O estranho caso do diplomata russo que morreu misteriosamente no dia da eleição de Donald Trump

    Como Sergei Krivov morreu? E por que a polícia de Nova York encerrou o caso?

    NOVA YORK — O corpo foi encontrado pouco antes das 7 da manhã do dia 8 de novembro de 2016, deitado no chão do consulado russo na região de Upper East Side. Era o dia das eleições presidenciais nos Estados Unidos.

    O homem estava inconsciente e sem reação, com uma ferida na cabeça não identificada: "trauma por força contundente", na linguagem policial. Quando o serviço de emergência chegou, ele já estava morto.

    Relatos iniciais diziam que o homem sem nome tinha mergulhado para a morte do telhado do consulado. Quando os jornalistas correram para o local, a narrativa mudou, com funcionários do consulado dizendo que o anônimo havia, na verdade, sofrido um ataque cardíaco na guarita de segurança do edifício.

    Quando o corpo do homem deixou o necrotério, no dia seguinte, Donald J. Trump tinha sido eleito presidente dos Estados Unidos.

    No momento em que o corpo do homem deixou o necrotério, no dia seguinte, Donald J. Trump tinha sido eleito presidente dos EUA, após uma campanha política que dividiu o país. Mais tarde, agências de inteligência americanas iriam informar que a Rússia havia tentado manipular e enviesar as eleições a favor de Trump. No entanto, com o resultado da eleição, o mundo virou de cabeça para baixo, e a morte do homem no consulado rapidamente desapareceu de vista.

    A polícia disse que a morte de Sergei Krivov, seu nome revelado aqui publicamente pela primeira vez, parecia natural e encerrou o caso.

    Mas quem era Sergei? E como ele realmente morreu? Três meses depois de Sergei ter sido encontrado morto -- e em um contexto em que as tensões entre os EUA e a Rússia estão chegando a um estado crítico --, ainda há dúvidas se ele teve mesmo um ataque cardíaco, afinal.

    Até onde sei, morrer é uma bagunça, mesmo em circunstâncias normais. No entanto, nos meses que se seguiram à morte de Sergei, provou-se quase impossível descobrir quem ele era, como ele morreu e qual foi o envolvimento das autoridades americanas na investigação da morte.

    Relatórios em inglês afirmam que Sergei, identificado apenas como um russo de 63 anos que morava em Manhattan, trabalhava como um oficial de segurança. No entanto, uma reportagem do mês de novembro da Sputnik, a imprensa russa de língua inglesa, diz que ele era comandante de serviço consular [consular duty commander].

    Essa posição não é ocupada por um segurança comum. De acordo com outras descrições públicas (em russo) do cargo, Sergei teria sido encarregado, entre outras coisas, de prevenir "sabotagens" e impedir "instrusões" secretas no consulado. Em outras palavras, era tarefa de Sergei garantir que as agências de inteligência dos EUA não tivessem acesso ao prédio.

    Até onde sei, morrer é uma coisa confusa, mesmo em circunstâncias normais.

    O cargo de comandante de serviço consular também teria acesso ao criptograma do consulado, que é o código secreto usado para criptografar e descriptografar mensagens transmitidas entre o consulado e outros canais russos. Era provável que Sergei ajudasse a cuidar dos cabos de transmissão dentro e fora do edifício.

    Apesar de ser descrito como um residente de Manhattan pela polícia de Nova York, Sergei é um fantasma nos registros públicos. Ninguém com seu nome, ou qualquer variação do mesmo nome, viveu em Manhattan por anos, e os outros dois únicos Krivov listados no Estado de Nova York não retornaram às ligações da reportagem que perguntavam se eles conheciam alguém com o nome Sergei (nos arquivos da polícia de Nova York, o nome Sergei não é transliterado como "Sergei" ou "Sergey", mas como o menos comum "Cergej"). Nenhum dos nomes listados, no entanto, tinha relação com o sobrenome Krivov.

    Porém, quando o BuzzFeed News visitou o endereço de Sergei listado nos arquivos da polícia de Nova York (11 E. 90th St.), descobriu que este endereço não era de uma residência. Na verdade, é de um edifício de escritórios de propriedade do Smithsonian que está localizado uma quadra atrás do consulado russo.

    Questionada sobre a discrepância, a polícia de Nova York disse que o endereço de Sergei havia sido informado por pessoas do consulado russo. "Não mora ninguém aqui, estou falando no momento da minha própria mesa", disse um funcionário da Smithsonian no endereço quando o BuzzFeed News telefonou.

    Não está claro quão bem ou por quanto tempo o Departamento de Polícia de Nova York investigou a morte de Sergei. Vários funcionários do órgão se recusaram a oferecer qualquer detalhe sobre a investigação. Outros disseram ao BuzzFeed News que o caso foi classificado como "encerrado".

    "A narrativa da história é meio vaga, não diz muita coisa", disse um policial, analisando o relatório de incidentes. "Todos os casos como este são investigados", disse ele. "Mas, por alguma razão, este foi encerrado." Um outro disse que o caso foi listado como não tendo "nenhuma criminologia suspeita, causas naturais."

    O consultório do médico legista de Nova York, no entanto, diz que sua investigação sobre a morte de Sergei permanece aberta. "A causa e a forma em que se deu a morte estão pendentes e precisam de novos estudos", disse Julie Bolcer, porta-voz do consultório. "Ainda não há resultados para compartilhar."

    Essa desconexão entre o consultório do médico legista e a Polícia de Nova York não é normal. Na prática-padrão, uma investigação de morte não seria formalmente encerrada até que o médico legista tivesse chegado a uma conclusão sobre a morte.

    "Deve haver um circuito completo no caso," disse Marq Claxton, ex-investigador da Polícia de Nova York. "O caso deve ficar aberto até que haja uma determinação final, pois pode ser um homicídio, pode ser acidental ou qualquer outra coisa."

    Outro médico legista disse que o corpo de Sergei tinha sido liberado um dia após a sua morte, mas se recusou a dizer para quem. Como os testes continuam, é provável que esteja ocorrendo uma triagem toxicológica de amostras de tecido ou de sangue do corpo.

    Não é incomum que os resultados de testes de toxicologia levem semanas, ou mesmo meses, para serem concluídos. (O consultório do médico legista não especificou o tipo de exames que estão sendo feitos.)

    Nenhuma das cinco principais capelas de funeral ou casas funerárias em Upper Manhattan conhecia qualquer pessoa recentemente falecida chamada Sergei. O New York City Health Department (Departamento de Saúde da Cidade de Nova York) recusou a solicitação do BuzzFeed News de uma busca nos registros relacionados à morte de Sergei, dizendo que qualquer pesquisa deveria ser solicitada por um membro da família. O escritório funerário da cidade, que rastreia a documentação das casas funerárias, disse que só arquiva a papelada e não tem um banco de dados pesquisável.

    A polícia de Nova York negou o pedido feito pelo BuzzFeed News para ver o relatório do incidente, dizendo que o pedido não continha detalhes suficientes, incluindo a data, o recinto e a localização da morte de Sergei, ou o número do incidente. O pedido do BuzzFeed News incluía todas essas informações. Uma negativa separada disse que o relatório do incidente "não é um registro público e só pode ser obtido por meio do devido processo legal (Court Ordered Subpoena)".

    De acordo com especialistas e ex-policiais, a leitura de relatórios geralmente não é negada pela Polícia de Nova York. "O relatório de um incidente, após a investigação ser encerrada, normalmente é liberado", disse Michael Morisy, fundador da MuckRock, organização sem fins lucrativos dedicada a cobrar transparência do governo. "É muito estranha essa rejeição por parte da polícia... relatórios não estão totalmente isentos da lei de registros públicos."

    Em um último esforço para descobrir para onde o corpo de Sergei pode ter sido levado, o BuzzFeed News ligou para a companhia aérea Aeroflot, a única grande operadora com voos diretos entre Nova York e Moscou. A Aeroflot não pode dizer se transportou um corpo de Nova York para a Rússia nos dias que se seguiram ao 8 de novembro. A informação sobre transporte de corpo, disse a empresa, é confidencial e só pode ser liberada por uma entidade governamental.

    Enquanto a polícia ia para o consulado russo no dia 8, assistia-se a um pico de interesse entre americanos em relação a Moscou muito similar ao da época da Guerra Fria. Tal interesse foi alimentado pela divulgação quase constante por parte da inteligência dos EUA de que havia uma operação russa visando minar as eleições nos EUA.

    É óbvio que Sergei, que já estava se aproximando da reta final da curva de mortalidade dos homens russos, pode ter morrido de causas completamente naturais. Também é possível que grande parte da dificuldade em saber dos detalhes sobre o incidente seja devido à burocracia, em vez de circunstâncias suspeitas.

    No entanto, dadas as circunstâncias únicas e o pano de fundo das relações entre os EUA e a Rússia, a falta de informações tem feito pouco para conter as teorias. Quanto mais perguntas eram feitas sobre Sergei, menos pessoas queriam falar. "Ninguém parece querer discutir isso", disse uma fonte do BuzzFeed, depois de entrar em contato com outros agentes da lei para ver o que eles tinham ouvido sobre o caso.

    Nas horas seguintes à morte de Sergei, a polícia de Nova York disse que identificaria o homem encontrado após notificar a família. Quando o BuzzFeed News pediu a informação sobre sua identidade meses depois, a polícia imediatamente disse que o pedido teria de ser feito por meio do Departamento de Estado dos EUA.

    O Departamento de Estado, depois de ser inicialmente aberto às perguntas, disse abruptamente ao BuzzFeed News que não ajudaria e que a informação deveria vir do consulado russo.

    “Ninguém parece querer discutir isso.”

    Mais tarde, um funcionário da polícia de Nova York finalmente deu o nome de Sergei Krivov ao BuzzFeed News.

    O incidente e a falta de informações em torno dele levantaram suspeitas em Washington.

    Duas fontes com quem o BuzzFeed News falou, que pediram anonimato, disseram que Sergei parecia ser alcoólatra, o que levou a polícia a concluir que essa seria a causa natural de sua morte. "Eu não acho que haja nada de estranho no caso", disse um oficial da inteligência dos EUA.

    O Departamento de Estado também se recusou a dizer se Sergei estava registrado como agente estrangeiro, há quanto tempo ele estava nos Estados Unidos, qual era seu status migratório e se eles tinham algum contato com a missão russa em relação à sua morte.

    Quando perguntado sobre o incidente, a porta-voz do Ministério Russo de Relações Exteriores, Maria Zakharova, disse: "Vocês estão falando sério?". E continuou: "Ele tinha problemas cardíacos, ele teve um ataque cardíaco. É estranho que o seu canal esteja interessado nisso".

    "O funcionário do Consulado Geral da Rússia, Sergei Krivov, faleceu em 8 de novembro de 2016", disse o consulado ao BuzzFeed News. "Um médico americano que foi admitido no Consulado Geral afirmou, sem dúvida, que a morte foi por razões naturais. Médicos legistas estão atualmente trabalhando na causa da sua morte, mas acredita-se que o homem tenha sofrido um ataque cardíaco."

    O FBI disse que não está envolvido na investigação da morte de Sergei e se recusou a tecer mais comentários. Já a Polícia de Nova York não fez nenhum comentário oficial sobre a investigação ao BuzzFeed News, apesar da insistência da reportagem.

    O lugar onde Sergei trabalhava, um composto de pedra palaciano no elegante Upper East Side de Manhattan, foi no passado um dos primeiros pontos na guerra de espionagem entre os EUA e a Rússia.

    De acordo com documentos do tribunal do FBI, o braço estrangeiro do serviço de inteligência russo, o SVR, provavelmente mantém um escritório dentro do consulado de Manhattan onde Sergei trabalhava.

    Em documentos criminais arquivados contra Evgeny Buryakov, Igor Sporyshev e Victor Podobny, três agentes secretos de inteligência russos que trabalhavam em Nova York, o gabinete descreveu "um escritório seguro em Manhattan usado por agentes SVR para enviar e receber relatórios de inteligência e atribuições de Moscou (o 'SVR NY Office'). "

    A queixa criminal não diz especificamente que o "SVR NY Office" está no consulado de Manhattan, mas o documento diz que ele está "localizado dentro de um escritório mantido pela Federação Russa em Nova York".

    Não é segredo, dizem os serviços de inteligência dos EUA, que o consulado é um ponto de encontro para operações de inteligência russas. É também um alvo cobiçado para os agentes dos EUA. E sua importância, segundo as autoridades, foi ressaltada quando as agências de inteligência norte-americanas investigaram a operação dos russos para manipular as eleições norte-americanas.

    Em um relatório sem precedentes publicado no início de janeiro, na véspera da posse de Trump, a comunidade de inteligência descreveu detalhadamente o esforço russo para manipular e minar as eleições norte-americanas. A chave para a avaliação da comunidade de inteligência era uma infinidade de canais de inteligência, incluindo inteligência de sinais, ou SIGINT, como comunicações eletrônicas ou endereços IP interceptados. Os detalhes sobre de onde aquele SIGINT veio e no que consistia permanecem secretos.

    O BuzzFeed News apresentou um pedido da FOIA (Freedom of Information Act) à Polícia de Nova York solicitando o relatório sobre a morte de Sergei e qualquer documento relacionado. Esse pedido foi recebido, mas ainda não foi decidido se o departamento irá fornecer o solicitado.

    Talvez esses documentos nos deem alguma visão dessa morte que, por enquanto, permanece um mistério. O dia 8 de novembro começou com uma morte e terminou com uma das mais polêmicas crises políticas da história americana. Depois disso, Sergei Krivov simplesmente desapareceu. ●

    Este post foi traduzido do inglês.

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