria de tijolos em ruínas levava ao terraço. Um grupo de crianças usava latas com areia para praticar pontaria. "Vi um menino muito pequeno, acho que não chegava aos 14 anos. Ele estava carregando uma AK-47!"

"Vi um menino muito pequeno, acho que não chegava aos 14 anos. Ele estava carregando uma AK-47!"

Ikuenobe testemunhara a violência de rua na Nigéria, mas nada o teria preparado para o caos que havia na Líbia. Ele assistiu, horrorizado, enquanto o jovem menino disparava balas ao ar comemorando. “Eu disse, Jesus! Olhe essas crianças!

Na manhã seguinte, um homem entrou e com seus olhos examinou Ikuenobe. "Não se preocupe. Alguém vai vir buscar você".

Ele voltou a deitar no chão de concreto do pátio. Uma hora, quatro homens se aproximaram e disseram para ele os seguir. Um deles tinha sotaque nigeriano e a familiaridade fez com que Ikuenobe se sentisse um pouco menos perdido.

Os homens o conduziram até a casa principal, passando por uma série de corredores de mármore esburacados até uma sala com uma porta de metal com ferrolho. Dentro, a pior parte não eram os corpos sem vida deitados no chão, ou as poças de urina e fezes. Era o cheiro do medo.

O primeiro homem o empurrou ao chão, e Ikuenobe sentiu algo quente e molhado contra seu rosto, mas seu cérebro não pôde processar o que era. Ele olhou para cima e só conseguiu reconhecer o rosto do homem com o sotaque nigeriano.

"Por favor", Ikuenobe sussurrou.

O homem desceu o pé com força.

Em algum momento, um cano longo e pesado foi lançado repetidamente contra sua mandíbula, ombros e coxas. Mais tarde, quando seu corpo se dissolvera em uma massa de dor e ele mal enxergava através de um único olho, tudo finalmente escureceu.

Os quatro homens se revezaram. Quando Ikuenobe tentou se levantar, um deles o segurou no chão, e os outros continuaram dando socos e chutes. Em algum momento, um cano longo e pesado foi lançado repetidamente contra sua mandíbula, ombros e coxas. Mais tarde, quando seu corpo se dissolvera em uma massa de dor e ele mal enxergava através de um único olho, tudo finalmente escureceu.

Uma coisa fria o acordou — eles jogaram água nele para reanimá-lo.

Um dos homens estava de pé acima dele. Ele tinha um bastão elétrico de gado na mão. Um segundo homem segurava um celular. Ele exigiu que Ikuenobe desse o número de telefone de sua mãe, a quem ele tinha prometido ligar. Pela boca espumando de sangue, Ikuenobe deu o telefone de sua irmã mais velha. Assim que sua irmã respondeu, o primeiro homem pressionou o bastão elétrico contra a pele molhada de Ikuenobe.

Ao fim da ligação, Ikuenobe não sabia mais dizer quem estava chorando mais alto, ele ou sua irmã, a milhares de quilômetros. Seus torturadores finalmente desligaram depois que ela prometeu enviar 600.000 nairas (US$ 1.650) em troca de sua "liberdade".

Táticas cruéis como essa se tornaram norma na Líbia pós-Gaddafi — onde nenhum membro de milícia ou oficial foi indiciado por tortura ou desaparecimentos desde 2011. As extorsões são tão comuns que os cativos têm um valor de mercado dependendo do seu país de origem — eritreus, que têm uma diáspora grande e bem organizada, demandam preços mais altos, enquanto africanos ocidentais proporcionam os menores resgates e são os mais propícios a sofrer maus-tratos, de acordo com especialistas.

Novos prisioneiros entram e saem das celas todos os dias. Quando os captores chegam para surrar um deles, os outros choram e gemem juntos, fazendo com que o som seja ampliado para os familiares que ouvem do outro lado do telefone. Ikuenobe contou o tempo que permaneceu na cela usando o valor em dinheiro que sua irmã pagava. Depois de cada ligação, ele sabia que ela teria enviado cerca de 500.000 nairas (US$ 1.370).

Cerca de uma semana depois, quando um homem baixo chamado Israel entrou mancando e dizendo a Ikuenobe que ele estava livre para partir, ele precisou se segurar para não abraçá-lo. Sua família havia pagado mais de 2 milhões de nairas (US$ 5.500) a ele, Israel disse.

Acreditando que agora teria uma conexão para levá-lo pela última parte de sua jornada, Ikuenobe se sentiu aliviado quando viu Israel entregar um maço de notas nas mãos de Ali. "Eu vi o dinheiro trocando de mãos, e pensei que era a pessoa certa chegando para me buscar."

Israel o levou para fora até um carro que estava esperando, e eles seguiram pelas largas estradas empoeiradas em direção a uma casa particular. Dentro, mais homens e mulheres sentavam-se lado a lado no chão de concreto. Eles pareciam cansados e desolados.

O coração de Ikuenobe pesou.

Israel não tinha ido resgatá-lo. Ele foi comprar Ikuenobe como se ele fosse um produto.

Surpreendentemente, muitos especialistas escolhem suas palavras com cuidado ao chamar experiências como a de Ikuenobe de escravidão. Othman Belbesi, diretor da Organização Internacional para as Migrações (OIM) na Líbia, disse que até 800.000 africanos subsaarianos enfrentam inúmeros abusos a todo instante na Líbia, mas foi cauteloso ao dar nomes a essa realidade. “Nós precisamos chegar a um acordo sobre a definição de escravidão antes de usarmos palavras tão fortes”, disse.

Essa relutância vem, em parte, das diferentes definições legais das várias formas de escravidão, de tráfico a trabalho forçado. Mas também vem de uma concepção incorreta de que a escravidão é unicamente a propriedade absoluta de uma pessoa, segundo Jakub Sobik, porta-voz da Anti-Slavery International. “De qualquer ângulo que você olhar, o que está acontecendo na Líbia é escravidão.”

Para Ikuenobe, o debate é puramente acadêmico. "Eu estava trabalhando. Eu não estava recebendo dinheiro nenhum. Eu já era um escravo", afirma.

 "Eu estava trabalhando. Eu não estava recebendo dinheiro nenhum. Eu já era um escravo."

A cidade de Saba, onde ele foi parar, estava em conflito constante e era controlada pelos "Asma Boys", como muitos africanos subsaarianos chamam os membros de milícias e gangues armadas. Ikuenobe estava aterrorizado. Ele não tinha documentos nem emprego em um país onde era um alvo ambulante simplesmente por andar nas ruas.

Ele recorreu à única opção real que tinha disponível: trabalhar para o homem que o mantinha prisioneiro até ganhar dinheiro suficiente para comprar sua liberdade. "Eu pensei: 'Já estou na Líbia, é melhor enfrentar o mar do que passar por aquele sol [do Saara], melhor morrer bebendo água salgada do que de sede'."

Israel, seu novo dono, também operava um lava-rápido, onde Ikuenobe foi posto para trabalhar em turnos de 12 horas, com quase nenhuma comida ou água, sob temperaturas escaldantes.

Ironicamente, no lava-rápido, ele estava relativamente seguro — ele estava marcado como propriedade de alguém tão claramente quanto se a marca fosse a ferro quente. Os Asma Boys o atormentavam com esse fato sempre que podiam.

"Eles nos odiavam", Ikuenove lembra. “Se você chega perto deles, apanha! Às vezes, você não precisa fazer nada, e eles...", ele fez como se estivesse sendo agarrado pelo colarinho, "e dão um tiro próximo ao seu ouvido, assim".

Será que é assim que eu vou morrer?, ele se perguntava com frequência.

Por vezes desesperado, Ikuenobe usava as poucas frases em árabe que tinha conseguido distinguir.

Asma, maloush. Fi maya?”, pedia depois de lavar seus carros. Por favor, chefe, me dê água.

"Vá foder sua mãe. Você fede a merda. Saia daqui", geralmente era a resposta que recebia.

Para muitos dos estimados 800.000 migrantes e refugiados africanos negros na Líbia, a situação é igualmente perigosa. "Se você tem a pele escura e vem da África subsaariana, está sob um risco muito, muito alto de ser atacado, explorado e aprisionado", afirmou Hanan Salah, pesquisadora do Human Rights Watch para assuntos da Líbia. "A Líbia atualmente é uma zona de total impunidade. Que delegacia de polícia vai sequer registrar essa ocorrência?"

"Na Líbia, você pode vender seu próprio irmão."

Um dia se confundia com o outro para Ikuenobe, até três meses terem passado. Ele se sentia cada vez mais paralisado por sua situação. Seu novo dono se recusava a dizer quanto faltava para ele conquistar sua liberdade. Então, um dia, Israel mandou Ikuenobe sair para fazer um trabalho. Ikuenobe considerou aquilo um avanço; significava que ele tinha conquistado confiança. Talvez ele tivesse pago a soma arbitrária que devia.

Ikuenobe parou completamente por um momento, enquanto se lembrava do que viera a seguir. "Eu tinha acabado de chegar, então não entendia — Líbia, é um lugar onde você pode vender seu próprio irmão. Você precisa afiar os olhos, pois qualquer um pode te arruinar a qualquer momento", disse, usando um ditado nigeriano que significa que você precisa ficar constantemente atento.

Israel não o tinha enviado para fazer um trabalho. Ele tinha feito um arranjo para que Ikuenobe fosse capturado por um grupo de Asma Boys assim que pusesse os pés para fora, embolsando o dinheiro em troca de repassá-lo às mãos de uma milícia violenta. Ikuenobe foi levado para outro abrigo deplorável em Saba, onde a rotina, agora familiar, se desdobrava: ele foi amarrado e espancado enquanto telefonava para casa. "Eu implorei à minha família para pagar, para que eu pudesse ir [à Europa]."

A família de Ikuenobe acabou pagando aos Asma Boys para que o libertassem, e a soma supostamente incluía uma passagem para cruzar o Mediterrâneo. Dessa vez, ele foi jogado no banco de trás de um Toyota Camry — o mesmo carro em que ele adorava viajar quando tinha dinheiro — com outros três homens. Eles se revezavam rezando em voz alta para não desmaiar durante a jornada de 770 km até a cidade costeira de Sabrata, cujas bonitas casas esbranquiçadas dissimulam o fato de ser um cemitério marinho para milhares de pessoas que tentam chegar à Europa.

Logo após o pôr do sol, em uma dia de março de 2017, Ikuenobe parou na orla de uma praia e olhou pela imensidão azul que o separava da Europa.

Finalmente, ele pensou, seu pesadelo estava chegando ao fim.

No entanto, nos 16 meses desde que Ikuenobe havia chegado à Líbia, as marés políticas mudaram drasticamente. Em agosto de 2015, quando chegou a Saba pela primeira vez, o número de refugiados cruzando o Mediterrâneo tinha atingido altas históricas, motivadas em parte pela guerra na Síria. Os perigos da jornada foram ilustrados pela foto de Alan Kurdi, um menino sírio de 3 anos que apareceu em uma praia do Mediterrâneo com o rosto voltado ao chão, uma camisa vermelha ao redor de seu pequenino corpo. Políticos de toda a Europa aproveitaram a indignação da população para dizer “nunca mais” — mas sua maneira de fazer isso foi garantir que ainda menos barcos deixassem o norte da África, qualquer que fosse o custo.

Então, quando Ikuenobe e outras duas dúzias de pessoas subiram a bordo de um bote de borracha, eles não tinham como saber que estava navegando direto em direção à política de "parem os barcos" da Europa.

Somente 1 em cada 10 pessoas que tentaram fugir da Líbia pelo mar teve sucesso; as demais morreram, desapareceram ou foram levados de volta pela guarda costeira líbia. 

Depois de uma prolongada batalha com o governo em Trípoli sobre a possibilidade de seus navios entrarem em águas líbias, a UE lançou a Operação Sophia em 2015, a mais recente substituição à operação de busca e resgate extremamente bem-sucedida da Itália chamada Mare Nostrum, que, em um único ano, retirou dezenas de milhares de pessoas dos 70.000 km² de mar que vasculhou. Em vez disso, sob a Operação Sophia, barcos transportando pessoas à Europa são bloqueados e rebocados de volta pela guarda costeira líbia, que é extraoficialmente, mas parcialmente, composta por milícias armadas.

O verão e a primavera marcam o pico das travessias, mas, até o fim de julho, apenas metade do número do ano anterior conseguiu chegar à Europa. Ao final, até mesmo ser rebocado por navios humanitários não era mais uma opção. Enfrentando cada vez mais pressão política, um único navio de busca e resgate de uma ONG, o Aquarius, operou no Mediterrâneo central durante o verão. No entanto, a embarcação foi confiscada pelas autoridade italianas em novembro e realocada para um porto francês. No fim de 2018, as organizações por trás do Aquarius foram forçadas a cancelar suas operações, culpando "uma impiedosa campanha política, judicial e administrativa apoiada por vários Estados europeus". Por ora, a rota migratória mais perigosa do mundo é patrulhada somente por embarcações líbias.

No entanto, os embarques não pararam, ficaram apenas mais arriscados. Para evitar serem detectados, os contrabandistas cada vez mais partem à noite, em frágeis botes de borracha que são mais baratos de substituir do que barcos de madeira mais navegáveis.

Em 2018, somente 1 em cada 10 pessoas que tentaram escapar da Líbia por mar teve sucesso; as demais morrem, desaparecem ou são levados de volta pela guarda costeira líbia. E há um protesto comum vindo daqueles que conseguem fazer a travessia: migrantes líbios de pele mais clara reclamam frequentemente por ter que viajar ao lado de refugiados negros.

Por 18 horas, o bote carregando Ikuenobe foi açoitado pelas águas. Todos a bordo, incluindo os contrabandistas, já tinham perdido a esperança quando foram interceptados por homens afirmando ser da guarda costeira líbia.

Seus supostos salvadores rebocaram o barco até um área segura e depois seguiram para uma cidade chamada Zuara, 120 km a oeste de Trípoli, onde Ikuenobe foi jogado em um dos incontáveis acampamentos de detenção controlados por milícias, espalhados por todo o país. “Nessa prisão, não tem banamish", disse, usando a palavra árabe para "50-50". "Não dá para pagar pela liberdade. Tem gente que está lá há 10 anos."

Ikuenobe foi designado para trabalhar em uma fazenda colhendo dabinos — a palavra árabe para "tâmara do deserto", fruta que ele nunca tinha visto ou ouvido falar na Nigéria e cujo nome em inglês ele tinha dificuldade de lembrar.

"A pele da fruta é como se fosse feita de agulhas. Se ela bate no olho ou atinge a cabeça... eles não te dão remédio nenhum. Às vezes, a dor... você pensa, me deixe morrer, se é assim que a gente vai viver a vida."

Zuara irrompia periodicamente em violência, e, em uma tarde, os soldados que tomavam conta da prisão se espalharam para reforçar outro batalhão, deixando um garoto de 14 anos no comando.

Um companheiro de prisão nigeriano, que passou tanto tempo na Líbia que falava árabe quase fluente, aproveitou a oportunidade para escapar, enganando o jovem guarda. "O [rapaz nigeriano] estava dizendo a ele: 'Vá ver seu pai. Os rebeldes estão atacando seu pai — vá, vá, vá'", Ikuenobe recordou-se.

O jovem assustado correu, e os prisioneiros escaparam.

Na segunda vez que chegou na Líbia, Ikuenobe viu-se correndo por sua vida pelas ruas de uma cidade que não conhecia. Desta vez, ele foi rapidamente capturado por um grupo de milícias.

"Eu não me lembro das datas exatas, a noção de tempo some da sua cabeça, porque você vive feito um animal."

O que se seguiu foi tão traumático que Ikuenobe teve dificuldade para articular as coisas pelas quais ele passou. Geralmente falante, ele continuou com uma voz vazia, tamborilando os dedos. Ele conseguia se lembrar de nomes e lugares — ou pelo menos como eles soavam aos seus ouvidos estrangeiros — mas às vezes tinha dificuldade em formar uma sequência coerente ao recontar oito meses sendo jogado de uma prisão miliciana a outra.

"Eu não me lembro das datas exatas, a noção do tempo some da sua cabeça, porque você vive feito um animal lá."

Os guardas os agrupavam repentinamente, sem aviso ou explicação, e os transportavam de uma prisão para outra.

"Prisioneiros negros eram mantidos separados de outros, e eles têm medo de nigerianos, então sua prisão é pior ainda", disse sobre uma prisão chamada Duwela, próxima de onde seu barco partiu, em Sabrata.

Depois, ele atracou em uma prisão em Trípoli, que ele conhecia como Terigmata, uma penitenciária apoiada pela UE que fazia a prisão anterior, controlada pela milícia, "parecer um paraíso".

Depois, veio uma cela de prisão em Tajousa, em outro centro oficial para deportados. "Aquela prisão era um inferno."

Seus vigias empregavam táticas sádicas para manter o controle sobre milhares de prisioneiros que passavam fome. Os guardas às vezes entravam no local e disparavam uma rajada de balas para cima. Eles ficavam em um cômodo com telhado de ferro, o que significava que às vezes as balas ricocheteavam de volta à cela superlotada.

Hematomas se formaram ao redor de suas articulações de tanto dormir sobre um chão de concreto. "Era como uma masmorra. Onde você urina e defeca é onde você dorme. Às vezes, você defeca sangue", disse.

Salah, a pesquisadora do Human Rights Watch, disse que os prisioneiros negros ficam sob maior risco de serem forçados a trabalhar do que os outros. "Ninguém é isento de maus-tratos, [mas] na minha experiência... pessoas de pele branca ou outros árabes tendem a ficar menos tempo nas prisões."

Ela se lembra de perguntar aos guardas, em um centro de detenção, por que os presos eram tratados de forma tão desumana. Os guardas deram de ombros. “Eles não entendem que aqueles são seres humanos, que têm as mesmas necessidades que todos nós temos.”

Todas as noites, Ikuenobe rezava. "Nós [nos sentíamos] mais perto de Deus, porque nos sentíamos mais perto do túmulo. Eu rezava a Deus para ir para o céu quando morresse."

Assim como muitas das recordações de Ikuenobe desse período que passou na Líbia, os eventos se embaralhavam na sua cabeça. Em um centro de detenção, ele lembrava, dois oficiais da OIM o visitaram e falaram com ele. Ikuenobe deu seu nome e descreveu como tinha ido parar ali. Os oficiais gravaram seu depoimento, incluindo ele em uma lista de nomes de pessoas que desejavam voltar para casa.

Lidar com prisioneiros sem documentos é um processo trabalhoso na melhor das hipóteses, mas que é levado aos extremos quando se trata da Líbia. Os oficiais da OIM só podem chegar até as pessoas que são mantidas presas se sabem que essas pessoas existem — o que muitas vezes é uma questão de pura sorte, pois ninguém sabe quantos centros ou prisões existem.

E então, há a dificuldade de acompanhar aqueles que eles sabem que existem. Um acampamento no deserto do qual Ikuenobe se lembra como "prisão de Geria" foi apelidada pelos cativos de "prisão caravana", pois oficiais militares os reuniam e transportavam periodicamente para outras celas espalhadas pelo deserto.

Oficiais da UE, que denunciaram as condições desumanas nos centros de detenção, diziam que não tinham alternativas. "A Líbia é um país soberano, e nós precisamos trabalhar em proximidade com as autoridades líbias", disse um porta-voz da UE ao BuzzFeed News. "Nós não estamos fazendo vista grossa para o problema. Estamos tentando o máximo que podemos em uma situação que não é fácil."

Em 2017, a União Africana começou a desempenhar um papel maior, o que ajudou. "Eles começaram a prestar atenção ao fato de que era seu próprio povo que estava sofrendo", disse um oficial do OIM, falando sob condição de anonimato. Ficou mais fácil, por exemplo, para os presos obterem papéis permitindo a eles deixar o país. Isso ajudou cerca de 20.000 pessoas a retornar a seu país de origem a bordo de voos operados pela OIM saindo da Líbia.

"Os retornos voluntários não estão sendo apresentados como uma solução para resolver a situação atual", disse Belbesi, chefe da OIM Líbia, ao BuzzFeed News. "Eles são apenas uma das soluções que estão disponíveis às pessoas que estão isoladas no país."

Muitos não querem ir para casa. Para aqueles que fogem da guerra ou de governos repressores, a Líbia não é muito melhor nem pior do que está ocorrendo em casa. Alguns países africanos estão aceitando "reassentamentos em países terceiros", mas especialistas dizem que essa é apenas uma solução paliativa, até que aqueles que realmente precisam de asilo tenham uma rota viável para consegui-lo. Embora a UE tenha pressionado com sucesso o fechamento de 25 centros de detenção líbios em 2018, nenhum país do norte da África aceitou as propostas controversas de estabelecer centros oficiais de processamento de migrantes.

Dois anos e três meses depois de deixar a Nigéria, ele estava finalmente voltando para casa.

Com tanta gente ao seu lado no acampamento, Ikuenobe tinha pouca esperança de ser resgatado, e passou a maior parte de seu tempo em um estado de torpor.

Mas um dia ficou gravado em sua memória. Na quarta-feira, 22 de novembro de 2017, a porta da cela de Ikuenove foi aberta e dois oficiais começaram a ler uma lista de nomes — aqueles cujas solicitações de retorno tinham sido processadas.

Agachado em um canto, Ikuenobe mal levantava a cabeça enquanto a lista de nomes ficava mais longa. Em uma ato de autopreservação, ele não se atreveu a ter esperança.

Quando seu nome foi chamado, ele cambaleou, estupefato. Ele estava fisicamente esgotado de meses de trabalho excruciante, sua mente atordoada pelo trauma constante.

Dois anos e três meses depois de deixar a Nigéria, ele estava finalmente voltando para casa.

Para muitos, a euforia de ir para casa dura pouco. Na Nigéria, os repatriados se veem mais afundados em dívidas — muitas vezes, também, impondo ainda mais dívidas a suas famílias — e com ainda menos possibilidades que antes. Em vez de enfrentar a vergonha de voltar de mãos vazias, muitos tentam outra viagem à Europa, muitas vezes usando outro contrabandista que oferece uma rota "atualizada".

A falta de recursos disponibilizados pelo governo para ajudar os repatriados ou impedir que outros tentem ir embora é somada ao fato de que muitos repatriados não querem ajudar a indiciar os contrabandistas. "Você não pode indiciar e fazer trabalho humanitário ao mesmo tempo. As pessoas não chegam nem perto de você se você indicia agressivamente — estamos falando de mães, pais, pessoas próximas a eles", disse Yinka Omorogbe, procuradora-geral do Estado de Edo, onde cerca de três quartos das famílias enviaram pelo menos um membro para o exterior.

Ikuenobe tornou sua missão pessoal estancar o fluxo de nigerianos para fora do país. Ainda incapaz de encontrar um trabalho decente, ele passa seus dias visitando escolas e igrejas para compartilhar suas experiências, pegando dinheiro emprestado de sua irmã para arcar com os gastos de transporte. No entanto, suas palestras muitas vezes entram por um ouvido e saem pelo outro, e Ikuenobe também entende isso.

"Eu não digo para eles não migrarem. A migração é boa. Mas eles não devem seguir a rota da Líbia, eles devem pedir um visto legitimamente. Esses traficantes podem envenenar sua mente."

Ele geralmente demonstra seu argumento mostrando aos alunos uma foto de quando retornou da Líbia: esquelético, olhos vazios e bochechas fundas. Um silêncio aturdido sempre se segue.

Depois de meses de busca, ele finalmente descobriu o que aconteceu com um dos três amigos que saíram com ele para comprar água em Saba. Ele descobriu, por meio de outro repatriado, que depois de atirarem na perna do homem, os Asma Boys o arrastaram até o gueto deles. Por meses, os pais do rapaz mandaram dinheiro, esperando que ele fosse liberto. Eles não sabiam que seu filho tinha sangrado até a morte poucos dias depois de levar o tiro. ●


A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Luísa Pessoa.

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