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A Bolívia acabou virando o mais recente teste de Rorschach do debate político na internet

A saída de Evo Morales foi um golpe militar? Ou um triunfo da democracia sobre o autoritarismo? Você provavelmente se decidiu antes mesmo de Morales deixar o país.

CIDADE DO MÉXICO — Quando Evo Morales chegou ao poder na Bolívia, em 2006, ele viajou ao redor do mundo, encontrando-se com líderes de todos os lugares, da África do Sul à China, vestindo o mesmo suéter listrado. Morales tornou-se um ícone de estilo improvável e, mais importante, uma inspiração para muitos que acompanharam sua ascensão da pobreza como filho de um pastor de lhamas a um dos líderes mais influentes da América Latina.

Treze anos depois, Morales se viu saindo da Bolívia na calada da noite, implorando a outros líderes que permitissem que o avião emprestado em que ele estava fugindo usasse seu espaço aéreo. A queda do prestígio de Morales – visto como um gigante da esquerda, que somente no mês passado pareceu preparado para um controverso quarto mandato como presidente – foi rápida e os destroços se espalharam, com violentos protestos em todo o país.

E, como tantas vezes ocorre com os grandes nomes da América Latina — onde a palavra "golpe" em uma força extra, evocando memórias das derrubadas de governos regulares que começaram nos anos 30 e indo até os anos 70, principalmente de líderes de esquerda —, o modo como você vê o que tem acontecido com ele depende muitas vezes da sua própria ideologia política.

Para uns, ele é visto como vítima de um golpe; para outros, sua queda é tomada como evidência da democracia superando o autoritarismo no continente. Do senador americano Bernie Sanders, referindo-se à deposição de Morales como um "golpe", à Casa Branca, elogiando sua renúncia como um avanço pela democracia na região, as opiniões sobre a fuga de Morales da Bolívia geralmente têm pouco a ver com a realidade dos fatos, na qual nem Morales nem sua oposição são os heróis ou vilões unidimensionais que costumam ser retratados no exterior.

A chegada de Morales ao México na terça-feira veio depois que ele anunciou sua renúncia após uma eleição controversa no mês passado cheia de "irregularidades", incluindo um hiato inexplicável na contagem de votos –que, quando retomada, acabou mostrando Morales emergir como o vencedor claro.

Os problemas de Morales vêm desde 2016, quando ele perdeu um referendo que tornaria possível a candidatura a um quarto mandato. Tendo tirado mais de meio milhão de bolivianos da pobreza e alterado a dinâmica de poder do país, fortalecendo sua maioria indígena desde que assumiu o cargo em 2006, Morales queria manter o poder. Assim, em vez de aceitar a derrota no referendo, ele recorreu ao tribunal constitucional — repleto de seus apoiadores —, que votou que os limites de mandatos violavam seus direitos humanos. Ele concorreu novamente nas eleições do mês passado.

Depois que as cabines de votação fecharam na noite das eleições, parecia que a corrida estava acirrada e que seria necessário um segundo turno. Mas, então, a contagem de votos parou inexplicavelmente por quase 24 horas. Quando recomeçou, Morales tinha uma larga vantagem. Protestos ocorreram e se intensificaram rapidamente, especialmente depois que a Organização dos Estados Americanos divulgou uma auditoria na qual afirmava que não poderia validar os resultados das eleições.

A pressão cresceu sobre Morales. Na semana retrasada, a polícia da capital, La Paz, juntou-se a manifestantes que eram contra o governo, e várias instituições, incluindo o chefe das forças armadas, “sugeriram” que ele considerasse renunciar.

Pouco depois, Morales renunciou. Com manifestações e saques se espalhando, ele aceitou a oferta de asilo do México e se escondeu enquanto aguardava a chegada de um avião mexicano oficial para removê-lo.

Depois de uma viagem tensa, que incluiu apelos no meio da noite aos países vizinhos para permitirem o uso do seu espaço aéreo, Morales chegou à Cidade do México, onde muitos foram rápidos em apontar que a vitória presidencial do líder decadente era altamente contestada.

"O México dará asilo a um fraudador eleitoral que teria que ser preso sem fiança se a lei mexicana fosse aplicada a ele", escreveu Pascal Beltrán del Río, diretor editorial do jornal mexicano "Excelsior", em uma coluna na terça-feira.

Morales, o último membro da “maré rosa” dos líderes esquerdistas da América Latina durante os anos 90 e início dos anos 2000, teve uma recepção calorosa do ministro das Relações Exteriores do México, Marcelo Ebrard, ao chegar. Ebrard — que é o membro do gabinete mais próximo do presidente de esquerda do México, Andrés Manuel López Obrador — abraçou Morales na pista do aeroporto.

O México tem uma longa tradição de oferecer asilo a exilados de esquerda, incluindo o revolucionário soviético Leon Trótski, mas alguns questionaram por que Morales rapidamente recebeu proteção enquanto milhares de outros requerentes de asilo foram deportados nos últimos meses.

Mas os julgamentos repentinos sobre o motivo exato de Morales ter acabado no México — ele saiu do cargo ou foi empurrado para fora dele? — sustentam pouca relação com os eventos na Bolívia, onde os fatos estão longe de estarem claros. Pelo menos 23 pessoas foram mortas desde o início dos protestos, e vários locais têm sido saqueados desde o dia das eleições em 20 de outubro, mas é difícil decifrar exatamente quem é responsável pelo quê.

Em um dos exemplos mais vívidos da violência política, manifestantes agrediram Patricia Arce, a prefeita pró-Morales de Vinto, uma pequena cidade na Bolívia. Cortaram o cabelo dela, cobriram-na de tinta vermelha e forçaram-na a andar descalça pela vila.

Vários veículos de comunicação têm sido forçados a fechar temporariamente após ameaças ou ataques armados. A casa de Morales foi atacada, assim como a de vários governadores, segundo relatos locais.

Em Cochabamba, uma cidade no centro da Bolívia, os plantadores de coca, alguns dos maiores apoiadores de Morales, estão recebendo ameaças violentas pelo WhatsApp. As pessoas que fazem as ameaças não se importam em mostrar seus nomes verdadeiros, de acordo com Kathryn Ledebur, especialista em política na Bolívia e diretora da Rede de Informação Andina, uma organização sem fins lucrativos que promove os direitos humanos.

"Tem havido uma mudança para a extrema-direita" entre a oposição, disse Ledebur, acrescentando que os protestos contra Morales assumiram "um tom racista e classista".

Manifestantes da oposição têm queimado a bandeira de Wiphala, que representa a nação indígena Aymara à qual Morales pertence — um símbolo importante em uma região onde descendentes de europeus de pele clara ainda detêm poder significativo.

É provável que o país enfrente mais abalos após esse terremoto político em um futuro próximo. Ao chegar ao México, Morales anunciou que permaneceria politicamente ativo, abrindo a possibilidade de que sua nova casa fosse simplesmente um "ponto de parada" para o retorno à Bolívia.

"Enquanto estou vivo, a luta continua", disse ele.

Este post foi traduzido do inglês.

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