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Ela pensou que estava transando com o namorado, até que viu o rosto dele

O caso de Abigail Finney expôs as brechas na definição de estupro e consentimento na legislação americana. "Eu fiquei: 'Me sinto violada. Isso parece errado. Mas não sei se é ilegal.'"

WEST LAFAYETTE, Indiana — Abigail Finney estava dormindo na cama do seu namorado quando aconteceu.

Os dois estavam saindo há apenas algumas semanas e eram calouros na Universidade de Purdue, em Indiana (EUA). Ele era o engraçado e o extrovertido, ela a mais tranquila. "Ele saía da aula no primeiro dia e já tinha feito amigos", comentou Abigail, com seus grandes olhos castanhos olhando por trás de um óculos redondo e grande. "Eu não tenho esse talento."

"Era uma noite comum", disse. O namorado dela a tinha convidado para ir ao dormitório dele. Alguns amigos dele também estavam lá, jogando videogame em um futon. Uma hora, ela decidiu se retirar e ir para a cama dele – a de cima do beliche. Seu namorado de vez em quando aparecia para ver como ela estava.

Em certo momento, um dos amigos dele, Grant, fez um comentário grosseiro, dizendo que esperava que seu amigo fizesse um “sexo gostoso” com ela. Ela imaginou que ele só estava agindo como um bêbado idiota – já que os garotos estavam bebendo – e fingiu achar graça. "Tínhamos começado a namorar há pouco tempo. Sendo uma garota, você apenas meio que... você não pode lutar contra tudo", disse.

Ficou tarde. A noite chegou ao fim. Abigail dormiu com o namorado ao lado dela. Os três amigos dele se espalharam no futon.

Abigail é do tipo que tem o sono pesado, aquela pessoa que demora para acordar mesmo com um alarme do lado da cama. No entanto, ela acordou com o que estava acontecendo, pelo menos parcialmente: ele estava vindo por trás dela, acariciando seu seio sobre sua camiseta.

Ela o deixou tocá-la. Eles estavam em silêncio. Os amigos dele estavam dormindo. Ela sentiu a mão dele deslizar até tocar seu clitóris. Ainda de costas, ela agarrou o pênis dele e o colocou em sua vagina. Eles transaram. Foi rápido — talvez um minuto, se tanto. Ela parou quando disse a ele que tinha que usar o banheiro.

Só quando estava voltando para a cama, Abigail percebeu quem estava lá. Não era o seu namorado. Era Grant.

“Me lembro dele sorrindo para mim... Uma imagem bizarra”, disse. “Eu não entendia o que estava acontecendo." Ela pensou que os meninos estivessem de brincadeira e perguntou onde seu namorado estava. Os outros amigos dele acordaram e disseram que não sabiam. Foi quando ela percebeu que suas chaves não estavam lá e correu para o seu dormitório. Seu namorado estava dormindo em sua cama.

"Eu fiquei, tipo: 'Me sinto violada. Isso parece errado. Mas não sei se é ilegal.'"

"Há quanto tempo você está no meu quarto?", perguntou Abigail, aflita. Ele explicou que, como a cama dele tinha ficado muito apertada para os dois, tinha decidido ir para a cama dela dormir horas antes. Então ela contou o que Grant tinha feito. Seu namorado, bravo e confuso, saiu furioso.

Sozinha em seu quarto, Abigail tentou processar o que tinha acabado de acontecer. Ela tinha sido estuprada? Isso era contra a lei? Ela mandou mensagens para duas amigas para pedir conselhos. “Eu fiquei: 'Eu me sinto violada. Isso parece errado. Mas não sei se é ilegal.'"

Abigail estava certa em estar confusa. De acordo com a lei do seu Estado, o que Grant fez não era tecnicamente ilegal — embora depois ele tenha admitido que sabia que Abigail não estava consentindo em transar com ele. Isso porque, em Indiana, o sexo só se torna estupro quando é forçado, seja pela força ou ameaças, se a vítima é mentalmente incapacitada e não pode consentir adequadamente, ou se ela não sabe que o sexo está ocorrendo.

Abigail sabia que estava transando. Ela só não sabia que era com Grant.

Pergunte à maioria das pessoas qual é a definição de estupro e você provavelmente ouvirá uma variação de "sexo não consensual". No entanto, o caso de Abigail expôs uma brecha nas leis não apenas de Indiana, mas de mais de três quartos dos Estados e territórios dos EUA: a palavra consentimento não está expressamente definida nas leis.

Nessa lacuna, o sexo induzido por meio de fraude, engano ou disfarce não é, portanto, considerado ilegal. Versões de estupro por leis de fraude existem em apenas algumas jurisdições dos EUA, incluindo Califórnia, Idaho, Missouri, Tennessee e Porto Rico. No Alabama, isso é uma contravenção. No Colorado, isso é crime apenas se o infrator fingir ser o cônjuge da vítima. Isso faz com que as leis de abuso sexual sejam um ponto fora da curva legal. Julie Olthoff, política do Estado de Indiana, comparou a situação a alguém fingindo ser um comprador, a fim de convencer o dono de um carro a lhe dar as chaves, mas nunca mais trazer o carro de volta. "Isso seria processado [como roubo]", disse ela. "O direito de uma pessoa ao seu próprio corpo não é maior do que o direito de uma pessoa a outra posse?"

No Brasil, a lei nº 12.015, de agosto de 2009, alterou o Código Penal de 1940 para ampliar a definição de estupro, introduzindo o conceito de violação sexual mediante fraude. O texto legal prevê pena de 2 a 6 anos de prisão para quem teve "conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima."

Em tese, um caso idêntico ao de Abigail no Brasil poderia ter um tratamento mais rigoroso do que nos Estados Unidos porque a lei dá o instrumento para o Ministério Público denunciar (acusar formalmente) e, após o curso do processo, uma base jurídica para condenação.

As diferenças de ordenamento jurídico entre os dois países tornam o caminho muito mais tortuoso para ativistas dos direitos das vítimas como Abigail nos Estados Unidos: enquanto no Brasil, mudanças na legislação penal têm abrangência em todo o território nacional, após aprovação no Congresso e sanção presidencial, nos Estados Unidos, grosso modo, cada Estado tem sua própria legislação penal e decide como aplicá-la.

Após o caso de Abigail, houve um movimento dos legisladores dos EUA, bem como de ativistas, para criminalizar o estupro por fraude e definir melhor o que significa dar consentimento. No entanto, essas leis também nos obrigam a interrogar a natureza do sexo e nossa própria compreensão do ato.

Quando você faz sexo com alguém, está concordando em transar apenas com a entidade física diante de você? Ou é algo maior e mais complexo? Muitas pessoas podem pensar que um homem que engana sua cunhada para fazer sexo fingindo ser seu gêmeo idêntico deveria ser processado. Mas e o homem que engana uma mulher fingindo ser alguma outra versão falsa e mais bem-sucedida — ou mesmo solteira — de si mesmo? E o que dizer de tantos perfis de apps de encontros em que as pessoas se promovem com mentiras?

"Não tenho certeza se conseguiríamos legislar em todos os casos em que alguém mente", disse Sally Siegrist, membro da Assembleia de Indiana que liderou a campanha pela mudança da lei do Estado após o caso de Abigail, "porque então você chega ao ponto onde: OK, o cara disse que estava no time de futebol e não estava. Não é certo e é uma violação, mas não sei se se compara a um estupro."

O debate jurídico sobre situações como a de Abigail ocorre há centenas de anos. Provavelmente o caso mais antigo documentado ocorreu em 1822, quando um homem chamado Joseph Jackson entrou na cama de uma mulher em Lancaster, Inglaterra, "como se fosse o marido dela" e transou com ela.

Depois disso, vários outros casos foram documentados, incluindo um em 1884, quando uma irlandesa chamada Judith Gorman acordou quando Michael Dee entrou em seu quarto e se deitou por cima dela. "Você chegou cedo", Gorman disse a Dee, acreditando que ele fosse seu marido, que tinha saído para pescar. Somente depois que eles começaram a transar que ela percebeu, horrorizada, que o homem era um estranho.

Somente depois que ele começou a fazer sexo com ela, ela percebeu horrorizada que o homem era um estranho.

Tais casos não se limitam aos anais da história. Em 2005, uma mulher de Massachusetts que dormia na cama do seu namorado acordou com um homem entrando no quarto. Somente quando ele abriu a porta para sair, depois que os dois transaram, que ela viu que era o irmão do seu namorado. O principal tribunal do Estado, no entanto, disse que o ato não era ilegal porque, como em Indiana, o estupro era definido como uma relação sexual à força e contra a vontade de uma pessoa.

Nos Estados em que o estupro por fraude é expressamente proibido, os julgamentos podem ter resultados variados. Em um deles, no Tennessee, um homem foi considerado culpado de estupro em 1996 depois de ligar para mulheres fingindo ser o parceiro delas. Ele as convencia a se despirem, vendarem os olhos e aguardarem a chegada dele. "Diga-me algo que só você e eu sabemos", disse uma mulher quando ele começou a transar com ela, mas não obteve resposta. Horrorizada, ela percebeu que o homem não era quem ela achava que fosse. Ele foi condenado a 15 anos de prisão.

Um tribunal canadense também confirmou a condenação de um homem considerado culpado de abuso sexual em 2008 depois de ele transar com uma mulher que achou que ele era o irmão gêmeo dele. Um ano depois, na Austrália do Sul, um homem enfrentou acusações criminais depois de transar com a mãe de seu amigo. Assim como Abigail, a mãe estava dormindo quando sentiu o toque de um homem que ela assumiu ser seu parceiro. Assim como Abigail, ela não estava totalmente acordada quando inseriu o pênis do homem em sua vagina. Ao contrário do caso de Abigail, o homem foi condenado por estupro.

As leis de estupro são historicamente enraizadas no desejo sexista de proteger a virtude e a castidade das mulheres de serem desonradas. Isso ajuda a explicar por que, por séculos, o estupro conjugal não foi um crime: uma mulher casada não podia ser "desonrada" por transar com seu próprio marido, quer ela consentisse ou não. Segundo a mesma lógica, mulheres solteiras que foram enganadas para fazer sexo não eram vítimas segundo a lei, pois consentiram em ser "desonradas".

No entanto, as últimas décadas têm mudado o enfoque da lei para o que o professor da Faculdade de Direito de Yale, Jed Rubenfeld, chama de conceito de autonomia sexual: o direito de decidir com quem e sob quais circunstâncias a pessoa faz sexo. "A liberdade pressupõe uma autonomia de si que inclui certa conduta íntima", escreveu o juiz Anthony Kennedy no caso da Suprema Corte de 2003 que derrubou as leis de sodomia como inconstitucionais.

Para Rubenfeld, esse conceito de autonomia sexual se estende muito mais além.

"Ao assumir que autonomia sexual significa qualquer coisa, isso inclui o direito de não fazer sexo com um homem casado se você não quiser", argumentou ele em um artigo de 2013. “Isso inclui o direito de não fazer sexo com alguém que não está interessado em um relacionamento sério. Esses direitos podem ser violados por mentiras, tanto quanto por força ou ameaça."

Joyce Short sabe o que significa reconstruir sua vida após uma série de traumas.

Quando criança, ela foi molestada. Na faculdade, foi abusada sexualmente. E quando ela tinha vinte e poucos anos, foi conquistada por um homem charmoso de origem estrangeira que lhe disse ser solteiro, judeu, vários anos mais velho do que ela, um graduado bem-sucedido da Universidade de Nova York e até veterano da Guerra do Vietnã. Na verdade, ele não era nada disso.

Short, agora com 70 anos, só começou a descobrir a verdade depois de meses de relacionamento. Foi quando ela engravidou e foi persuadida por ele a fazer um aborto. Depois de ajudá-la a chegar em casa do hospital naquele dia, ele acabou dizendo a ela que não era solteiro — ele ainda era casado com a mulher que dizia ser sua ex. Ela foi até seu armário de remédios, pegou um frasco de pílulas para dormir e tomou todos os comprimidos que havia dentro. "Mas não havia pílulas suficientes no frasco", disse Short em entrevista ao BuzzFeed News.

Short está convencida de que o que seu ex-parceiro fez foi tão ruim quanto os abusos sexuais anteriores — talvez pior, porque ela ficou emocional e psicologicamente presa no relacionamento. "O abuso dele comigo é algo que eu enfrento todos os dias da minha vida", disse. “Ele me violou com sua perversão por mais de três anos para conseguir sexo, afeto e carinho. Ele cometeu tanto estupro emocional quanto estupro por fraude”, escreveu Short em uma autobiografia.

Nos últimos anos, Short tornou-se uma das principais defensoras do país contra o estupro por fraude. Ela tem um blog, envia e-mails para legisladores e promotores e compartilha sua história com jornalistas e com o público. Em outubro, quando viu a fundadora do #MeToo Tarana Burke discursar em Manhattan, aproveitou a sessão de perguntas e respostas para pedir que Burke participasse de seu próprio movimento: Short quer que consentimento seja definido em cada Estado como um “acordo livremente informado e consciente”, algo que ela acredita, por extensão, que vá criminalizar todos os tipos de estupro por fraude.

Mas nem todo mundo é receptivo à ideia. Os comentários em seu blog podem ser céticos ou até mesmo maliciosos. Os promotores a ignoram. "As pessoas não querem abrir a caixa de Pandora", diz. "Elas não querem abordar o conceito de consentimento."

No início de fevereiro deste ano, Short estava em seu computador quando recebeu um novo e-mail do Google Notícias que havia configurado para alertá-la de casos de estupro por fraude. A história era sobre um novo veredicto de um júri de Indiana. O que ela leu fez seu sangue ferver.

Sentada em seu dormitório, tentando se recuperar do choque, Abigail decidiu fazer uma pesquisa no Google para ver se alguma mulher já tinha passado pelo o que ela tinha sofrido com Grant.

"Antes disso pensava que, se algo assim acontecesse comigo, iria denunciar na hora", disse. "Mas não é tão fácil quando se trata da vida real."

Ela encontrou o número da linha de assistência da RAINN, sigla em inglês para Rede Nacional de Assistência a Vítimas de Estupro dos EUA. Eles a incentivaram a ir ao hospital e prometeram enviar um advogado para ajudá-la.

Sua mente estava confusa e ela estava meio adormecida durante o sexo. Ela tinha sonhado com a coisa toda? 

Ela começou a duvidar de si mesma. Sua mente estava confusa e ela estava meio adormecida durante o sexo. Ela tinha sonhado com a coisa toda?

Foi então que o namorado dela retornou (o namorado de Abigail se recusou a ser entrevistado, e os dois pediram para ele não ser identificado nessa reportagem). Ele tinha falado com Grant, que confessou que sabia que Abigail achava que ela estava transando com o namorado.

"Foi então que soube que havia acontecido de verdade", disse ela. "Eu tinha certeza, mas acho que você meio que duvida de si mesma quando algo está errado — não sei como explicar."

Eles foram juntos ao hospital, onde enfermeiras especialmente treinadas pegaram amostras para um kit de estupro, colocaram as roupas dela em papel manteiga para coletar qualquer evidência solta e prescreveram remédios contra DSTs.

Na delegacia de polícia naquela noite, Abigail e seu namorado foram entrevistados por detetives em salas diferentes. "Eles fizeram algumas coisas estilo CSI", lembrou Abigail. Isso incluiu fazer o namorado dela ligar para Grant. "Eles gravaram o telefonema", disse Abigail. "Então eles usaram isso como causa provável para prendê-lo."

(A Universidade de Purdue se recusou a disponibilizar registros policiais para o BuzzFeed News. Os detalhes dessa reportagem foram apurados por meio de entrevistas, transcrições de julgamentos e documentos judiciais obtidos pelo BuzzFeed News por outros meios.)

Depois que ele foi levado sob custódia às 23:33 naquele mesmo domingo, Donald Grant Ward, de 19 anos, conhecido por seus amigos como Grant, admitiu à polícia que o que Abigail havia descrito estava correto, de acordo com um depoimento policial. Ele admitiu que esperou até o namorado de Abigail sair do quarto antes de subir no beliche. Ele admitiu que ela estava de costas para ele no quarto escuro quando ele começou a tocá-la. Ele admitiu que acreditava que Abigail achava que ele era o namorado dela. Ao responder à pergunta de por que ele pensou isso, Grant disse à polícia: "Porque ela chegou muito perto de mim."

"Complementando", as autoridades escreveram em seu depoimento de causa provável, o qual não citava Abigail: "Ward indicou que teve relações sexuais com a Vítima #1 sabendo que ela acreditava que ele era o namorado dela."

Então, os promotores do condado de Tippecanoe tomaram uma decisão incontornável: eles optaram por acusar Ward de duas acusações de estupro. "Eles me disseram as acusações específicas, e eu não pensei em questioná-las. Hoje, sei que deveria ter feito isso [questionado]", disse Abigail.

O júri chegou ao seu veredito em apenas algumas horas.

Durante o julgamento de três dias, o advogado de defesa Kirk Freeman argumentou que, embora a conduta de Grant fosse "indelicada", não era ilegal em Indiana. O júri concordou. "Algo pode ser ruim, pode ser contra as normas culturais, contra a etiqueta, mas isso não significa que seja crime", disse Freeman ao BuzzFeed News.

Sentado em seu escritório, a poucos passos do tribunal neogótico no centro de Lafayette em um dia ensolarado de outubro, suado e despenteado depois da correria com um cliente anterior, Freeman afirmou que Grant não realizou nenhum ato físico — em termos legais, nenhum actus reus — que poderia constituir uma fraude.

"Algo pode ser ruim, pode ser contra as normas culturais, contra a etiqueta, mas isso não significa que seja crime"

“Ele não fez nenhuma declaração. Ele não disse nada. Ele não fez nada. Ele não usou nenhuma máscara”, disse Freeman. Grant se recusou a ser entrevistado para esta história.

Segundo o advogado de defesa, os promotores deveriam ter tratado o caso como agressão sexual. "Não faz absolutamente nenhum sentido se você é 'buá, buá, a vítima, buá, buá'", disse ele, imitando uma criança choramingando. “Se a sua preocupação era com a vítima, por que não processar pelo que você poderia fazer, em vez de por algo que você sabia que estava fora dos limites legais?”

A lei sobre agressão sexual de Indiana foi alterada em 2012 para incluir cenários como o de Abigail, prevendo situações em que alguém toca, com o propósito de gratificação sexual, "as genitais de outra pessoa, região pubiana, nádegas ou seios femininos sem que essa pessoa saiba que está sendo tocada".

"Eles tinham uma lei que protegeria Abigail, mas se recusaram a aplicá-la", disse Freeman sobre os promotores.

No entanto, a lei de agressão sexual só caberia ao momento inicial em que Grant tocou Abigail pela primeira vez quando ela estava dormindo, não à relação sexual subsequente depois que ela acordou. Além disso, a agressão sexual tem uma sentença máxima de dois anos e meio de prisão no Estado. Já uma condenação por estupro teria prendido Grant de três e 16 anos.

O promotor do condado de Tippecanoe, Patrick Harrington, recusou vários pedidos de entrevista para esta reportagem. Citando a exclusão de Grant de seus registros após sua absolvição, Harrington também se recusou expressamente a disponibilizar qualquer registro sobre o caso.

Quando o relator do júri leu o veredicto em 6 de fevereiro deste ano, Abigail tinha certeza de que Grant seria considerado culpado. Ela assistiu aos argumentos finais e achou que o caso dos promotores era convincente. Ela não se lembra se alguém no júri olhou para ela quando o réu foi declarado inocente.

"Eu fiquei muito brava. Eu senti como se tivesse perdido um ano da minha vida", disse. “Minha terapeuta até chamou o julgamento de um segundo trauma, então meio que senti que tinha feito tudo isso para nada.”

Sally Siegrist, ex-deputada estadual republicana em Indiana, estava determinada a garantir que a dor de Abigail não fosse em vão. “Eu não quero que outra vítima veja seu estuprador livre só por causa de uma brecha em nossa legislação estadual. Isso é inaceitável”, disse ao BuzzFeed News. "Nós escrevemos as leis para proteger nossos cidadãos. Mas nossa lei não protegeu Abi."

“Eu não quero que outra vítima veja seu estuprador livre só por causa de uma brecha em nossa legislação estadual. Isso é inaceitável”

Harrington, que é amigo próximo de Siegrist, que foi derrotada para o parlamento de Indiana em outubro, manteve-a atualizada sobre o caso enquanto ele o levava a julgamento, e Siegrist defende a decisão dele de processar Grant por estupro em vez de abuso sexual, dada sua confissão e a evidência de DNA.

No entanto, quando ela soube que Grant havia sido inocentado, sentiu que precisava agir e entrou em contato com a colega republicana Julie Olthoff, deputada estadual em Indiana.

Olthoff não tinha ouvido falar do caso até que Siegrist lhe contou sobre a absolvição de Grant. "Isso não está certo. Isso não está certo. Como pode? Algo não está certo no sistema", lembrou Olthoff de suas primeiras impressões. "Ela estava apenas dormindo na cama do namorado. Você não acha que esse é um lugar onde pode acontecer alguma coisa de mau com você. Então é assim que fica assustador, quando você pensa, estou segura. Mas você não está segura."

O plano delas era ampliar a definição de estupro no Estado. Elas se reuniram com a associação dos promotores, defensores públicos, procuradoria-geral do Estado, policiais e xerifes, e com a ICESA, sigla em inglês para Coalizão Indiana para Acabar com o Abuso Sexual. Siegrist começou a sondar os colegas em busca de apoio.

Decidida a aprender todo o possível sobre estupro por fraude, Siegrist também entrou em contato com uma mulher a muitos quilômetros de distância, em Nova York: Joyce Short. Siegrist ficou horrorizada ao ouvir como Short havia sido enganada. Mas, ainda assim...

Quando respondeu a uma pergunta do BuzzFeed News sobre como definia o estupro, Siegrist respondeu: "sexo não consensual". E, quando definiu consentimento, ofereceu uma definição que soou quase como a que Short está defendendo: “acordo livremente informado e totalmente informado”. No entanto, ao responder se acredita que o que aconteceu com Short foi estupro, Siegrist fez uma pausa. "Não tenho certeza", disse. Ela tem receio de escrever uma definição de consentimento para a legislação penal e acredita que a legislação civil ofereceria uma solução legal melhor para mulheres como Short.

Já a colega de Siegrist, Olthoff, tem uma visão completamente diferente. "Se você mente para obter uma posse, isso é roubo, e isso é processável", disse ela. "Então, se você mente para transar com alguém, isso também deve ser processável."

"Precisamos definir o que é consentimento para saber o que significa sexo não consensual"

Em seu escritório em Nova York, Short disse ao BuzzFeed News que legisladores como Siegrist deveriam lidar com o assunto de frente ou desistir logo. "Temos legisladores que escolhem casos muito específicos e dizem: 'OK, meus eleitores acham que esse foi um caso hediondo, e quero ter certeza de que meus eleitores acham que vou protegê-los desse tipo particular de abuso sexual'", disse ela. "Mas precisamos fazer algo além disso."

"Precisamos definir o que é consentimento para saber o que significa sexo não consensual", disse Short.

Kirk Freeman, advogado de defesa de Grant, perguntou, incrédulo, se tal iniciativa legislativa "criminalizaria flertar com garotas". Após a absolvição de Grant, Freeman equiparou o caso de Abigail a mulheres que dormem com homens que fingem ser estrelas do futebol.

A ex-deputada Siegrist descartou a analogia dele como o orgulho de um advogado que acabara de “livrar um estuprador confesso”. "É uma situação completamente diferente de alguém que entra na cama de uma mulher com ela supondo que se trata do seu namorado", disse ela.

"São duas coisas completamente diferentes."

No entanto, foram argumentos como os de Freeman que eliminaram uma campanha em Nova Jersey em 2014 para criminalizar o estupro por fraude. Troy Singleton, agora senador do Estado de Nova Jersey, era membro da Assembleia e havia apresentado um projeto de lei depois que uma de suas constituintes, Michele Lewis, havia sido enganada e engravidou de um homem que ela conheceu na internet e que fingia ser um espião britânico.

O projeto de lei de Singleton nunca saiu do comitê. Segundo o congressista, as pessoas não conseguiam aceitar que havia ocorrido abuso sexual, já que não houve violência física. Além disso, diziam que a mudança na lei iria lotar o sistema judicial com vigaristas.

Joyce Short já ouviu esses argumentos. Ela revira os olhos com desdém para a ideia de que os promotores abrirão casos criminais contra homens que falsamente dizem às mulheres que eles as amam para levá-las para cama. Existem padrões probatórios que precisam ser atendidos, argumenta ela, assim como a discrição da promotoria de dar sequência apenas aos casos mais notórios de fraude.

Short está convencida de que as novas leis teriam um efeito dissuasivo e acabariam com a fraude, "porque ninguém quer ir para a cadeia por transar."

"Você muda a moralidade quando muda as leis", disse ela.

Ainda assim, a revolução de Short terá um longo caminho pela frente. Os esforços de Indiana chegaram ao fim no mês passado. Tanto Siegrist quanto Olthoff foram derrotadas nas últimas eleições e deixaram seus cargos legislativos.

Embora tenha tentado, Abigail não conseguiu evitar as lembranças do que aconteceu com ela. Ela teve que abandonar a escola por um semestre para receber tratamento para estresse e depressão grave.

No julgamento de três dias, Abigail foi forçada a olhar para Grant para identificá-lo como seu agressor. Foi a primeira vez que ela olhou para ele desde o que tinha acontecido, quase 12 meses atrás.

O veredito fez as coisas piorarem. Após a vitória no tribunal, Freeman, o advogado de defesa, ridicularizou a experiência de Abigail nas redes sociais como "sexo arrependido por uma branquela". O banimento de Grant do campus expirou após 12 meses, mas Abigail e suas amigas não falam mais com ele. Ela ouviu que ele foi transferido para outra universidade de Indiana, mas ela não sabe onde. "Agora ele é problema de outra pessoa", disse ela.

Abigail está de volta às aulas agora, morando em um estúdio fora do campus. Ela quer recuperar os créditos do curso que perdeu para poder se formar com suas amigas. Ela tem uma gata de apoio emocional chamada Ellie, em homenagem à personagem de Laura Dern em Jurassic Park. Quando nos encontramos, Abigail estava usando um pequeno colar de estegossauro no pescoço.

Ela e seu namorado também ficaram juntos nesse período difícil. "Ele teve que fazer a escolha de Eu vou ficar com ela até isso acabar, ou não? Foi uma decisão difícil, especialmente no começo de um relacionamento", disse ela.

A raiva permanece. Ela tem raiva de Grant, é claro, mas também por ter a infelicidade de viver em um Estado onde o estupro por fraude não é ilegal. Quando ela se formar, quer se mudar para longe de Indiana, para algum lugar mais quente, talvez com leis diferentes.

"Não há realmente nada de errado com este Estado", disse ela. "Mas não é para mim." ●


A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Luísa Pessoa.

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