Estas fotos mostram como é a vida civil no conflito interminável entre a Turquia e a Síria

    Imagens das linhas de frente da incursão da Turquia na Síria.

    A incursão da Turquia na Síria para criar a chamada zona segura a 30 quilômetros da fronteira atravessa tantas camadas da história que é difícil resumir sua importância. As cidades fronteiriças de ambos os lados vivem conflitos há anos e têm as cicatrizes para provar isso. Ao longo do século passado, com as constantes mudanças de liderança e o frequente redesenho da fronteira, essa história se repetiu.

    O BuzzFeed News conversou com Emin Özmen, um fotógrafo baseado na Turquia que viajou para a fronteira entre a Turquia e a Síria para relatar os efeitos da invasão. Antes de começar, algumas informações básicas:

    • Os curdos são um grupo étnico majoritariamente muçulmano que vive em território controlado atualmente pela Turquia, Irã, Iraque e Síria.

    • Ao longo dos anos, houve uma constante pressão dos líderes curdos por mais autonomia, mas o desejo real é por independência.

    • Os civis curdos sofreram várias repressões e massacres ao longo dos últimos cem anos, como no Iraque de Saddam Hussein e na Guerra Civil Síria.

    • O Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) usou a violência para promover os interesses curdos. É considerado um grupo terrorista por Turquia, Estados Unidos e União Europeia.

    • Uma ramificação do PKK, as Unidades de Proteção do Povo (YPG), foi uma das principais parceiras dos EUA na derrota do Estado Islâmico na Síria.

    Emin Özmen: Meu objetivo é mostrar o que passam os civis, independentemente de sua nacionalidade, religião etc. Os civis são vítimas em ambos os lados da fronteira. O jornalismo precisa mostrar todos os lados de um acontecimento; portanto, é claro que meu trabalho por si só não é suficiente para explicar as consequências dessa operação, visto que eu estava do lado turco (geograficamente), então documentei o que aconteceu lá. Eu gostaria de ter documentado o que aconteceu do outro lado da fronteira também (Síria), mas isso não foi possível.

    Você pode nos dar uma ideia do motivo para a Turquia ver os curdos como uma ameaça e dizer se todos na Turquia concordam com isso?

    EÖ: Essa é uma pergunta tão complicada que eu só posso responder por mim mesmo. Não acho que a Turquia veja os curdos como uma ameaça. Eu diria que a Turquia vê o PKK como uma ameaça. É um conflito bastante complexo que teve início décadas atrás.

    Após o fim da Primeira Guerra Mundial e o colapso do Império Otomano, a sociedade curda se viu dividida em quatro países diferentes, separados por muros. Os curdos são a mais importante minoria étnica da Turquia e compõem de 15% a 20% da população.

    Na Turquia, o PKK, considerado uma organização terrorista pela OTAN e pela UE, se insurge contra o governo central desde 1984. O conflito de 35 anos já custou mais de 40 mil vidas.

    Sou turco de nascimento e cresci numa cultura em que a questão curda está sempre presente e é bastante sensível. Desde o início dos anos 80, vivemos num país onde sempre há conflitos — principalmente na parte leste e sudeste, onde a situação está sempre em nível de emergência.

    O conflito na Síria é um assunto complicado, assim como as políticas internas na Turquia. O governo turco nunca se sentiu à vontade com o fato de o YPG assumir o controle no norte da Síria; eles viram isso como uma ameaça que poderia se espalhar na Turquia. Nesse contexto, a Turquia iniciou suas operações militares no norte da Síria para dispersar o YPG: a Operação Escudo do Eufrates em 2016 e 2017, a Operação Ramo de Oliveira em 2018 e agora a Operação Nascente de Paz em outubro de 2019.

    Quanto tempo você ficou na fronteira?

    EÖ: Ficou claro que a Turquia tentaria uma incursão na Síria, então cheguei a Akçakale em 9 de outubro, algumas horas antes de a Turquia lançar a Operação Nascente de Paz contra combatentes curdos do YPG, que controlam o nordeste da Síria. Todos os meios de comunicação e redes sociais foram bloqueados por volta das 16h. Sem internet, sem telefones. Ficamos sabendo que a Turquia entrou na Síria pelo rádio. Muito rapidamente, começamos a ouvir sons de morteiros. A artilharia turca foi enviada, bombardeando cidades e vilarejos na fronteira síria. Comboios militares carregando tanques continuavam passando pela cidade fronteiriça a noite toda e outros dias. Eu fiquei na fronteira de 9 a 25 de outubro.

    Como estava o clima na cidade?

    EÖ: No início da operação, os alto-falantes da cidade tocaram marchas militares otomanas e a leitura da sura (capítulo) do triunfo, tirada do Alcorão. Akçakale (no lado turco) e Tal Abyad (no lado sírio) são duas cidades-irmãs, separadas por algumas centenas de metros de muro de concreto. As populações das duas cidades são predominantemente árabes. Akçakale também serviu de abrigo para a maioria dos refugiados que fugiram do conflito no norte da Síria desde 2012.

    No segundo dia, de manhã cedo, as pessoas se reuniram com bandeiras da Turquia perto do portão da fronteira, mostrando seu apoio à operação em andamento. Por volta das 14h em Akçakale, os foguetes começaram a cair em toda parte. Morteiros caíam em bairros, mercados, ruas. A população entrou em pânico; foi uma catástrofe total por horas. Ambulâncias chegaram e levaram os feridos. Três pessoas morreram (incluindo um bebê sírio de 9 meses). No final do dia, mais de 50 estavam feridos, e metade da cidade fugiu. Isso continuou até o final do quinto dia.

    São 3,6 milhões de sírios que fugiram da guerra e se abrigaram na Turquia desde o início do conflito em 2011. Eles vivem principalmente nessas vilas e cidades na fronteira. Acho que a Turquia não espera a chegada de novos refugiados porque a fronteira está fechada agora.

    Esse conflito é diferente dos anteriores ou é só mais um capítulo de uma guerra longa e sangrenta?

    EÖ: Vários morteiros caíram em Akçakale durante a batalha entre as forças do regime e a oposição em 2012 e 2013, matando 5 e ferindo 10 em outubro de 2012.

    Infelizmente, esse me parece ser só mais um capítulo desse terrível conflito. Pior ainda, eu diria que talvez não seja diferente do que senti ao documentar guerras em outros países. Testemunhar tanto sofrimento e morte dá o mesmo sentimento (independentemente do conflito): desamparo e absoluta tristeza.

    Vi uma garota de 13 anos chorando depois que os foguetes atingiram Akçakale. Tirei uma foto dela, mas não ousei falar com ela naquele momento. O sofrimento dela me abalou muito. Voltei a vê-la dois dias depois de tirar a foto. Daí, ela me explicou que muitos de seus familiares estavam no hospital e que ela não conseguia mais dormir. Ela está traumatizada. Não consigo esquecer o sofrimento dela.

    Você acha que o cessar-fogo fará alguma diferença?

    EÖ: Acho que ele salvou a vida de muitos civis, mas não sei bem como essa situação evoluirá no longo prazo.


    Este post foi traduzido do inglês.

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