É possível um balé que não prejudique as mulheres?

    O #MeToo chegou ao mundo da dança neste ano, nos obrigando a questionar como o balé pode se tornar menos prejudicial às mulheres e seus corpos, e quem precisa ser incluído para fazer essas mudanças.

    A noite em que machuquei minhas costas num ensaio de balé não foi a primeira vez em que fui traída pelo meu próprio corpo, mas foi a primeira vez que me dei conta de quanto eu vinha sendo conivente com este sacrifício.

    Era um ensaio tarde da noite para um espetáculo da minha universidade. Foi um passo em falso, uma falta de sintonia com meu parceiro. Os passos me levaram a ele, mas a música pareceu falhar, então pulei tarde, ou ele me pegou tarde, e nós nos atrapalhamos nos segundos antes de a gravidade dominar.

    Naquele momento que partiu minha vida em dois, senti um estalo onde minhas costas viviam doloridas. Antes que eu entendesse o que tinha acontecido, me vi estirada no chão, olhando para o teto, querendo apenas a minha mãe.

    Os rostos dos outros bailarinos apareceram, solidários, mas eu estava com medo pela intensidade da dor e pelo que aquilo significaria.

    Naquela noite no hospital, um médico me mostrou com a ponta de sua caneta a imagem da minha coluna e onde duas vértebras tinham se comprimido, começando a vazar um fluido e fraturando meus ossos. Toda a minha bacia tinha se deslocado também. Apesar disso, naquela noite, eu só conseguia pensar se iria ser capaz de dançar novamente.

    "Você precisa se perguntar se conseguirá andar sem mancar", me respondeu o médico. Quando saí do hospital, tive que reaprender tarefas diárias – como dirigir ou vestir minhas calças – com uma dor crônica e aguda nas costas.

    Alguns anos mais tarde, depois de ter me recuperado o suficiente, entrei para uma pequena companhia de dança. Porém, a dor nas minhas costas me obrigou a fazer um balanço diário do meu próprio corpo: quais eram suas necessidades e limitações? Eu deveria continuar prejudicando este corpo ou deveria passar a usá-lo para navegar em um mundo sem balé?

    Por fim, decidi que a cultura do balé não era inclusiva o suficiente para que eu continuasse. O balé não funcionava com minhas limitações e exigia que eu sacrificasse meu tempo e meu corpo em nome da arte.

    Para mim, o balé foi um amo severo e implacável que exigia mais do que eu poderia dar. Ainda assim, todos os dias sinto falta do balé e me perturbo com o que, exatamente, ainda sinto falta.

    2018 se tornou o ano do ajuste de contas do balé: em janeiro, o New York City Ballet
    (NYCB) perdeu seu diretor de longa data, Peter Martins, que renunciou após denúncias de abuso e má conduta sexual (que ele nega). Dois meses depois, o Les Grands Ballets Canadiens anunciou "Femmes", uma espetáculo sobre mulheres, sem uma única coreógrafa mulher no programa. O Oregon Ballet montou um programa similar, embora menos divulgado. Em abril, bailarinas do Paris Opera Ballet reclamaram de bullying, assédio sexual e insatisfação com seu diretor. Recentemente, o NYCB voltou aos noticiários após a ex-bailarina Alexandra Waterbury ter processado a companhia por três bailarinos terem compartilhado fotografias sexualmente explícitas dela sem seu consentimento. Um dos três homens mencionados no processo se demitiu em agosto, e os outros dois foram demitidos em setembro. De acordo com o processo de Waterbury, a companhia tornou possível que seus bailarinos "degradassem, humilhassem, desumanizassem e abusassem sexualmente das mulheres".

    "Toda vez que vejo uma garotinha em um tutu e coque no caminho para a aula de balé, só consigo pensar que ela deveria correr para a direção oposta", disse Waterbury ao The New York Times, "porque ninguém irá protegê-la, como ninguém me protegeu".

    O que precisa mudar para fazer do balé menos prejudicial às mulheres, mas ainda preservando seus valores e sua beleza?

    Historicamente, as contribuições das mulheres para o balé têm sido as mais efêmeras: elas personificam o arquétipo da bailarina, mas suas carreiras dependem do fugaz momento da dança, concluído logo depois de uma apresentação.

    As partes do balé que duram além do momento do espetáculo — coreografia, dar aulas e direção artística — há muito tempo são dominadas pelos homens.

    O momento que vivemos agora nos oferece a chance de discutirmos abertamente sobre o sexismo do balé e qual pode ser o futuro desta arte.

    O que precisa mudar para fazer do balé menos prejudicial às mulheres, mas ainda preservando seus valores e sua beleza? E quem precisamos incluir para essa mudança?

    Um passo óbvio é incluir mais mulheres nos papéis criativos e de liderança. O anúncio de emprego do NYCB para seu/sua novo(a) diretor(a) destaca que a companhia precisa de "um líder humano para quem as pessoas queiram fazer o seu melhor". O anúncio também apela para um compromisso com a coreografia consagrada por George Balanchine e Jerome Robbins e uma atenção especial para a School of American Ballet, onde 95% dos bailarinos de NYCB treinam. Sua "lista de pedidos" é criada para atrair alguém que conheça o repertório, mas também para quem a saúde e segurança dos bailarinos sejam prioritárias.

    A famosa ex-bailarina principal do NYCB, Wendy Whelan, por exemplo, seria uma substituição oportuna para Martins. No documentário de 2017 Restless Creature, ela fala sobre uma lesão que ameaçou sua carreira, a subsequente pressão que sentiu para se aposentar e como passou a aceitar sua nova identidade conforme envelhecia. Ao confrontar essa situação publicamente, Whelan trouxe à tona questões importantes do balé contemporâneo: como ele é discriminatório em suas demandas sobre o corpo humano – desculpando e glorificando uma cultura de dança através da dor –, como se vale dos corpos das mulheres como ferramentas de expressão, e como força ideias rígidas de beleza a elas, mesmo às custas da segurança e do conforto.

    A desvalorização dos corpos das mulheres no balé começa cedo, e o pressuposto do controle masculino destes corpos é tornado comum ao ponto de nem mesmo ser notado.

    Hope Fischer era estudante de dança na Universidade da Califórnia quando ocorreu um episódio durante uma aula que só agora ela se deu conta que foi abusivo. “Um professor de balé colocou sua mão em meu quadril para mantê-lo para baixo”, escreveu em um e-mail, “então colocou minha perna em seu ombro em “à la seconde” [perna para o lado], e continuou a chegar mais perto de mim para que meu quadril permanecesse baixo e a perna se elevasse mais. No final daquele ajuste, nós estávamos praticamente quadril com virilha, estando eu quase em uma abertura, com meu pé em seu ombro.” Ela disse que isso não ficou gravado como algo além do que um ajuste necessário, por causa da “noção de que [seu] corpo não [lhe] pertencia naquele espaço”. E acrescentou: “Como uma bailarina, estava sempre perguntando: O que você quer? O que você quer que eu faça? Como você quer que eu faça isso? Quase nunca me perguntei o que era bom pra mim”.

    Limites pessoais vivem sendo ultrapassados sem que se pergunte se a bailarina está confortável ou se as demandas estão de acordo com sua habilidade.

    Quando estamos em um estúdio de balé, disse ela, já subentendemos que podemos ser corrigidas a qualquer momento por um professor, coreógrafo ou parceiro.

    Limites pessoais vivem sendo ultrapassados sem que se pergunte se a bailarina está confortável ou se as demandas estão de acordo com sua habilidade. Isso simplesmente não faz parte da equação; se uma bailarina não aguenta, sempre tem alguém querendo tomar seu lugar.

    Eu perguntei a Hope quem era o professor. “Com certeza você sabe quem era ele”, escreveu em resposta. E eu sabia — eu era uma estudante de dança no mesmo programa, antes da minha devastadora lesão nas costas. Provavelmente eu estava na sala quando aquilo aconteceu. Mas, assim como Hope, eu era usada do mesmo jeito que os corpos das estudantes de balé eram manipulados e forçados, e aceitava o pressuposto de que a permissão para isso era concedida pelo simples fato de termos entrado naquele estúdio.

    Crescer tão acostumada a privilegiar um corpo pela sua aparência, em detrimento de como esse corpo se sente, é um jogo perigoso. Em nenhum momento, em nenhuma aula de balé que eu já tenha participado, existia a chance de revogar ou repensar nosso consentimento implícito aos professores, coreógrafos e parceiros que, pela estética do balé, tocavam nossos corpos buscando posições ou movimentos perfeitos.

    Agora, depois de anos longe das aulas diárias, me soa como predatório um professor colocar a perna de uma aluna em seu ombro e se aproximar dela até que seus genitais estejam quase se tocando. Isto não aconteceu para a própria segurança da aluna — para ajudá-la a manter o alinhamento correto — mas para forçá-la a se tornar mais flexível, testando os desafios únicos do balé, na tela do corpo de uma jovem mulher.

    O que o balé tem que ainda atrai garotas em bando? Em parte pode ser que, tradicionalmente, não são oferecidas para meninas tantas opções de atividades físicas como são oferecidas para os meninos. Pessoalmente, o balé me ofereceu um mundo lindo, onde mulheres pareciam flutuar mais do que dançar. Este mundo tinha regras claras para o sucesso: seja bonita, siga as instruções, salte e gire. Era exatamente esta doutrina rígida que primeiro me atraiu e que posteriormente causou minha lesão, me afastando do mundo da dança que eu tanto amava.

    O grande paradoxo do balé é sua exigência para que as bailarinas passem toda sua carreira tentando fazer com que tudo pareça natural. Na realidade, esta dança requer controle sobre cada músculo, até mesmo para o movimento mais básico. O esforço físico do balé requer condicionamento diário para desenvolver resistência, flexibilidade e força.

    De acordo com um estudo de 2000 de psicólogos da Universidade de Washington, as lesões em bailarinas são tão comuns e tão sérias quanto lesões em outros esportes, incluindo esporte de contato, como futebol americano e wrestling. Há uma crença disseminada que a dor é parte inevitável do processo de forçar uma variedade ampla de corpos humanos nas mesmas posições.

    A lesão nas costas que sofri naquela aula balé certamente não foi minha primeira, mas foi a primeira que não pude esconder ou ignorar — eu a sentia quando sentava, quando rolava na cama à noite e quando andava durante o dia. Eu ignorei os sinais claros que meu corpo mandava para meu cérebro mostrando que algo estava errado. E eu sabia que tinha sacrificado a saúde do meu próprio corpo pois queria muito ser boa na dança, mesmo quando meu tronco era muito longo e meus pés não dobravam o suficiente. Para compensar estas aparentes deficiências, alonguei minhas costas em excesso e, uma vez, alonguei meus pés até sofrer uma fratura por estresse em um deles (na verdade, eu deixava uma menininha sentada neles todos os dias antes da aula).

    Nunca me ocorreu que a lógica do balé era deficiente — em vez disso, acreditava que meu corpo era.

    Em sua marcante introdução à teoria da dança feminista, a pesquisadora Christy Adair escreve que o balé historicamente selecionou bailarinas "com base no ideal clássico de beleza, reforçando papéis sexuais tradicionais e estruturas hierárquicas, tanto dos institutos de formação quanto das companhias de balé. Enquanto os bailarinos têm plena liberdade de movimentos, as bailarinas calçam sapatilhas de ponta, um rito de passagem emocionante, mas incapacitante, que coloca as mulheres em um pedestal físico, mas que ao mesmo tempo também as machuca".

    É difícil negar que o balé tradicional cause mais sofrimento às mulheres do que aos homens. E a consequência do ano #MeToo no balé nos obrigará a avaliar se ele ainda tem valor inerente como forma de arte, apesar do sofrimento que pode causar e de seus desequilíbrios estruturais e de gênero.

    O fato de que estamos expondo as injustiças estruturais do balé parece um início promissor. Encontrar as pessoas certas para liderar a mudança que o balé precisa se submeter é outro bom passo. Espero que continuemos debatendo sobre a agência e os direitos das mulheres, tanto nas pontas das sapatilhas como fora delas.

    À medida que as formas de arte evoluem para permitir mais mulheres em posições de influência – a saber, como coreógrafas e diretoras artísticas de companhias – devemos debater como o balé deve ser no século 20.

    O ano #MeToo no balé nos obriga a avaliar se ele ainda tem valor inerente como forma de arte, apesar do sofrimento que pode causar e de seus desequilíbrios estruturais e de gênero.

    "Estou certa que ter sofrido tantas lesões em minha juventude – de ter sido forçada, por meio da dor, a executar uma instrução de um professor ou coreógrafo artístico – influenciou o modo como eu dirijo meus próprios ensaios" diz Claudia Schreier, coreógrafa de balé freelancer e beneficiária da Bolsa Virginia B. Toulmin para Mulheres Coreógrafas pela New York University’s Center for Ballet and the Arts.

    Schreier trabalha para criar um ambiente seguro para suas bailarinas durante os ensaios e observa quando o desconforto ultrapassa "a linha de um desafio positivo para uma experiência prejudicial". Ela também considera como parte do seu trabalho ampliar as ideias do público de como o balé pode e deve ser. "Eu tinha uma visão muito distorcida do que era a beleza, pois eu não via ninguém que se parecesse comigo em meu mundo", me contou Schreier — uma das poucas mulheres negras em um setor notavelmente branco — no início deste ano. Mas ela acredita que "a maneira como pensamos sobre o uso do corpo profissionalmente está mudando por causa das conversas que estamos tendo, cultural, social e politicamente".

    "Acreditamos fortemente que uma cultura de igual respeito por todos pode existir em nosso setor", disse Teresa Reichlen, uma das principais bailarinas do NYCB, ao ler uma declaração escrita em nome da companhia, na festa de outono do balé. "Não colocaremos a arte antes do senso comum nem permitiremos que o talento influencie nossa bússola moral."

    Mudar as estruturas e as hierarquias de poder abusivas do balé pode levar a mudanças em seus valores e sua estética. Com isso, poderemos ver uma maior amplitude de movimentos aceitáveis no palco, assim como uma maior variedade de corpos e um ambiente que pode prevenir lesões (como a minha).

    Pois ainda que o balé possa criar um ambiente nocivo ou humilhante para as mulheres, ele também é uma fonte de alegria, capacidade atlética e possibilidades. A bailarina, uma vez despida de seu tule e laquê, existe como uma ferramenta para expressão, de quem o coreógrafo, seu parceiro e o público têm certas expectativas. O que fica bem em seu corpo e provoca em nós expectadores uma sensação de beleza e de resposta emocional? Mas precisamos também começar a nos perguntar com mais frequência: O que ela quer? Como ela se vê?

    As respostas a estas perguntas podem revelar surpresas e mostram que o consentimento e o respeito nas aulas de balé, ensaios e apresentações não estão, de fato, em discordância com a estética da dança.

    Eu parei de dançar porque isso me causava dor, mas ainda me lembro da alegria e do poder da dança que vieram antes. ●


    Os textos de Ellen O'Connell Whittet já foram publicados no Paris Review, Lenny Letter, The Rumpus, Lit Hub e no Blog Ploughshares, do qual ela é colaboradora. A autora atualmente trabalha em um livro sobre o balé e o corpo feminino.




    A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Luísa Pessoa.

    Utilizamos cookies, próprios e de terceiros, que o reconhecem e identificam como um usuário único, para garantir a melhor experiência de navegação, personalizar conteúdo e anúncios, e melhorar o desempenho do nosso site e serviços. Esses Cookies nos permitem coletar alguns dados pessoais sobre você, como sua ID exclusiva atribuída ao seu dispositivo, endereço de IP, tipo de dispositivo e navegador, conteúdos visualizados ou outras ações realizadas usando nossos serviços, país e idioma selecionados, entre outros. Para saber mais sobre nossa política de cookies, acesse link.

    Caso não concorde com o uso cookies dessa forma, você deverá ajustar as configurações de seu navegador ou deixar de acessar o nosso site e serviços. Ao continuar com a navegação em nosso site, você aceita o uso de cookies.