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É assim que funciona um Estado policial em pleno século 21

Longe da pulsante Pequim, a região de Xinjiang, na China, virou um Estado policial que usa as mais avançadas tecnologias e milhares de policiais nas ruas, a fim de controlar cada aspecto do cotidiano.

KASHGAR, China — Aqui é um lugar em que deixar a barba crescer pode te levar à polícia. Assim como convidar pessoas ao seu casamento ou batizar seu filho de Muhammad ou Medina.

No caminho para cidades vizinhas, há postos em que policiais armados podem bisbilhotar seu celular à procura de aplicativos proibidos, como o Facebook ou o Twitter, e ler suas mensagens para ter certeza de que você não usa linguagem religiosa.

Você ficaria bem preocupado de ligar para amigos ou familiares no exterior. Algumas horas depois, policiais poderiam aparecer na sua porta fazendo perguntas que incluem detalhes da sua conversa.

Esse futuro distópico já chegou para milhões de pessoas que vivem na remota China ocidental. O país está criando na região autônoma de Xinjiang, que fica a quatro horas de avião da capital Pequim, um Estado policial que utiliza tanto as mais avançadas tecnologias como pessoas, a fim de controlar cada aspecto do cotidiano de seus habitantes.

A região abriga uma minoria étnica muçulmana, os uigures, que a China acusa de criar grupos separatistas e praticar atos de terrorismo. Há alguns meses, milhares de uigures e membros de outras minorias étnicas desapareceram — em lugares chamados "centros de educação política" —, por terem usado redes sociais ou ido estudar em países muçulmanos, segundo parentes de detidos nesta situação.

Nos últimos dois meses, entrevistei mais de vinte uigures, incluindo exilados e habitantes de Xinjiang, sobre como é a vida na região. A maioria deles pediu para não ser identificado por medo da polícia.

O governo chinês diz que as medidas de segurança são necessárias por causa da ameaça de extremismo por parte de militantes uigures. De tempos em tempos a região enfrenta crises, desde protestos que deixaram 200 mortos, em 2009, a uma série de ataques a bomba entre 2013 e 2014. O governo também argumenta que a vida dos uigures melhorou, citando investimentos no desenvolvimento econômico da região, bem como programas que facilitam aos uigures ir à universidade ou conseguirem empregos estatais. O ministro do Exterior chinês disse não ter conhecimento de medidas de vigilância postas em prática pelo governo.

"Eu gostaria de declarar que as pessoas em Xinjiang têm um ambiente de vida e trabalho feliz e tranquilo", disse Lu Kang, porta-voz do Ministério do Exterior da China, ao ser questionado sobre o assunto. "Nós nunca ouvimos falar que medidas desse tipo foram tomadas."

Analistas e grupos de direitos humanos afirmam que as restrições punem 9 milhões de uigures — aproximadamente metade dos habitantes da região — pelas ações de algumas poucas pessoas, além de intensificarem o ressentimento e o extremismo.

A vigilância governamental onipresente afeta os aspectos mais prosaicos da vida diária. Uma descolada jovem uigur que vive na Turquia, que chamarei de D., conta que ficou impossível telefonar para a avó dela, que mora numa pequena vila em Xinjiang.

Sempre que D. ligava para a vó, horas depois a polícia aparecia exigindo que a idosa telefonasse de novo para D. com eles no local.

"Pelo amor de Deus, eu não vou conversar com a minha vó de 85 anos sobre como destruir a China!", ela disse nervosa, sentada do outro lado da mesa em um café perto do escritório onde trabalha.

Quando ficou noiva, D. convidou alguns parentes distantes que moram em Xinjiang para o casamento. Como agora é quase impossível tirar passaporte se você é uigur, D. acabou adiando a festa durante meses, na esperança de que a situação iria melhorar.

Foi quando, em maio, ela conseguiu falar com a mãe em vídeo pelo WeChat, o aplicativo de mensagens mais popular da China. Quando D. perguntou como eles estavam, a família respondeu que estava tudo bem. Aí um dos parentes dela, com medo de a polícia estar escutando, mostrou um bilhete que dizia: "Não conseguimos os passaportes."

D. sentiu o coração murchar, mas só balançou a cabeça e continuou falando. Assim que ela desligou, caiu no choro.

"Não me interprete mal, eu não apoio homens bomba ou ninguém que ataque inocentes", ela disse. "Mas naquele momento eu disse à minha mãe que eu entendia eles. Eu fiquei tão brava que fui capaz de compreender como aquelas pessoas podiam se sentir daquele jeito."

O governo chinês investiu bilhões para usar em Xinjiang o que há de melhor no quesito vigilância, desde câmeras com reconhecimento facial em postos de gasolina até drones que patrulham as fronteiras com outros países.

Veja este vídeo no YouTube

youtube.com

Especialistas acreditam que esse vídeo, que mostra uma esquina na China, mostra como inteligência artificial atua para reconhecimento facial e de comportamentos anômalos.

A China não está sozinha — governos de países como Estados Unidos e Inglaterra também injetaram bilhões em tecnologia da segurança e técnicas para combater ameaças terroristas. Mas no país asiático, onde os tribunais controlados pelo Partido Comunista condenam 99,9% dos réus e prisões arbitrárias são comuns, a espionagem digital e física que a população de Xinjiang sofre resultou em consequências terríveis para uigures e outras minorias étnicas. Muitos foram presos depois de exigir mais direitos ou por professarem a cultura uigur.

Na última década, a China aumentou paulatinamente as restrições impostas a Xinjiang, em resposta a desordem e ataques violentos. Mas desde que um novo secretário do Partido Comunista, Chen Quanguo, assumiu o governo da região, em agosto do ano passado, a vigilância aumentou muito. O uso de centros de educação política — onde milhares foram detidos este ano sem cometer crimes — também aumentou após ele assumir. O gasto com segurança interna em Xinjiang aumentou 45% no primeiro semestre do ano, em comparação ao mesmo período do ano passado, segundo uma análise do pesquisador Adrian Zenz, da Escola Europeia de Cultura e Teologia, na Alemanha. Uma parte desse dinheiro serviu para levar dezenas de milhares de policiais para patrulhar as ruas.

Em um discurso feito em agosto, o chefe da segurança interna chinesa, Meng Jianzhu, falou sobre a necessidade de manter um banco de dados com o DNA dos habitantes para manter Xinjiang segura.

É um canto do país que se tornou uma janela no possível futuro distópico da vigilância tecnológica, mantido pela China, que tem tanto o dinheiro como a vontade política para monitorar — e reprimir — minorias étnicas. A situação em Xinjiang poderia ser um teste para medidas de vigilância draconiana no resto do país, dizem analistas.

"É uma prisão a céu aberto", disse Omer Kanat, diretor do Uyghur Human Rights Project, em Washington — grupo que conduz pesquisa sobre a vida dos uigures em Xinjiang. "A Revolução Cultural voltou [para a região], e o governo não está tentando esconder nada. É a céu aberto."

Antes um oásis na Rota da Seda, Kashgar é o coração cultural da comunidade uigur. Numa calma alameda ao norte da cidade, entre restaurantes de comida oriental e padarias, fica um imponente prédio cercado de muros de concreto com arame farpado. As paredes têm pôsteres coloridos com slogans como "ame o partido, ame o país".

O edifício é conhecido como Centro de Treinamento e Educação Profissional de Kashgar. Quando eu tirei uma foto da fachada, em setembro, um policial veio correndo e ordenou que eu apagasse a imagem.

"Que tipo de coisas ensinam aqui?", perguntei.

"Eu não posso dizer. Apenas apague a foto", ele respondeu.

“As pessoas desaparecem nesse lugar."

Antes do início do ano, o prédio abrigava uma escola. Mas segundo três pessoas que têm amigos e familiares presos lá, o edifício agora é um centro de educação política — um dos centenas de locais em que uigures são detidos, às vezes durante meses, para estudar mandarim, as leis chinesas sobre o Islã e atividades políticas, e todas as maneiras pelas quais o governo é bonzinho com o povo chinês.

"As pessoas desaparecem nesse lugar", disse o dono de uma loja na área. "Muitas pessoas — muitos amigos meus."

Ele não teve notícia deles desde então, e mesmo as famílias não conseguem entrar em contato. Nos últimos meses, milhares de uigures e membros de outras minorias étnicas foram presos em locais como esse. Apesar de esse tipo de centro não ser novidade, eles ganharam importância em Xinjiang nos últimos tempos.

Pelos portões, pude ver um jardim decorado com uma estátua branca no estilo realista da era soviética, um outdoor vermelho com um slogan e outra guarita policial. Todas as cortinas do prédio bege estavam fechadas.

A mídia estatal chinesa admitiu a existência dos centros e frequentemente escreve sobre os "benefícios" que eles oferecem à população uigur. Em uma entrevista ao jornal estatal Xinjiang Daily, um fazendeiro uigur de 34 anos — descrito como "um aluno impressionante" — disse não ter noção de que seu comportamento e suas roupas poderiam ser manifestações de "extremismo religioso", até receber educação política em um desses centros.

Ser detido para fins de educação política não é considerado, na China, uma forma de punição criminal. Desse modo, não há sentenças ou acusações contra as pessoas que estão lá, o que torna difícil dizer com certeza que comportamento as levou ao cárcere. Na região, corre à boca pequena que algumas razões incluem ter um parente que cometeu crime, ver algum conteúdo proibido no celular ou parecer religioso demais.

É claro, porém, que ter viajado a um país muçulmano — ou ser parente de alguém que viajou — é arriscado. E a onipresença da vigilância digital torna quase impossível contatar parentes no exterior, segundo os uigures com quem conversei.

Um recém-exilado conta que a mulher dele, que continuou em Xinjiang com a filha pequena do casal, pediu um divórcio para que a polícia parasse de questioná-la sobre as atividades do marido.

"É perigoso demais ligar para casa", disse outro uigur exilado em Ankara, capital da Turquia. "Antes eu ligava para meus colegas de classe e parentes. Mas aí a polícia ia na casa deles, e na ligação seguinte eles pediam para eu não telefonar mais."

R., um estudante uigur que acabou de se formar, aprendeu russo na faculdade. Ele estava morrendo de vontade de estudar no exterior. Por causa de novas regras tornaram quase impossível conseguir um passaporte, a família dele juntou US$ 1.500 para subornar um servidor estatal.

Foi assim que R. chegou a uma cidade turca, onde começou a aprender a cultura e o idioma locais, semelhantes aos dos uigures. Ele ficou com saudades da família e da plantação de algodão em Xinjiang. Mesmo assim, evitou telefonar demais para não causar problemas.

Ele finalmente teve notícias da mãe. Em uma ligação, ela contou quão grata era ao governo.

"No interior do país, se você recebe uma ligação do exterior, eles vão saber. É óbvio", disse R., que topou se encontrar comigo nos fundos de um restaurante escolhido por ele, mas só depois que todo mundo já tinha ido embora. Ele estava tão nervoso que nem tocou na comida.

R. contou que, em março, descobriu que a mãe dele tinha sumido em um centro de educação política. O pai dele estava cuidando sozinho da fazenda, e ninguém de sua família conseguia entrar em contato com ela. R. ficou desesperado.

Dois meses depois, ele finalmente teve notícias da mãe. Em uma ligação entrecortada, ela contou quão grata era ao Partido Comunista da China e como ela adorava o governo.

"Eu sei que ela nunca diria isso. Ela nunca pensaria isso", ele afirma. "Parecia que um policial estava ao lado dela."

Desde aquele telefonema, os pais de R. desligaram os telefones. Ele não tem notícias deles desde maio.

Barricadas deixam Abduweli Ayup nervoso desde que ele foi liberado da prisão. A temporada foi devastadora para o estudioso homem de 43 anos, que foi detido em 2013 após organizar creches que ensinavam o idioma uigur. (Ele foi formalmente acusado.)

Após 15 meses na prisão, Abduweli voltou para sua mulher e suas duas filhas, na esperança de que tudo voltasse ao normal. Mas um dia, em julho de 2015, ele ficou em maus lençóis no caminho para o trabalho, em uma barricada na qual já havia passado milhares de vezes.

Os policiais que normalmente ficavam ali foram substituídos por agentes especiais. Quando checaram os documentos dele, viram que tinha passagem pela prisão.

Foi aí que eles pediram o notebook de Abduweli.

"Eu disse: 'Eles me conhecem aqui. Eu venho aqui todo dia'", ele contou. Foi aí que um dos agentes espalmou a mão na cara dele. Quando os policiais abriram o computador, acharam textos que ele havia escrito, anos antes, durante uma bolsa acadêmica no Kansas (Estados Unidos). Nos artigos, ele expressava opiniões sobre assuntos tabu, desde cultura uigur até ditaduras como sistema de governo.

Abduweli acabou preso imediatamente, passou por uma revista completa e foi interrogado durante horas sobre os textos, por um grupo de seis agentes.

Um deles disse que se ele fosse pego com textos assim de novo iria para a prisão.

"Neste momento eu percebi que a lei não existe aqui", disse Abduweli, ao relembrar a história no apartamento de um amigo em Ankara, para onde fugiu no ano passado. "Eu percebi que se eles pegassem meu computador de novo, seria perigoso. Foi quando decidi ir embora."

O governo disse repetidas vezes que seu objetivo em Xinjiang é unidade étnica e estabilidade social. Além das restrições aos uigures, o governo deu subsídios para fazendeiros da minoria e criou programas de ação afirmativa para uigures irem às melhores universidades e serem contratados pelo governo. Um percentual significativo da própria polícia em Kashgar, por exemplo, é de uigures.

A China também argumenta que aumentou o investimento em infraestrutura em Xinjiang, região historicamente menos desenvolvida que o resto do país, incluindo estradas, construção civil e redes de telecomunicações.

Mas críticos dizem que esses esforços são eclipsados pelas medidas repressivas do governo, que levou a um aumento da propaganda de grupos extremistas, incluindo uigures que vivem na Síria e no Afeganistão. De acordo com uma tradução feita pelo Instituto de Pesquisa de Mídia do Oriente Médio, a revista oficial de um desses grupos conclamou os uigures a se prepararem para batalhas futuras em Xinjiang.

"Eu vejo isso nas gerações mais jovens", afirmou D., a mulher cujos parentes perderam o casamento. "Eles são mais raivosos."

Hoje em dia, Abduweli está terminando um livro infantil para explicar o idioma uigur e elementos de sua cultura. As ilustrações são imagens que ele encontrou no Google. O que o livro precisa mesmo é de um ilustrador que entenda a cultura uigur, ele disse, mas por causa de seu status de ex-prisioneiro político, os melhores artistas têm medo de trabalhar com ele.

Em dezembro, o governo chinês cancelou o passaporte de Abduweli, fazendo com que ele se torna um homem sem Estado. Ele se inscreveu no programa de refugiados em Ankara.

Às vezes, ele lembra de seus tempos de universitário, na Pequim dos anos 1990, em que experimentou liberdade pela primeira vez. Abduweli recorda muito bem de um livro em mandarim que comprou de um vendedor na rua naquela época. Ele gostou tanto que andou de bicicleta até o outro lado da cidade para comprar uma versão do livro em inglês. Durante a leitura, ele teve a certeza de que a censura chinesa havia retirado partes do livro.

O livro era 1984, de George Orwell, segundo conta. Fazia ele lembrar de casa.

Este post foi traduzido do inglês.

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