Os curdos já lutavam contra o Estado Islâmico bem antes dos EUA. Aqui contamos como isso aconteceu.

    Antes de os Estados Unidos entrarem na guerra contra o Estado Islâmico, antes de Trump abandoná-los, os curdos estavam travando uma batalha solitária contra os jihadistas numa zona esquecida da Síria.

    Mike Giglio passou anos fazendo reportagens sobre a guerra contra o Estado Islâmico no Iraque e na Síria. Como os combatentes curdos antes apoiados pelos EUA foram os que mais se sacrificaram naquela guerra e agora se veem enfrentando um ataque das forças turcas, Giglio — anteriormente um correspondente do BuzzFeed News e agora integrante da equipe do Atlantic — relembra de quando eles o apresentaram à ameaça que se tornaria o Estado Islâmico neste trecho de seu novo livro, Shatter the Nations: ISIS and the War for the Caliphate.

    Entrei num ônibus escolar com minha mochila e colete à prova de balas e fiquei surpreso de ver os rostos dos estudantes olhando para mim.

    Achei que o ônibus era só um disfarce para o contrabandista que um velho amigo contratou para me atravessar pela fronteira turca até o nordeste da Síria, mas ele pareceu ser o motorista regular, e deve ter sido o fim do dia de aula. Os estudantes baixaram os olhos enquanto eu me espremia pelo corredor e me afundava em um assento vazio.

    Era novembro de 2013, e estava me preparando para encontrar com um grupo pouco conhecido de militantes curdos que estavam operando um novo front na guerra civil. Comigo estava o fotógrafo Yusuf Sayman, que se enfiou na fileira à minha frente, com seu colete e a bolsa da câmera. Ficamos em silêncio durante o trajeto à medida que o ônibus fazia suas paradas normais ao longo de uma estrada de terra que levava de uma cidade turca à fronteira síria, deixando crianças uniformizadas em suas casas. Quando a última delas desceu, o ônibus continuou seguindo até chegarmos a uma clareira onde dois contrabandistas estavam sentados debaixo de uma árvore.

    Esperamos com eles enquanto entardecia, com um frio que indicava o inverno. À medida que o sol mergulhava no horizonte, mais viajantes surgiam, caminhando em nossa direção, vindos dos campos na região. Um homem disse que morava próximo, em relativa segurança no sul da Turquia, mas trabalhava na Síria em uma refinaria de petróleo.

    Ele foi o primeiro a me contar a história dos estranhos jihadistas que tinham aparecido na zona esquecida da Síria além das minas. "Eles têm barbas grandes e chaves penduradas ao redor do pescoço e dizem 'Allahu akbar'", declarou. Ele levantou seus braços para o ar. "E eles explodem."

    Na semana seguinte, ouviria as histórias várias vezes — de homens com barbas longas e selvagens, cabelos soltos e com um amor por bombas e morte. Foi dito que eles acreditavam que as chaves no pescoço abririam os portões do paraíso. Em alguns relatos, eles até carregavam colheres nos bolsos, para comer com o Profeta Maomé quando chegassem lá.

    A noite caiu com uma profunda escuridão. O homem estava falando sobre bombas nos coletes suicidas que os jihadistas usavam e nos carros que dirigiam para dentro de mercados e hospitais. Um dos contrabandistas me pegou pelo colete, assim podíamos nos mover rápido, e nos juntamos ao fluxo de homens, mulheres e crianças correndo em direção à fronteira, e as bolsas balançavam e pulavam enquanto corríamos. Em algum lugar na escuridão, guardas turcos protegendo a fronteira ficavam atirando e gritando. Deslizamos através de um buraco no arame farpado.

    Algumas semanas antes, da Turquia, eu tinha ligado para um amigo na Síria em uma linha instável de Skype. Seu nome era Barzan Iso, e ele era um partidário da pouco conhecida facção da guerrilha curda que controlava a faixa nordeste da Síria em que eu estava entrando. Costumávamos beber juntos em Istambul, onde eu morava. Barzan estava morando lá como um exilado político mesmo antes da guerra, mas durante o verão retornou à Síria. A guerra civil, mais desesperadora do que nunca, depois do famoso ataque com armas químicas de Assad no agosto anterior, foi sumindo das notícias internacionais. O Egito estava no auge de uma contrarrevolução e a Líbia e o Iêmen estavam entrando em um espiral de caos. A Primavera Árabe estava morta. Mas Barzan me disse que algo perigoso estava surgindo em sua região e arranjou minha viagem com os contrabandistas para que eu pudesse ver.

    Yusuf e eu apertamos o passo ao longo de uma trilha que os contrabandistas tinham aberto através das minas, que se estendia por quilômetros cruzando a terra sem dono que separava os dois países. Os sons dos gritos e dos tiros desapareceram. Diminuímos o passo, e os viajantes ao nosso redor se dispersaram na noite, deixando-nos com nossos contrabandistas. Vi uma luz brilhando em uma pequena cabana que ficava no topo de uma colina. Andamos em direção a ela.

    Dentro, estava um homem em uniforme militar, sentado em uma mesa com um grande livro aberto diante dele. Este foi meu primeiro encontro com os combatentes curdos que um dia se tornariam os principais aliados dos americanos em sua então guerra inimaginável contra o Estado Islâmico na Síria. Ele pediu nossos passaportes com a formalidade rotineira de um oficial da alfândega e começou a copiar os detalhes em seu livro gasto. Cachorros latiam do lado de fora. Estávamos parados no que parecia ser um barracão de fazenda.

    A guerra tinha dividido a Síria em pequenos feudos, onde cada grupo se esforçou para instalar sua própria burocracia. Às vezes, parecia como um enorme e violento jogo de poder. Você tinha que ser cuidadoso para não ofender ninguém, mas também tinha que se certificar de não deixá-los arruinar seu passaporte. Em uma viagem, Yusuf e eu tínhamos entrado no território rebelde no início da guerra, um soldado nos encontrou na fronteira em um sedã surrado e nos levou até o primeiro posto de controle, onde um outdoor com anúncio de uma estação de rádio FM dizia "Bem-vindo à Síria Livre". Um homem barbudo se aproximou da minha janela balançando um carimbo de entrada. Eu o despachei, passamos pelo outdoor e entramos em um deserto de edifícios bombardeados e lamaçais cheios de tendas de refugiados. O batalhão que controlava aquela travessia foi destituído por um rival logo em seguida, e assim continuou. Yusuf, um robusto fumante inveterado de Istambul, tinha gerenciado um bar no East Village em Manhattan antes de se tornar um jornalista. Ele tinha uma frase que costumava usar no início da guerra, em seu barítono áspero de homem do jazz: "mickey mouse”, que significa gambiarra. Havia postos de controle gambiarra, tribunais gambiarra, bombas gambiarra que explodiam na cara de seus fabricantes e um míssil gambiarra que virou no ar e voltou para as pessoas que o dispararam. Uma vez, ele pediu carona para Síria com uma brigada gambiarra.

    O homem na mesa queria reter nossos passaportes até que retornássemos sorrateiramente para Turquia, mas nós protestamos e ele cedeu. Nosso guia chegou — um homem de 25 anos que tinha uma arma pendurada em sua cintura — e nos levou para a parte de trás de uma caminhonete. Fomos para a cidade mais próxima, onde uma família solidária com as guerrilhas locais nos acolheu em sua casa, com uma ceia. Sentamos no chão, diante de pratos de carne e queijo, e novamente ouvimos a história de homens com barbas e chaves.

    Na manhã seguinte, seguimos em direção a capital regional de Qamishli em uma antiga van Astro. A estrada passava por campos agrícolas e refinarias de petróleo e por entre postos de controle administrados por soldados nervosos. Estávamos distantes de lugares como Damasco e Alepo que tinham sido o foco da guerra civil. Esta terra era controlada pelos curdos, grupo étnico com raízes no antigo Irã que era uma minoria na Síria, bem como no Iraque, na Turquia e no Irã. Os curdos representavam cerca de 10% da população da Síria e estavam concentrados principalmente no nordeste do país, região árida e pouco desenvolvida entre Iraque e Turquia. Os curdos a chamam de Rojava.

    Os curdos sírios eram oprimidos sob a dinastia de Assad, que os via como potenciais separatistas. Por décadas, o regime realizou campanhas de assimilação forçada e limpeza étnica contra os cidadãos curdos. Às vezes, proibia-se dar nomes curdos aos filhos. Quando os curdos protestaram sobre o seu tratamento uma década antes, foram mortos nas ruas de Rojava. Muitos foram cautelosos em participar na revolta da Primavera Árabe da Síria, compreendendo o tipo de sofrimento que o regime era capaz de causar. Em vez disso, quando a guerra civil irrompeu, os líderes curdos fizeram um acordo com seu antigo inimigo na esperança de manter Rojava fora disso. O regime cedeu o controle de Rojava aos curdos e permitiu que, para defendê-la, eles criassem uma milícia chamada de Unidades de Proteção Popular e conhecida pelo seu acrônimo curdo como YPG. Em troca, os curdos prometeram não se juntar à rebelião. Desde então, em meio a esta desconfortável trégua, Rojava tem sido poupada.

    Mas, em meses recentes, a violência chegou a Rojava de uma maneira inesperada. Os curdos estavam sob ataque ao longo de sua fronteira pelos mais extremistas dos combatentes islâmicos rebeldes, incluindo os bandos de cabeludos jihadistas de que eu tinha ouvido falar. (Achei a ideia de que eles carregavam chaves e colheres para a batalha exagerada, e por fim decidi que esses detalhes eram simplesmente parte dos temores febris que os jihadistas tinham provocado entre a população curda.) Poderia parecer estranho para esses radicais terem se interessado por essa parte remota do território, se você apenas visse Rojava através das lentes da guerra entre os rebeldes e Assad. Mas, para alguém que planeja iniciar uma nova guerra — e estabelecer os parâmetros de um novo país —, Rojava era uma propriedade valiosa.

    Ela se estendia por mais de 320 quilômetros ao longo da fronteira da Turquia, que ainda era a porta de entrada não apenas para a economia de guerra do sul da Turquia, mas também para rotas de passagem para a Europa e além. Rojava também fazia fronteira com duas cidades sírias que os extremistas estavam trabalhando silenciosamente para controlar. Raqqa e Deir Ezzor eram pouco conhecidas fora da Síria, mas elas e seus arredores abrigavam os principais poços de petróleo da Síria e uma população conjunta de mais de 2 milhões de pessoas. Elas também estão situadas ao longo das estradas do deserto que levavam para duas cidades principais no Iraque: Ramadi, a capital da província de Ambar, e Mossul, a agitada cidade no norte do país.

    Enquanto acelerávamos na van Astro, a estrada estava vazia na maior parte. No entanto, quando passava por pequenas cidades, tudo estava forrado com estandartes voando como bandeiras. Nos estandartes estavam fotos de soldados da YPG — homens e mulheres jovens com rostos endurecidos. Eles eram moradores que estavam morrendo aos montes em sua batalha com os jihadistas. "Ninguém fala sobre nós. Não vimos nada na TV", disse nosso guia.

    "Eles tinham barbas grandes e chaves penduradas ao redor do pescoço e diziam 'Allahu akbar'. E eles explodem."

    Nos arredores de Qamishli, esperávamos à beira da estrada por uma escolta, duas caminhonetes com milicianos armados nas suas caçambas. Uma foi na frente da van e a outra atrás enquanto entrávamos na cidade. Como parte do acordo que fizemos, o regime ainda controlava algumas instalações principais, além do aeroporto e a via principal da cidade. Os soldados na primeira caminhonete ficaram tensos quando passaram por um grupo policial com seus uniformes pretos, parados à beira da estrada. Por fim, chegamosa um quartel-general de segurança curdo, cercado por barricadas e guardas.

    Na sede, fomos recebidos por uma foto emoldurada tão grande que era quase em tamanho real. Mostrava um homem arrogante, com um bigode grosso e um olhar estranho e recuado no rosto, como se ele tivesse cheirado algo surpreendente. Era o líder nacionalista curdo Abdullah Ocalan, que passou os últimos 15 anos em regime de isolamento numa prisão insular ao longo da costa da Turquia, onde o governo também passou décadas reprimindo sua população curda. Ele foi o fundador do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, ou PKK, que vinha realizando uma insurgência no sudeste da Turquia desde a década de 1980 e foi considerado um grupo terrorista pelo Departamento de Estado dos EUA. A milícia YPG que controlava Rojava era uma filial do partido, fundada no começo da guerra civil por um punhado de membros veteranos do PKK. A YPG parecia ser de outro lugar e tempo, um retorno aos grupos radicais de esquerda que floresceram por toda a Europa durante as presidências de Jimmy Carter e Ronald Reagan. Eles pregavam a doutrina neomarxista com uma política comunitária e quadros destacados de mulheres combatentes. As tropa usava tênis marrons iguais que pareciam com os Nike Air Force One e se chamavam de heval, ou camaradas. Alguns eram veteranos do PKK e outros eram fazendeiros e comerciantes recrutados para ajudar a manter as linhas. Seu secularismo ardente fez deles anti-islâmicos e um inimigo natural para os jihadistas.

    Sentei para tomar chá com um oficial de segurança curdo de uns 40 anos, Jewan Ibrahim, que usava um traje de voo verde com uma faixa verde em torno da cintura e uma jaqueta verde. Havia muitos curdos que se opunham à expansão da YPG na Síria e ao seu acordo com Assad, mas eles tinham sido forçados a sair, e a YPG agora controlava todos os aspectos da segurança e da política de Rojava. Ibrahim disse que ele não se arrependia de nada. “É como mantivemos nossa cidade”, disse ele sobre o acordo. “Do contrário, ela seria destruída, como Alepo. Aprendemos com nossa revolução. Aprendemos a não destruir nossas cidades.”

    Outra razão para evitar uma luta com o regime era o novo inimigo. Ibrahim disse que os mesmos extremistas que estavam atacando Rojava estavam ganhando influência sobre a rebelião.

    Enquanto o acordo com Assad se mantinha, os cessar-fogos que os curdos tinham estabelecido com grupos rebeldes estavam enfraquecendo à medida que a rebelião mudava. Em todo o território da oposição, os combatentes ligados à Al-Qaeda apoderavam-se de pequenas partes de território em golpes silenciosos, como uma cobra que devora pequenas presas enquanto espera por algo maior. Os jihadistas estavam instalando burocracias que eram muito mais eficientes do que qualquer coisa que os rebeldes haviam tentado antes, estabelecendo sistemas fiscais e exigindo tributo sobre tudo, de armas a algodão e grãos. E eles estavam visando áreas com recursos como petróleo, que poderia ser vendido no mercado negro. A maioria dos outros grupos rebeldes dependia de benfeitores externos para sobreviver — dos doadores privados no Golfo aos serviços de inteligência de países como Arábia Saudita, Turquia e Estados Unidos. Os jihadistas tinham um plano diferente. Eles queriam se tornar autossuficientes. O mais brutal e eficaz foi um grupo cujo nome deixava clara sua ambição: o Estado Islâmico do Iraque e da Síria, a que os habitantes locais se referiam pelo seu acrônimo: Daesh em árabe, ou ISIS.

    O Estado Islâmico havia surgido da Frente Nusra, a facção rebelde extremista cujos membros jovens e idealistas encontramos perto de Antakya, e os dois grupos estavam em processo de divisão. Ibrahim disse que os mujahidin estrangeiros que estavam chegando na Síria estavam agora concentrados nas fileiras do Estado Islâmico. Em uma recente batalha, ele disse: "Eu vi pessoas da Europa com meus próprios olhos". Os combatentes ainda vinham para a Turquia de avião e podiam chegar facilmente à Síria através da fronteira. Os restos da AQI, a facção da Al-Qaeda que lutou contra as tropas americanas durante a Guerra do Iraque, estavam, enquanto isso, rumando para a Síria a partir do Iraque. "A Al-Qaeda na Síria é agora ainda mais forte do que a no Iraque", disse Ibrahim

    Os curdos tinham sido o único grupo até o momento a parar os jihadistas — afastando-os de uma cidade chamada Ressaina, a 112 quilômetros a oeste, e de várias cidades — talvez porque muitos combatentes curdos também eram veteranos rebeldes. Mas eles estavam sendo atacados regularmente: havia carros-bomba, explosões suicidas e dispositivos explosivos improvisados (IEDs) plantados na estrada durante a noite. Um bombardeio em uma pequena cidade deixou 14 civis mortos. Ibrahim disse que os jihadistas estavam empregando as mesmas táticas que aprimoraram contra os americanos no Afeganistão e Iraque. "As pessoas que estão planejando isso são muito inteligentes", comentou.

    Eu iria recordar esta conversa mais de cinco anos depois, no outubro de 2019, quando Donald Trump abandonou a parceria que os EUA tinham finalmente estabelecido com os curdos. Jatos turcos e artilharia começaram a encurralar Rojava menos de um dia depois de sua ligação para o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, sobre a operação pendente. Até então, a YPG vinha trabalhando com as tropas americanas por mais de quatro anos, unindo-se aos batalhões árabes para formar a Forças Democráticas da Síria apoiadas pelos EUA, as forças terrestres para a guerra dos EUA contra o Estado Islâmico na Síria, supostamente perdendo mais de 10.000 soldados no caminho. Os curdos vêm lutando contra o Estado Islâmico desde muito antes de os EUA terem visto a extensão da ameaça — e no final, eles eliminaram o grupo do nordeste da Síria, pondo um fim ao seu califado físico. Como resultado, eles trabalharam para estabelecer uma medida de ordem e, de maneira crucial para os curdos, de autonomia. A traição de Trump lançou todo esse progresso em dúvida — levantando a possibilidade de um ressurgimento do Estado Islâmico e matando o sonho de Rojava. Confrontados com a invasão pelos turcos, com as tropas americanas tendo se retirado, os curdos se voltaram para Assad por proteção — uma possibilidade arriscada que, no entanto, cumpriu a missão que Ibrahim tinha definido em 2013, de poupar a região da aniquilação.

    Depois do encontro com Ibrahim, nos amontoamos de volta na van Astro e dirigimos por entre Qamishli. Havia pichações pela cidade, ainda visíveis por trás de novas camadas de tinta. "Nosso líder é o Profeta Maomé", dizia uma delas. "Sacrificarei meu pai ou mãe pelo Profeta", dizia outra. Nos pontos de controle que se alinhavam nas estradas, soldados tentavam não ficar em grupos, acreditando que isso faria deles um alvo mais fácil. Eles prestavam atenção extra aos carros com motoristas homens e sem passageiros e a homens com barbas. Eles vasculhavam carrocerias de caminhonetes e abriam capôs e porta-malas. Eles rastejavam no chão para espiar debaixo das carroceria dos caminhões. "Temíamos por nossas vidas", disse um que tinha 17 anos.

    Uma noite, em um posto avançado perto das linhas de frente fora de Ressaina, a cidade de onde os curdos recentemente tinham expulsado os extremistas rebeldes, soldados se aqueciam em uma tenda perto de um trecho da estrada. O mar de escuridão ao redor deles era interrompido apenas pelo movimento ocasional de faróis. Um fazendeiro de 46 anos e pai de quatro, de uma vila próxima, disse que, como os jihadistas avançaram em Ressaina, ele decidiu pegar em uma arma pela primeira vez na vida. Ele teve uma pequena sessão de treinamento, aprendendo a manusear uma metralhadora e operar com segurança, e depois se juntou à guerra. "Qualquer um que disser que não está com medo quando vai para a luta é o maior mentiroso", comentou. "Fui forçado. Havia apenas uma coisa em minha mente: não permitir que nenhum estrangeiro tome minha terra."

    Ele narrou o estilo de luta do inimigo com pavor. Eles dispararam foguetes lançadores de granadas, ou RPGs, do meio da rua, sem se preocuparem em se esconder, e disparavam tiros como se tivessem um estoque ilimitado. Mais soldados experientes no posto avançado disseram que os jihadistas também tinham atiradores bem treinados e combatentes que podiam operar armas pesadas e tanques. "Os atiradores são muito bons", comentou um deles, segurando uma mão enfaixada para provar seu ponto.

    Na manhã seguinte, seguimos para o leste até uma cidade chamada al-Yarubiyah, na fronteira com o Iraque. Era banal, exceto pela convergência das duas maiores estradas: a Highway 1 do Iraque, que se estendia até Mossul, e a M4 da Síria, que ia até Raqqa. Os jihadistas a dominaram meses antes e a mantiveram até que os curdos a libertaram na semana anterior.

    Na estrada para a cidade, carros cheios de moradores estavam retornando. A carroceria dos caminhões estava empilhada de móveis; uma estava lotada com um rebanho de ovelhas. "Sinto que nasci de novo", disse um homem que passou com sua esposa e seis crianças pelo posto de controle que a YPG construiu para examinar os recém-chegados.

    Em al-Yarubiyah, as pessoas perambulavam por antigos prédios reduzidos a escombros e reabriram as casas fechadas. Algumas foram roubadas. Pertences furtados estavam espalhados por um armazém, um armário derrubado, espalhando roupas de meninas; um baralho de cartas de UNO espalhado e um manequim médico aberto, mostrando seu interior. Os soldados vasculhavam a bagunça. A luz do sol passava pelos buracos de tiro nos revestimentos de metal do prédio.

    As pichações cobriam a cidade, o spray de tinta preto estendia-se por todas as paredes, expondo exultações religiosas e versos do Alcorão, escritos em caligrafia exata. Estava nos portões de vitrines fechadas e nos postes de telefone. Cobria o antigo prédio de segurança de estado, queimado e cravejado de balas, que tinha sido convertido em um tribunal islâmico.

    A maioria dos moradores fugiu quando os rebeldes chegaram. Aqueles que ficaram relembram uma transição nebulosa entre os novos senhores da cidade. Soldados que pareciam moderados eram substituídos por (ou se transformavam em) fervorosos islâmicos. Eles começaram a impor um código draconiano, proibindo os moradores de ouvir música, fumar cigarros e obrigando-os a jejuar e orar. O dono de uma mercearia passou duas noites preso por possuir um narguilé. O preço do pão subiu absurdamente e o combustível se tornou escasso. Os moradores tentavam evitar o confronto. "Para eles, é 8 ou 80. Você pode se tornar inimigo muito rápido", disse o dono da mercearia.

    Um dia, no cruzamento perto da mercearia, os jihadistas arrastaram dois homens que pareciam atordoados, um mais novo e outro talvez na casa dos 50 anos, e os apresentaram como agentes do exército sírio. Os acusados podem ter sido sedados. Eles ofereceram pouca residência enquanto os jihadistas decepavam suas cabeças. O dono da mercearia disse que parou e ficou pasmo. Outro homem contou que vomitou na rua. Outro, que tinha 25 anos, disse que gravou a cena com o celular. Pedi para ver o vídeo e ele respondeu, "Eu o deletei, xeique". Ele se dirigiu a mim pelo título honorífico para os estudiosos islâmicos, por engano. Envergonhado, ele explicou que isto tinha se tornado um hábito. "Eles nos mandaram chamá-los de xeique", contou. "E, se você não dissesse xeique, aí tinha um problema."

    Na periferia da cidade, no portão da fronteira, o que em tempos de paz tinha sido um pequeno prédio administrativo permaneceu sem as marcas da onipresente pichação. Dentro, soldados curdos encontraram embalagens de TNT e as características de uma fábrica de carros-bomba. Eles levaram a maioria das coisas para fora, mas alguns itens permaneceram — cilindros de metal grosso para armazenar explosivos, sacos de pó de alumínio para aumentar as explosões, e rolamentos de esferas de metal, tirados de uma fábrica de cimento local, para servir como estilhaços.

    A fábrica de bombas ficava ao lado de um grande edifício em que caminhões de carga do Iraque e da Síria antigamente se encontravam para trocar suas cargas. Seu enorme piso estava vazio, exceto por um conjunto de placas de metal que tinham sido organizadas perfeitamente em fileiras. Cada uma tinha sido estampada com a mesma escrita cuidadosa, um texto muito compacto. "Não há deus senão Deus, e Maomé é o mensageiro de Deus", diziam as placas na parte inferior, e acima disso, escrito como um selo oficial: "O Estado Islâmico do Iraque e da Síria".

    Saí para a luz do sol e vi um policial vagando pelo terreno ao redor do prédio. Perguntei se ele sabia do objetivo das placas da metal. Eram cartazes, ele disse. Ele apontou para os postes amarelos que marcavam a fronteira, com vista para a Síria e o Iraque. "Eles queriam tomar parte daqui e de lá", comentou, apontando de um lado para o outro, "e se tornar o Estado Islâmico". •


    Este post foi traduzido do inglês.

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