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O que esperar quando você está esperando um bebê no meio de uma pandemia

Agora, tudo que está fora da nossa casa parece incerto. Toda vez que um de nós sai de casa e volta, traz o exterior para dentro — um sentimento ruim.

Tenho pensado em porcentagens há meses, então, tenho uma vantagem. Cardiopatia congênita, 1%. Espinha bífida, 0,07%. Síndrome de Down, para um bebê de uma mãe com pouco mais de 30 anos, entre 0,1 e 0,2%.

Descobrimos que minha esposa estava grávida em setembro, logo depois que voltamos da nossa lua de mel, e logo depois que começamos a tentar: bom demais para ser verdade. Nervosa demais para olhar para o aparelho, minha esposa pediu para eu ver o resultado. Não havia nenhum símbolo para decodificar, apenas uma palavra: GRÁVIDA. Pulando no banheiro, nos sentimos tontos e aflitos, duas pessoas que, por natureza, esperam o pior comemorando algo aparentemente bom.

Síndrome de Marfan, 0,02%. Microcefalia, 0,12%. Doença de Tay-Sachs...

Tay-Sachs é uma doença genética fatal que afeta de forma desproporcional judeus ashkenazi (judeus provenientes do norte e leste da Europa) como eu. Em novembro, descobrimos que minha esposa, de etnia armênia, é portadora da doença, com uma chance de 0,3 %. É claro: apenas sorte nossa. Eu sabia que a minha probabilidade de ser portador era de 1 em 25. Fui pegar meu exame de sangue. Atordoados, contamos piadas sem graça sobre minha esposa ser uma judia honorária. Então, fizemos as contas mórbidas.

Se nós dois éramos portadores, havia uma chance em quatro de o bebê ter duas cópias do gene ruim, uma sentença de morte. 0,04 x 0,25 = 0,01. Durante os 10 dias seguintes, nos revezamos em pânico sobre esse 1%. "É 1%", um de nós dizia, calmamente por um segundo. "É. Um. Por cento", o outro respondia, afundado no sofá, olhando fixamente para a frente.

Por fim, consultamos nosso "conselheiro genético" e as notícias foram boas. Imaginei meu professor de estatística da faculdade e senti uma pequena gratidão por ele, como se ele encarnasse as probabilidades não sentimentais do universo. Contamos às nossas famílias e saímos para um jantar caro, no qual mais uma vez quebrei minha promessa de ficar sóbrio em solidariedade à gravidez. Minha esposa estava aliviada demais para se importar.

Comparada à agonia de muitos futuros pais, nossa primeira viagem à Zona das Probabilidades foi tranquila. Mas essa forma de pensar, essa sensação de que nossa saúde e felicidade dependiam de um rolar de dados, foram paralisadas. Ao longo do inverno, quando o coronavírus estabeleceu seu próprio curso não sentimental, me vi sintonizado em uma nova frequência de medo. No final de janeiro, tive uma doença respiratória grave e passei horas febril pesquisando estatísticas de morte por gripe no Google. Seria isso mais tolo do que se preocupar com o Zika vírus ou com a espinha bífida? Atravessar a rua fora da faixa, usar fones de ouvido no meu trajeto, descer correndo as escadarias do metrô — tudo isso, de repente, parece menos a cara de Nova York e mais uma aposta cautelosa e difícil. Eu não estava com medo pela minha vida, exatamente. Eu estava com medo pela nossa alegria.


Agora é maio, o vírus ocupou minha cidade e estamos todos passando cada vez mais tempo na Zona das Probabilidades. Agora estamos todos fazendo cálculos mórbidos e tomando milhares de decisões, pequenas e grandes, baseadas neles. É verdade que os nova-iorquinos adoram falar "graças a Deus não foi comigo" sobre os raros pesadelos que ocorrem no metrô e os desastres nas ruas. Mas minha esposa e as pessoas que conhecemos vivem numa versão previsível da cidade, uma versão segura, na qual é impossível tomar uma xícara de café abaixo do padrão e onde a chance de ocorrer uma catástrofe nunca foi tão pequena. Nunca foi tão pequena. O medo material e real chegou para nós, que geralmente só tuitamos sobre essas coisas, mesmo sabendo que temos menos motivo para sentir medo do que muitas outras pessoas. Para esses nova-iorquinos, que não podem trabalhar em casa e não têm acesso a uma boa assistência médica, a Zona das Probabilidades é muito mais cruel.

Taxa de mortalidade da COVID-19 em NY, 6%. Taxa de mortalidade da COVID-19 entre norte-americanos com menos de 18 anos, 0,11%. Taxa de transmissão intrauterina de mães positivas para COVID-19 para fetos, desconhecida.

Agora, tudo que está fora da nossa casa parece incerto. Toda vez que um de nós sai de casa e volta, traz o exterior para dentro — um sentimento ruim que pode se tornar um reflexo duro, com consequências duradouras para a cidade. Toda vez que voltamos, rolamos os dados de novo. Só que nós não conhecemos as regras do jogo. Os estudos têm amostras pequenas. Os resultados têm sido contraditórios. Todos alimentam uma teoria sobre o motivo de algumas pessoas ficarem doentes e outras não, alguma solução peculiar para a polarização da atualidade, uma dieta da mídia e a biologia do ensino médio, meio esquecida. A Zona das Probabilidades é diferente para cada um, está sempre mudando. Disseram para não usar máscaras, e eu me ressinto daqueles que usam máscaras. Disseram para usar máscaras, e eu me ressinto daqueles que não estão usando. Disseram que algumas máscaras são inúteis, que o uso incorreto das máscaras pode reter o vírus nas membranas mucosas, que você pode colocar a máscara no forno para esterilizá-la. Fora de casa, quando não há ninguém por perto, minha esposa às vezes tira a máscara para poder respirar fundo. Ela está grávida de 8 meses e fica sem fôlego. Isso me irrita — ela não sabe que está aumentando o número? Daí, eu fico irritado por estar irritado. Não sou eu que estou grávido. Não tenho ideia do que ela sente. Estou tentando protegê-la ou controlar seu corpo? Parei de policiar seus goles de vinho. Como diabos eu conseguiria passar por isso sem vinho?

No entanto, minha esposa é a calma em pessoa, do tipo "O Que Será, Será", que eu associo a budistas e drogados — não exatamente à mulher com quem me casei. O terapeuta dela diz que isso é por causa dos "hormônios da gravidez". O cabelo dela está mais grosso, e a pele mais brilhante. Ela tem azia. Ela põe minha mão na barriga dela, empolgada, quando o bebê está chutando, mas às vezes não dá tempo e ele para. A experiência dela é física. A minha, abstrata. Ela parece ter saído da Zona de Probabilidade. Eu passo todo o meu tempo lá, reformulando meus algoritmos com base em estudos sobre mulheres grávidas em Wuhan, me sentindo grato pela confiabilidade das entregas da Amazon e do meu aplicativo de internet banking.

Nós nos refugiamos na telemedicina, na teleterapia e na telegravidez. Participamos de uma aula virtual sobre parto. Queremos saber para que lado está virado o rosto do bebê, então conversamos por vídeo com uma amiga, uma parteira da Califórnia. Ela me diz para pressionar a barriga da minha esposa, tentando encontrar algo redondo e protuberante — provavelmente é a cabeça ou o bumbum, e podemos triangular a partir daí.

Um dia, descobrimos que nosso hospital baniu os acompanhantes da sala de parto. Temos risco de COVID-19.

"Eu estava indo tão bem até saber disso", minha esposa disse. "Mas não sei como vou conseguir passar pelo trabalho de parto sozinha." Conversamos sobre ir embora para onde crescemos, mas ficamos preocupados em infectar nossos pais. Armamos uns esquemas malucos para eu conseguir entrar no hospital. Um deles envolvia subornar a equipe médica com quitutes de padaria. Ou talvez eu pudesse contrair a doença e me recuperar da COVID-19 antes do parto?

Eu digo a ela que estarei lá o tempo todo pelo FaceTime. Não se preocupe com isso.

Uma pequena parte de mim está contente com a proibição. Os médicos são mestres da Zona das Probabilidades. Eles trazem muitos bebês ao mundo — nós só temos um. Se os médicos desse hospital consultaram a Zona das Probabilidades e concluíram que eu não estou seguro, vou engolir meu sofrimento e me adequar à situação. Talvez todos os outros hospitais estejam errados. Li sobre mulheres gravemente doentes em trabalho de parto, entubadas, inconscientes, cortadas, costuradas. Se não for seguro para essas mulheres vivenciar o parto, elas terão que se adequar. Elas terão fotografias. Se o nosso filho tiver que passar os primeiros meses da vida dele numa UTI neonatal, teremos que nos adequar a isso. Se ele não conhecer os avós até os dois anos de idade, se ele nunca conhecer os avós, teremos que nos adequar a isso. Usaremos o Zoom — ou não.

Quando o governador anuncia um decreto exigindo que os hospitais permitam a entrada de acompanhantes, eu choro, mas não totalmente de alívio. Eu tinha acabado de ajustar minha hipótese de medo, e agora preciso ajustar de novo.

Por agora, é o que temos. Estamos confinados e vamos continuar assim até que meu filho precise sair. Recentemente, quando fico deitado na cama sem conseguir dormir pensando nas probabilidades, eu o imagino. Não o vejo nos meus braços ou nos braços da minha esposa. Mas eu o vejo, bem e forte, com uma chance — qualquer que seja o número — e paro de imaginar o que poderia dar errado.

Outro dia, me deparei com uma vizinha, literalmente de quatro em frente à porta da casa dela, desinfetando recipientes plásticos de comida tailandesa com lenços desinfetantes. Ela é uma pessoa bem simpática, com dois filhos menores de dois anos.

"Eu sei que pareço louca", ela disse, rindo. Fiquei com vontade de dar um grande abraço nela. Em vez disso, torci para que ela pudesse ver, pelos meus olhos, que eu estava sorrindo debaixo da minha máscara cirúrgica. Então, corri para dentro. ●

Este post foi traduzido do inglês.

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