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Volta às aulas: professores preferem se demitir a pôr suas vidas em risco

“A maioria dos pais não faz ideia do quão ruim isso será”.

A woman cleans a classroom door

Em Dallas, Texas (EUA), uma professora havia sido convidada para a formatura de ensino médio da primeira classe de alunos para a qual deu aulas ao acabar de se tornar professora, há pouco mais de uma década, mas a cerimônia foi cancelada devido à pandemia de coronavírus. Agora, apenas alguns meses depois, diante de um plano incerto de reabertura das escolas, ela está se candidatando a vagas no setor privado e pensa em parar de lecionar definitivamente.

“A esta altura, se alguém me oferecesse outra coisa, preferiria fazer isso a arriscar a minha saúde”, ela disse.

Normalmente, a professora, que solicitou anonimato para proteger seu emprego, dá aulas para 25 alunos do ensino fundamental em uma sala de aula pequena, com janelas que não abrem. Ela tem receio de voltar, mas no Texas, onde os casos de coronavírus estão aumentando e já faltam leitos vagos em alguns hospitais, os professores estão proibidos por lei de entrarem em greve, e aqueles que quebrarem seus contratos podem perder seu certificado de magistério definitivamente.

No início da semana, o superintendente de seu distrito disse em uma reunião de funcionários por vídeo que o plano é que os alunos assistam às aulas presencialmente. No final da reunião, ele reconheceu as dificuldades e riscos sem precedentes que os professores enfrentarão.

“Apreciamos vocês, nos importamos com vocês, queremos oferecer a melhor oportunidade e o melhor ambiente que pudermos”, disse o superintendente, segundo um funcionário que participou da reunião. “Muitas pessoas me perguntam todos os dias como podemos ajudar, e eu não sei se vocês são religiosos ou não, mas precisamos de suas orações. Precisamos que orem por nossas crianças e nossas famílias”.

Mas isso não amenizou as preocupações de muitos membros da equipe.

“Todos nas mensagens de grupo falavam: ‘como assim, orar?’ Isso não é nada reconfortante”, disse a professora.

“Eu amo meu trabalho, amo. Mas isso? Não vale a minha vida”, continuou. “Tenho medo de pegar a doença e trazê-la para a minha família. Tenho medo de morrer. Acho que todos nós temos, sabe?”

O governo do presidente dos EUA, Donald Trump, tem pressa para abrir as escolas, em parte porque os pais não podem voltar a trabalhar e ser máquinas eficientes para a economia sem ter com quem deixar os filhos. Mas em muitos estados tem se provado difícil, se não impossível, mandar as crianças de volta à escola com segurança, já que o comércio reabriu cedo demais e o sistema de saúde está novamente lidando com um aumento nas infecções, hospitalizações e mortes.

A crise de como e quando será a reabertura das escolas destaca uma contradição central da sociedade americana: ela não pode funcionar sem o sistema público de ensino, que não possui verbas e recursos suficientes para seguir as diretrizes básicas de saúde e segurança que possibilitariam a reabertura das escolas durante uma pandemia global.

Os professores são rápidos em admitir que aulas pela internet não são tão eficazes quanto a presença em sala de aula, mas com o aumento dos casos de coronavírus por todo o país, muitos também não se sentem preparados para voltar. Uma falta de liderança nacional na questão escolar deixou os estados encarregados de darem ordens, e os distritos escolares de criarem planos fragmentados que muitos professores não entendem ou confiam.

Enquanto alguns funcionários escolares se sentem prontos para voltar, outros estão tão frustrados e temerosos que tiveram a ideia de organizar uma greve nacional semelhante às greves de professores em 2018 e 2019 contra os salários baixos. Mas como funcionários públicos em alguns estados estão proibidos por lei de entrarem em greve, e outros temem que quebrar seus contratos demitindo-se de última hora ou organizando licenças médicas coletivas como forma de protesto pode levá-los não só a perderem seus empregos, incluindo plano de saúde e salário, mas seus certificados de magistério e, consequentemente, sua capacidade de trabalhar de qualquer maneira.

Em vez de enfrentar essa decisão, Michael McCann, que deu aulas de inglês para alunos do ensino fundamental e médio no estado da Virgínia durante os últimos três anos, decidiu se demitir em junho. Segundo ele, o problema é que os governantes “esperam que os professores sejam a cola que mantém a sociedade unida”.

McCann teve a sorte de ser contratado como redator técnico, um trabalho que ele pode fazer em casa, apenas um mês antes de sua esposa dar à luz o filho do casal, esperado para agosto.

Abandonar seu trabalho como professor não foi uma decisão fácil para McCann, que afirmou que sentirá falta dos alunos com quem trabalhou no ano passado e daqueles que teria ensinado neste ano na oitava série. Mas, em última análise, ele sentiu que não conseguiria reconciliar a falta de liderança e o fracasso do país em controlar a pandemia com a segurança de sua família.

“Se tivessem sido mais diretos com os funcionários quanto ao que esperar… Eles continuavam mandando pesquisas de opinião, mas não sabíamos quais decisões estavam sendo tomadas com base nessas pesquisas", ele disse. “Eu pensei: ‘vocês estão tomando essa decisão na semana em que deveríamos retomar as aulas?’ Se pudessem nos dar alguma resposta garantida, ou algum consolo sobre o que esperar, provavelmente eu não teria me candidatado àquela vaga”.

McCann afirmou estar preocupado com a segurança e a educação de seus ex-alunos, mas também com as enfermeiras, orientadores, administradores, funcionários de refeitório e outros adultos na escola que ele percebe que não têm o suporte adequado para lidar com a crise.

A row of parked school buses

Motoristas de ônibus, alguns dos quais ficam sozinhos com dezenas de estudantes por vez, também colocarão sua saúde em risco quando as escolas reabrirem. Nos distritos que voltarem com um cronograma rotativo, os ônibus terão mais espaço para distanciamento, mas em outras regiões, os motoristas terão que fazer várias viagens por manhã, higienizar os ônibus entre trajetos e impor o uso de máscaras enquanto dirigem. O sindicato de funcionários escolares de Houston declarou que 80% dos motoristas de ônibus estão se recusando a voltar por questões de saúde e de idade, e preocupações relacionadas ao vírus, segundo a emissora KHOU.

Vicki dirige ônibus escolares em uma cidade no estado do Indiana há quase 30 anos. Neste ano, a volta às aulas está marcada para o dia 5 de agosto. Ela dirige um ônibus para crianças com deficiências, com menos alunos, portanto, e um assistente está disponível para manter todos seguros. Mas ela tem amigos motoristas que levam até 54 alunos por vez, e ela se preocupa com a segurança deles.

“Eu ficaria bem mais nervosa se tivesse que dirigir um ônibus grande”, disse Vicki, que pediu para não ter seu sobrenome revelado. “Estou preocupada em ficar doente, mas mais preocupada com a possibilidade de ser portadora do vírus e passá-lo para outros na minha família, ou para uma das minhas crianças com necessidades especiais”.

Jeffery Yarger dirige ônibus escolares há 21 anos e está parcialmente aposentado. Ele pensou em não voltar este ano por causa do vírus, mas com os planos de transportar menos alunos e com tempo para higienizar o ônibus entre viagens, ele decidiu que tem condições de trabalhar.

“Pensei nisso, mas eu amo tanto o meu trabalho”, ele disse. “Isso me deixa nervoso. Qualquer um em sã consciência estaria nervoso”.

No início do mês, a Academia Americana de Pediatria recomendou que as escolas reabrissem para o ensino presencial desde que medidas razoáveis de segurança fossem tomadas. Mas os professores de alguns distritos receiam que nem mesmo os protocolos básicos sejam possíveis.

“Dizem que vão manter o distanciamento social, mas não sei se temos espaço físico para isso”, disse uma professora em St. Paul, Minnesota, que solicitou anonimato para proteger seu emprego.

Alguns professores temem que os alunos não queiram usar máscaras ou não as tragam para a escola, ou sequer tenham condições de comprá-las. Professores em Dallas foram comunicados que os alunos usariam máscaras, mas um professor de jardim de infância duvidou da promessa. “Disseram que teríamos máscaras e protetores para o rosto e que todos estariam cobertos, mas é um distrito escolar no qual, às vezes, nem sabonetes temos”, ele disse.

Ele também teme não ter espaço para manter a distância entre as crianças, e nem pessoal para monitorá-las, especialmente dada a quantidade de professores que ele ouviu que pretendem se aposentar mais cedo para evitar riscos à saúde. A professora em Minnesota tem preocupações semelhantes e diz que, em seu distrito, as máscaras são um problema gerenciável em comparação com a questão do espaço.

"As crianças vão usar camisetas por cima do rosto. Voluntários vão fazer máscaras se precisarem, com arrecadação de fundos na comunidade, campanhas, círculos de costura e todas essas coisas”, ela disse. "Mas escudos de acrílico ao redor das crianças? Ou conseguir colocá-las a 2 metros de distância? É aí que a questão orçamentária deveria entrar, e no que diz respeito aos distritos escolares, não temos verba para isso".

A situação que ela descreve contrasta fortemente com algumas escolas em locais como Indonésia, China e Tailândia, onde os alunos têm sua temperatura medida, são testados para COVID-19 e têm acesso a barreiras de acrílico e câmaras de desinfecção.

Nos Estados Unidos, muitos alunos não têm acesso regular à internet ou a um computador, o que torna o aprendizado remoto inviável. Alguns professores sentem que o tempo e a energia atualmente gastos na reabertura das escolas seriam melhores aproveitados buscando-se maneiras de tornar o ensino à distância mais igualitário, mais viável para os pais e mais eficaz para os alunos.

A professora em St. Paul teme que essa seja só uma das maneiras pelas quais a pandemia aumentará a desigualdade entre alunos de diferentes contextos socioeconômicos. Ela também tem visto pais publicando anúncios online à busca de professores particulares para ajudarem os alunos a obterem uma educação melhor em casa, um recurso pelo qual as famílias mais pobres não podem pagar.

“Nossos orçamentos”, disse a professora em St. Paul, “são um reflexo das prioridades da nossa sociedade”.

A erupção dos protestos contra o assassinato de George Floyd, cometido pela polícia, incitou um debate nacional sobre o policiamento racista e, consequentemente, o tamanho das verbas destinadas a departamentos policiais; em 2017, Mineápolis gastou uma porcentagem maior de seu orçamento com policiamento do que todas as cidades americanas, exceto por duas outras. As verbas destinadas às escolas e a outras necessidades comunitárias não cresceram no mesmo ritmo que aquelas destinadas ao policiamento em cidades americanas. A secretaria de educação de Mineápolis cancelou seu contrato de 1,3 milhão de dólares com o Departamento de Polícia da cidade e prometeu “redirecionar essa verba para nossas escolas e comunidade”, segundo a revista The Nation. Mas em outros lugares, as verbas das escolas estão sendo cortadas.

Alguns funcionários escolares temem que problemas orçamentários possam levar a licenças não remuneradas ou demissões. Independentemente das aulas serem presenciais ou online, os professores são obrigados a comparecer, mas outros funcionários, como trabalhadores dos refeitórios e motoristas de ônibus, não sabem o que acontecerá com seus empregos se as escolas não reabrirem fisicamente. Como milhares de outros trabalhadores, eles estão divididos entre quererem receber seu salário e preservar sua saúde.

Uma vigia que trabalha sob contrato em uma escola de ensino médio em Turlock, na Califórnia, disse estar mais preocupada em perder seu emprego do que com os riscos causados à saúde pela volta às aulas. Ela está confiante que os funcionários da escola conseguirão fazer com que as crianças usem máscaras e mantenham o distanciamento social.

“Espero que ela reabra. Meus filhos precisam da professora deles e do ambiente de sala de aula, e esse também é o meu ganha-pão. Eu teria muito a perder se fosse demitida”, ela disse. “Não podemos parar nossas vidas, caso contrário, teremos que morar na rua”.

Enquanto os estados lutam para descobrir como reabrir as escolas, bares, restaurantes e até parques temáticos já reabriram em comunidades de todo o país. O Disney World reabriu — completo com “zonas de relaxamento” onde máscaras não são obrigatórias — na mesma semana em que o estado da Flórida bateu o recorde de novos casos de coronavírus, segundo o jornal New York Times.

A apenas 45 minutos ao norte da Disney, no condado de Seminole, na Flórida, um professor que pediu para não ser identificado ainda não sabe o que fazer quando as aulas recomeçarem. “Reabriremos em escala integral no dia 10 de agosto, e muitos estão apavorados”, ele disse.

A crossing guard stops traffic in front of a school bus

Ele se preocupa com a saúde de sua esposa, que recentemente passou por uma cirurgia cardíaca, e sua filha, que tem sido hospitalizada frequentemente por conta de uma doença pulmonar. O distrito onde ele trabalha, no qual as salas de aula costumam ficar lotadas, não informou se exigirá máscaras. “A maioria dos pais não faz ideia do quão ruim isso será”, ele disse. “Estou só aqui sentado olhando ao redor, perplexo”.

O professor na Flórida disse que sugeriu uma greve na qual os funcionários pedissem licença médica ao mesmo tempo, mas em seu estado os professores estão proibidos por lei de entrarem em greve. “Eles têm medo de [perder] a licença, o emprego e o plano de saúde por se posicionarem”, ele disse.

Professores em outros estados, incluindo o Texas, também estão proibidos por lei de entrarem em greve e alguns, incluindo a professora em Dallas, temem que pedir demissão de última hora seja considerado quebra de contrato. “Temos medo de perder nossas licenças”, ela disse. “O estado do Texas pode tirar seu certificado”.

Até o momento, a reabertura das escolas no Texas está marcada para o mês que vem. A professora em Dallas diz ter dificuldades para dormir à medida que mais pessoas da região ficam doentes. “Antes era um amigo de um amigo. Agora quem está doente são as pessoas que você conhece. Está chegando mais perto”, disse.

Ela ainda não sabe ao certo o que fará caso o distrito decida retomar o ensino presencial em capacidade integral. Apesar de não ter escolha quanto a voltar a dar aulas, ela diz que se tivesse filhos, os matricularia em aulas online e recomenda que os pais façam o mesmo.

Segundo ela, outro dia a mãe de um aluno telefonou para ela e pediu que falasse com seu filho. “Ela perguntou: ‘você pode conversar com ele? Porque ele está chorando que não quer ir à escola, voltar e nos matar’”, ela disse.

“Eu não posso mentir para eles”, disse a professora. “Foi isso o que eu disse a ela. Que eu bem que gostaria de dizer a ele que tudo vai ficar bem, mas eu também estou com medo”. ●

Este post foi traduzido do inglês.

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