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Argentina tem votação crucial para o direito do aborto sem restrições até 14ª semana de gestação

Caso de uma menina de 10 anos estuprada pelo padrasto impulsionou campanha do aborto legal no país vizinho. Feministas com lenços verdes lotam as ruas e opositores do aborto estão enviando até fetos de plástico para pressionar deputados.

O resultado positivo do teste de gravidez caiu como uma bomba na vida de M., quando ela tinha 26 anos. Naquele momento, ela tinha acabado de ser escolhida para uma bolsa de doutorado e o relacionamento de dois anos com o namorado, com quem vivia em um apartamento de Buenos Aires, estava afundando. Aparentemente, os anticoncepcionais falharam dois meses antes, durante a interação com um antibiótico que havia sido receitado pelo médico. O nome da entrevistada é mantido sob sigilo a pedido dela.

Como o aborto é proibido pela legislação argentina, a estudante buscou o conselho de amigos. Depois de duas semanas de angústia, ela acabou conseguindo uma caixa de misoprostol, um medicamento usado no tratamento de úlceras que também induz o aborto. Ela fez o procedimento sozinha em casa e relata ter sofrido dores horríveis durante 12 horas enquanto sangrava em quantidade muito superior ao de uma menstruação normal. Nessas horas, ela relembra, temia pelo pior.

O alívio, segundo contou em entrevista ao BuzzFeed News por telefone, só veio 48 horas depois, quando foi ao hospital e lhe confirmaram que não havia sequelas. A história dela de angústia, dor e incerteza é um roteiro percorrido por entre 400 mil e 500 mil mulheres argentinas que recorrem todos os anos a abortos clandestinos no país (as estimativas são incertas e os números variam conforme a metodologia usada).

Segundo o Ministério da Saúde, ao menos 10 mil dão entrada em hospitais com complicações em decorrência de aborto todos os anos. Em 2017, segundo dados oficiais, houve ao menos 60 mortes atribuídas a abortos ilegais no país.

Nesta quarta (13), a Câmara dos Deputados do país vota um projeto de lei que autoriza a realização de abortos, sem qualquer restrição, até a 14ª semana de gestação. Atualmente, mulheres que fazem aborto podem ser punidas com prisão. As únicas exceções são casos de estupro ou de risco de vida para a mãe. A proposta que vai ser votada esta semana também estabelece aborto, sem a limitação de tempo, em caso de má formação do feto.

O resultado da votação é imprevisível. Pela contagem do La Nación, 119 deputados se declararam contra o projeto e 111 são favoráveis. A decisão está nas mãos de 24 deputados que se declararam indecisos ou que se recusam a abrir como pretendem votar.

O caminho da liberação não será fácil, caso o projeto seja aprovado pelos deputados nesta quarta. A etapa seguinte seria passar pelo Senado, onde analistas acreditam que há uma maioria consolidada contra o aborto. A esperança dos favoráveis ao projeto é que uma vitória nesta quarta incendeie as ruas e derrube as resistências.

O ativismo feminista – com grupos como o Ni Una Menos (Nenhuma a menos, formada contra a violência e o machismo) – ganhou as ruas e se tornou um movimento nacional desde que o presidente Mauricio Macri, em fevereiro, pediu que o Congresso votasse sobre o tema.

Macri, que já se declarou contra o aborto, enfrenta uma crise de popularidade por causa da situação econômica do país – além de um ajuste fiscal, o país bateu à porta do FMI em busca de um empréstimo de US$ 50 bilhões. Macri disse que vai sancionar a liberação do aborto, caso seja aprovada pelo Congresso.

No Dia das Mulheres deste ano, dezenas de milhares de mulheres em todo o país – muitas delas, estudantes do ensino médio – tomaram as ruas da capital usando lenços verdes para pedir a liberação do aborto. Os atos continuam desde então e o lenço verde se tornou um símbolo da luta dessas mulheres.

"O que estamos vendo nas manifestações é um crescimento maciço do apoio ao aborto em todas as províncias, o que pode fazer que tenhamos os votos para aprovar a nova lei não por convicção dos deputados, mas para não contrariar suas próprias bases eleitorais", contou ao BuzzFeed News a antropóloga Miranda González Martín, da campanha pró-aborto.

Os grupos pró-vida também estão fortemente mobilizados. Embora o papa Francisco não tenha emitido nenhuma declaração específica sobre a votação desta semana, a Conferência Episcopal Argentina divulgou um documento intitulado "Toda vida vale" em que se opõe abertamente ao projeto e afirma que a sociedade tem obrigação de estender os direitos humanos, inclusive "aos mais frágeis e aos mais vulneráveis".

Grupos católicos estão batendo à porta dos deputados para pressioná-los. Na escalada do lobby, deputados favoráveis ao projeto ou indecisos passaram a ser "presenteados" com caixas contendo um pequeno feto de silicone.

Hoy los diputados están recibiendo en sus despachos estos “bebitos” de silicona. Los envía una diputada del oficialismo. https://t.co/hlBWN2wXLs

Menina de 10 anos estuprada pelo padrasto teve aborto negado

Na prática, a interrupção voluntária da gestação está ao alcance das mulheres argentinas que podem pagar. Uma caixa de misoprostol é vendida por 4.000 pesos (R$ 574). Mulheres que buscam um aborto cirúrgico, com um médico, em condições seguras, conseguem encontrar médicos que aceitam fazer o procedimento por até US$ 2.000 – algo inacessível para a imensa maioria da população, segundo ativistas pró-aborto.

Quem não pode pagar precisa recorrer ao sistema público de saúde quando as coisas dão errado e ficam sob ameaça de serem denunciadas à polícia. Um caso que comoveu o país e incendiou a campanha pró-aborto foi o de uma menina de 10 anos da província de Salta (norte do país), que engravidou após ser estuprada pelo padrasto.

Apesar dos apelos da mãe, e de a vítima de estupro se enquadrar na previsão lei atual, o governador de Salta, Juan Manuel Urtubey, havia recentemente endurecido a proibição nacional, limitando a apenas 12 semanas os casos de aborto legal, mesmo em caso de estupro. A vítima teve o aborto negado. Com a comoção nacional em torno do caso, Urtubey recuou.

Aviso: Houve uma correção nesta reportagem. Na primeira versão, a entrevistada era identificada por um nome fictício. Na versão atual, ela é identificada pela primeira letra de seu nome verdadeiro. A identidade dela foi preservada a pedido dela por temer consequências legais e na atual família.

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