"Nasce Uma Estrela" resolveu a crise de identidade musical de Lady Gaga

Interpretando o papel de Ally, ela lembrou a todos do que é capaz e provou que sua própria estrela ainda está em alta. Atenção: contém spoilers do filme.

Jeff Spicer / Getty Images

O processo de levar o estrelato pop para o sucesso cinematográfico é uma tarefa delicada, até perigosa. Madonna nunca conseguiu muito bem, Mariah Carey se tornou motivo de piada quando tentou e Beyoncé, Britney e Christina não foram muito longe com isso. Mas Lady Gaga, no papel de uma artista novata em "Nasce uma Estrela", parece ter conseguido.

O desempenho de Lady Gaga como Ally já está recebendo ótimas críticas e até há rumores de possa levar um Oscar. A música tema do filme, "Shallow", dueto que fez com seu par romântico nas telas (e diretor do filme) Bradley Cooper, tem subido nas paradas desde que foi lançado na sexta-feira passada, e agora é parte do álbum da trilha sonora completa. Gaga, consequentemente, é agora uma estrela maior do que nunca; ela está dominando o espírito da época novamente, de volta a um ponto que lembra a era inicial e icônica do vestido de carne.

"Nasce Uma Estrela" é a história da ascensão de uma cantora, paralelamente ao declínio do seu amado: ela já foi contada no filme original de 1937, estrelado por Janet Gaynor e revisada duas vezes. A primeira em 1954, com Judy Garland como estrela, e mais recentemente, na atualização roqueira de Barbra Streisand, em 1976. Isso sempre foi, como escreve Rachel Syme em sua recente entrevista com Gaga para o New York Times Magazine, não apenas um romance ou um conto de estrelato, mas também "um filme sobre uma mulher que já era super famosa fazendo um filme". Os filmes trabalham com as imagens já existentes de suas estrelas.

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Gaga é um tipo de estrela complexa, multifacetada, que o filme não sabe bem como retratar mas, através da força de seu talento, nós acreditamos no estrelato de Ally mesmo assim. 

Cooper escolheu Gaga depois que a ouviu cantar ao vivo pela primeira vez, interpretando "La Vie En Rose", durante um concerto beneficente privado; há também imagens dele aplaudindo ela de pé, durante sua famosa interpretação de "Sound of Music", no Oscar de 2015. Tanto ele quanto Gaga disseram que o filme foi então construído ao redor do relacionamento deles nos bastidores. O roteiro de Cooper incorporou a herança ítalo-americana de Gaga (uma formação que eles compartilham), e a música que a personagem dela canta parece encarnar as personas de Gaga de duas de suas épocas mais recentes: Gaga na época de "Cheek to Cheek", seu projeto jazz de 2014 com Tony Bennet, e durante "Joanne", seu álbum de rock retrô de 2016, que nunca chamou atenção em um cenário pop contemporâneo dominado pelo hip-hop. No universo imaginado do filme, no entanto, sua persona tipo "Joanne" a lança para o estrelato quase que literalmente da noite para o dia.

Como Kris Kristofferson na versão de Streisand, o Jackson Maine de Cooper é supostamente uma estrela do rock das antigas, do tipo que não existe mais. (O personagem foi inspirado, em parte, em Eddie Vedder, do Pearl Jam, porém as músicas foram produzidas ou escritas pelos colaboradores habituais de Gaga, Mark Ronson and Lukas Nelson.) Enquanto isso, Gaga como Ally primeiro encontra a fama cantando uma balada rock com Jackson antes de seguir uma trajetória pop, quase uma inversão de sua carreira na vida real. O contraste fornece um poderoso subtexto para o desempenho de Gaga, e ajuda a explicar porque isso está ajudando ela a se conectar de novo com o público.

Não é por acaso que este último "Nasce uma Estrela" é influenciado especialmente pela versão de Streisand e o roteiro trafega em alguns dos gêneros binários de estilo dos anos 70: de rock versus pop e o autêntico versus o falso. No filme, Cooper e Gaga criam um mundo tradicional, no qual o rock ainda pode tornar alguém famoso e baladas românticas cantadas ao piano são, de alguma forma, mais legítimas do que subir no palco como um diva pop espetacular, totalmente coreografada. As experimentações de Gaga com o retrô americano em "Joanne" não tiveram sucesso com o público pop na vida real, mas o mundo imaginário de "Nasce Uma Estrela" oferece uma espécie de segunda chance para ela se conectar com os espectadores: agora podemos ver suas habilidades em uma luz diferente. E ainda que o filme não esteja tão interessado na visão artística de Ally ou nos desejos além das ideias que Jackson tem a respeito dela ele ainda gira em torno do talento de Gaga como compositora e intérprete.

As duas estrelas, real e fictícia estão unidas em um interessante relacionamento simbiótico. Gaga é um tipo de artista pop complexa, multifacetada, que o filme não sabe bem como retratar mas, através da força de seu talento, nós acreditamos no estrelato de Ally mesmo assim. E interpretando este papel, Gaga tem lembrado a todos do que ela é capaz e provado que sua própria estrela ainda está em alta.

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Stephen Lovekin / FilmMagic

Lady Gaga em 2009.

Depois de explodir em 2009 com o lançamento de "The Fame Monster", Gaga se tornou rapidamente uma das maiores estrelas do pop mundial. Seus sucessos, incluindo "Paparazzi", "Poker Face", e "Telephone", eram músicas de dance-pop fáceis, que também ofereciam comentários sobre a fama e gênero, ideias apresentadas explicitamente em seus visuais ousados e criativos. Ela era uma autointitulada "aberração", enquanto canta em "Bad Romance" uma estranha, uma "mãe monstro" para seus fãs, sempre codificados como homossexuais, o que deu a ela um selo subcultural que se concretizou com "Born This Way".

O terceiro álbum de Gaga, "Artpop", foi amplamente considerado um fracasso comparado aos seus sucessos anteriores. Quando começou a perder sua força comercial, Gaga desceu da escada rolante do pop em 2014 com "Cheek to Cheek", um projeto de sucesso que finalmente demonstrou sua versatilidade musical e a apresentou para um novo público, mais velho. No ínterim, o pop foi se tornando mais especificamente particular e o particular era político. Beyoncé, por exemplo, mudou para letras íntimas sobre amor e infidelidade, que se tornaram declarações sobre a feminilidade negra e cativou o espírito da época. Gaga voltou com um bom álbum de estúdio em 2016, "Joanne", anunciando que estava se despindo e apresentando a pessoa "real" por trás dos vestidos de carne e das perucas.

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A narrativa da celebridade de Gaga sempre foi sobre uma espécie de universalidade na diferença: todo mundo pode ser uma estrela e a identidade é sempre mutável. 

A virada do álbum para o pessoal foi inspirada pela história da família dela e por uma falecida tia, mas a conexão não funcionou muito bem. A narrativa da celebridade de Gaga sempre foi sobre uma espécie de universalidade na diferença: todo mundo pode ser uma estrela e a identidade é sempre mutável. Repentinamente, confrontada com a necessidade de ser específica e intimista, ela voltou para a nostalgia americana. A sonoridade do álbum procurou despertar a autenticidade por meio de uma conversão um tanto convencional para o passado musical, especificamente para os idiomas do rock dos anos 60, 70 e 80.

A narrativa de "Joanne" não tinha a ressonância cultural da Gaga anterior, mais deliberadamente estranha e com os comentários provocativos sobre a fama, o que começou a parecer curioso na era dos reality shows, ou seu uso da homossexualidade como uma metáfora para a estranheza. Gaga também teve dificuldades de encontrar um lugar para as músicas do álbum no rádio e na cultura contemporâneos, em parte por causa da ideia do rock como gênero popular para comentários políticos ou a profundidade do cantor e compositor que há muito tempo perdeu o capital cultural, exatamente a mudança que faz com que o Jackson Maine de Cooper em "Nasce Uma Estrela" pareça ter sido transportado de uma outra época.

Mesmo assim, a mitologia do álbum foi aceita pelos fãs de Gaga, e ele finalmente foi platina. A balada “Million Reasons” reavivou o álbum e acabou entre os 5 maiores sucessos, depois de ela apresentá-la em um momento minimalista ao piano, em sua retrospectiva dos principais sucessos, no show do Super Bowl, no ano passado. O público reagiu àquele tipo de performance simples, e esse é o tipo de performance na qual "Nasce Uma Estrela" acredita. O filme recompensa Ally, a personagem de Gaga no filme, pela suposta sinceridade e profundidade de cantar sem nenhuma frescura. A celebração da "autenticidade" como não espetacular é a espécie de sabedoria popularsobre a música pop que a anterior carreira de Gaga contestava.

Mas o filme faz com que as performances vocais naturais de Ally sejam importantes para o seu carisma. Através de Ally e do universo do filme, Gaga recuperou suas recentes fases retrô para um público pop, e criou ainda outra renovação de sua carreira na vida real, desta vez, como uma estrela de cinema.

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Clay Enos / Warner Bros.

Bradley Cooper e Lady Gaga em Nasce Uma Estrela.

Durante a primeira metade do filme, enquanto Jackson se apaixona por Ally, o público se apaixona por ela também. Maine bateu os olhos em Ally pela primeira vez enquanto ela cantava uma versão de "La Vie En Rose" em um bar gay. O cenário foi ideia de Gaga, e se torna uma forma eficiente de infundir no filme o estranho selo subcultural pelo qual ela se tornou famosa no início de sua carreira.

Ally se descobre uma artista, enquanto se apaixona por Maine e acaba escrevendo músicas num estilo que se encaixa no jeito dele. Um dos primeiros auges emocionais do filme surge quando Maine convida Ally ao palco para cantar uma canção que ela escreveu inspirada no romance deles, um dueto chamado “Shallow.” Uma forte balada de rock, que Gaga escreveu, soa como uma mistura de “Million Reasons” e do título nostálgico da música de "Joanne", e que se torna o hino inesquecível do filme, com mais de 14 milhões de visualizações no YouTube até agora.

A música encapsula de muitas maneiras as questões do filme, e as visões que os personagens têm um do outro. Em suas próprias letras, Ally quer suavizar o personagem masculino em sua vulnerabilidade. "Não é difícil manter isso tão intenso?" ela pergunta. As letras iniciais de Jackson, "Me diga uma coisa garota / Você é feliz neste mundo moderno?" são uma espécie de projeção de nostalgia e inocência feminina sobre ela, uma visão que permeia o filme.

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Neal Preston / Warner Bros.

Uma cena de "Nasce Uma Estrela".

Uma vez que Ally é lançada por sua musica se tornar viral no YouTube, nunca tivemos uma noção real da perspectiva dela sobre sua própria música. Antes de cantarem juntos “Shallow”, o que a leva ao estrelato, Ally conversa com Maine sobre como os executivos das gravadoras disseram que ela não era bonita, e o amor dele pelo nariz “étnico” dela se torna parte da conexão entre eles. Nós identificamos todas estas coisas nas lutas da vida real de Gaga, das quais ela tem falado durante toda sua carreira. Mas depois que sua estrela começar a brilhar, e ela começa a escrever e interpretar canções pop, a maneira como Ally trabalha isto através da sua música e imagem, não faz parte da história do filme.

Esta, decididamente não é uma narrativa pop-star contada do ponto de vista feminino como, por exemplo, "Nos bastidores da fama" de Gina Prince-BytheWood, ou "Vox Lux", de Brina Corbet, estrelado por Natalie Portman (em que o personagem principal foi realmente inspirado em Lady Gaga). Paradoxalmente, não há espaço no universo do filme para a Gaga meta-pop star provocativa. Até mesmo o nome Ally, que também é o nome do álbum auto-intitulado da personagem, evoca o estrelato mais direto de alguém como a Britney, no começo da carreira.

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Sabemos que foi Gaga quem escreveu esta música e que, em sua própria carreira, ela nunca desempenhou o papel de ser solidária a ninguém.

Enquanto Ally se prepara para lançar seu álbum de estreia, Maine fica constantemente alertando que ela tem que mergulhar fundo na alma se quiser ter sucesso, como se ela ainda não estivesse fazendo isso. Há algumas insinuações sobre Ally não querer "se vender" — ela se recusa a pintar o cabelo de loiro platinado (ao invés disso ela prefere um laranja agressivo, como se fosse uma espécie de meio-termo) ou cantar com dançarinas coreografadas, mas o filme nunca abrange realmente sua música pop. As duas músicas pop que ouvimos, uma com letra centrada em bunda, que Jackson zomba, são as músicas menos marcantes no filme. Mas, mais importante, eles não conseguem um grande momento, no estilo "Shallow", onde, tanto o público que assiste o filme quanto o público no universo do filme, deveriam se apaixonar por eles.

Na cena final, depois da morte de Maine, Gaga ressurge, em um modesto vestido sem alças, com seu cabelo castanho-claro natural, para cantar uma balada clássica dos anos 90, no estilo Whitney, “I’ll Never Love Again.” Ela canta a última canção que ele escreveu para ela, em uma homenagem para Maine, sua visão agora totalmente misturada com a dele. Depois de ter se transformado em uma estrela pop vestindo um macacão deslumbrante, ela parece ter voltado para uma versão mais “real” de si mesma: a cor natural do cabelo, a balada, o vestido de bom gosto. E este é o outro momento no filme, onde, como durante “Shallow”, ficamos encantados com todo o poder de Gaga como artista performática.

Mesmo que ela esteja desempenhando o papel de esposa solidária e em luto, sabemos que foi Gaga quem escreveu esta música e que, em sua própria carreira, ela nunca desempenhou o papel de ser solidária a ninguém. Nos momentos finais da cena do show, Ally olha diretamente para a plateia, e vemos a interação complexa de todas as camadas desta performance: Stefani Germanotta, que se transformou em Lady Gaga, interpretando Ally, que está cantando para a plateia, enquanto nós, sentados no cinema, testemunhamos tudo isso. Sabendo que esta é mais uma encarnação do projeto de arte performática conhecido como Lady Gaga, podemos eliminar qualquer descrença ou dúvida que possamos sentir em relação a Ally, e vê-la como uma estrela mais complexa do que a que está escrita no papel.

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Jacopo Raule / GC Images

Lady Gaga no Festival Internacional de Cinema de Veneza, em agosto de 2018.

A promoção de "Nasce Uma Estrela", de Gaga, trouxe de volta algumas de suas narrativas “minimalistas” da época de "Joanne". Ela gerou manchetes por recontar uma cena em que Cooper removeu a maquiagem dela com um lenço, antes de seu teste para o filme, porque ele queria que ela estivesse “completamente aberta, sem artifício". Uma reação já em formação sobre a ideia de que Gaga, livre de maquiagem, é de alguma forma mais "autêntica". Parte da reação é apenas sobre o gesto ostensivamente invasivo de Cooper. Mas, definir a maquiagem como algo falso é indiscutivelmente uma visão "anti-femme" da verdade, outro aspecto do olhar masculino que adota visões conservadoras da inocência feminina. E, de certa forma, essa visão revela a trajetória e o estilo do personagem de Gaga, Ally, no universo do filme.

Mas, na vida real, Gaga nunca esteve disposta a escolher uma faceta de sua própria imagem: ela experimenta várias diferentes, as alterna e faz combinações. Ela fez isso durante toda a sua turnê promocional, desde a placa de identificação na conferência de imprensa que a identificava como "L. Gaga", até sua chegada de pernas cruzadas, de vestido, na estreia do filme em Veneza, foi como uma performance em estilo Gaga sobre o estrelato do cinema. Quando perguntada sobre qual seria sua próxima fase, ela suspirou e disse: "Oh, eu estou só mudando de forma novamente."

Nasce Uma Estrela faz a música de Gaga parecer contemporânea, de uma maneira que não é exatamente verdadeira fora do filme. Através deste papel em um filme romântico à moda antiga, Gaga renovou sua celebridade de uma forma que sua própria tentativa de rock retrô não conseguiu. Usando brilhantemente o prestígio de seu estrelato pop para um papel de filme nu e cru, Gaga tem a faca e o queijo na mão, com uma pitada de astúcia, e nos lembra que ela ainda pode transformar o mundo inteiro em um palco para si. ●

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A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Susana Cristalli.

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