Livro faz inventário das atrocidades que a ditadura praticou contra os índios

    Assassinatos, mortes por epidemias e fome, deportações e trabalho escravo compuseram mosaico da devastação de etnias de Norte a Sul no país.

    Recém-lançado pela Companhia das Letras, o livro "Os fuzis e as flechas - história de sangue e resistência indígena na ditadura", do jornalista Rubens Valente, é um inventário de atrocidades praticadas pelo Estado brasileiro, ou com a cumplicidade deste, contra as populações indígenas durante o regime militar (1964-1985).

    Com base em documentos e depoimentos de sobreviventes e ex-funcionários do governo, a obra reconstitui assassinatos, mortes por epidemias e fome, deportações, trabalho escravo e tortura de índios.

    Um dos vetores das matanças de índios foram as obras faraônicas do governo militar ou a expansão das fronteiras agropecuárias no Norte e no Centro-Oeste, que resultaram em deslocamentos forçados de etnias para áreas distantes de suas terras originais onde mais tarde eram deixados à própria sorte e morriam à míngua.

    Uma dessas deportações foi a dos Xavante de Marãiwetsede (em Rondônia). Sob ordem do Ministério da Aeronáutica, 54 índios foram removidos em um avião da FAB.

    “Foram aglomerados e o sargento passou em volta deles um único cinto”, relatou o padre Mario Ottorino Panziera, salesiano que atuava na região. Eles foram colocados junto com os Kayabi, que já estavam no Xingu.

    A terra de Marãiewtse sofreu uma forte exploração madeireira e deu origem a dois centros urbanos. Remoções forçadas também atingiram etnias de estados como Amazonas (Waimiri-Atroari), Mato Grosso (Panarás), Rondônia (Cinta-larga) e outros.

    Entre as rodovias que foram construídas cruzando áreas indígenas estão a Transamazônica e seus ramais e a BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, e a BR-080, que corta o Parque do Xingu, no Mato Grosso.

    “Havia uma ordem geral de fazer essas obras, custasse o que custasse”, disse o autor, em entrevista ao BuzzFeed Brasil.

    Em outra variante às deportações, houve devastação de comunidades, com a morte de dezenas de pessoas, após o contato com homens brancos infectados com gripe e sarampo, doenças comezinhas para as quais indivíduos de comunidades antes isoladas não tinham defesas naturais.

    No caso dos Xavante de Marãiewtse, o sarampo chegou após a remoção, em 1966. A epidemia se espalhou, embora já houvesse a vacina. Em entrevista ao autor do livro em 2015, um indígena que sobreviveu ao surto e em 2015 estava com 85 anos, contou que morreram cem pessoas.

    “Muitos perguntam se houve um genocídio dos índios. Não acredito que o governo militar tenha planejado. Mas, na prática, foi o que aconteceu. Houve etnias que perderam 80% de sua população”, disse Valente, que é repórter do jornal Folha de S.Paulo.

    A Comissão da Verdade estimou em 8.000 o número de índios mortos pela ditadura militar. O livro de Valente alcança a casa das centenas, que podem ser efetivamente documentadas ou reconstituídas a partir de depoimentos.

    A censura foi o instrumento que permitiu que a ditadura controlasse muito bem o desastre. Nos jornais da época, as mortes de índios eram um "não-assunto", registradas esporadicamente em pequenos ecos ou notas herméticas.

    O TRONCO E O "EMPRÉSTIMO" DE SERES HUMANOS


    Mais de oito décadas após a Abolição (1888), em pleno século 20, os índios ainda eram tratados como escravos por servidores do Estado brasileiro. Em alguns pontos do país, sofriam torturas no tronco e eram aprisionados em celas minúsculas, onde só cabiam acocorados.

    Os índios chegavam a ser emprestados a fazendeiros por funcionários do órgão que existia para (teoricamente) defendê-los, o SPI (Serviço de Proteção ao Índio, antecessor da Funai).

    As mulheres indígenas também sofriam abusos. Elas deixavam de ter filhos porque seus bebês morriam de desnutrição. Como tinham de trabalhar, elas eram impedidas de amamentar as crianças, que só tomavam um mingau de milho.

    Embora esses casos tenham sido denunciados em uma investigação feita durante a ditadura, o chamado “Relatório Figueiredo” (1968), ninguém foi preso.

    “As punições eram [somente] administrativas”, conta o autor.

    AS VINHAS DA IRA

    Em casos isolados, os índios também se rebelaram, como no episódio do ataque dos cinta-larga a um destacamento da FAB (Força Aérea Brasileira) em Vilhena (RO), quando mataram a flechadas um empregado dos Correios, em 1966.

    Outro levante ocorreu na divisa de Minas e Bahia, quando os Maxacali, em estado de miséria, começaram a matar o gado dos fazendeiros. Segundo relatos de um agrônomo da época, 30 índios fabricaram arcos e flechas envenenadas.

    Uma das faces mais conhecidas do ativismo dos índios por seus direitos é a do cacique guarani-nhandevá Marçal de Souza, o Tupã-í, de Mato Grosso do Sul.

    Marçal denunciou a partir dos anos 1970 a situação dos indígenas no país. Em 1980, Marçal foi escolhido para ser recebido pelo papa João Paulo II, que estava em visita no Brasil.

    O cacique fez um discurso contundente para o papa: “Dizem que o Brasil foi descoberto. O Brasil não foi descoberto, não. O Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Essa é a verdadeira história”.

    Marçal vivia na terra indígena de Cerro Marangatu, no município sul-mato-grossense de Antônio João (fronteira com o Paraguai). Perto dali, os guaranis reivindicavam 2.300 hectares da terra indígena Pirakuá, numa região de conflito com o fazendeiro Líbero Monteiro de Lima, que tentava retirá-los dali.

    Tentativas de suborno da liderança dos índios e intimidação para que abandonassem o local fracassaram.

    O desfecho foi sangrento. Na noite de 25 de novembro de 1983, com a ditadura já nos seus estertores, Marçal foi emboscado e morto com cinco tiros.

    Líbero e seu funcionário, Rômulo Gamarra, chegaram a ser acusados pelo crime. Rômulo chegou a ser preso preventivamente em maio de 1984 que a polícia apreendeu em seu carro um revólver do qual, segundo comprovou a perícia, partiram os disparos. Rômulo obteve um habeas corpus três meses depois e jamais voltou a ser visto, com ou sem vida.

    O desaparecimento de Rômulo e uma séria falha na investigação – o laudo cadavérico não fez o registro oficial a apreensão dos projéteis no corpo de Marçal que permitiram a comparação com a arma do crime – favoreceram a defesa do fazendeiro, que desmontou a acusação. Sem o elo entre o acusado e o crime, Líbero foi absolvido em 1993.

    O Ministério Público conseguiu um novo julgamento em 1998, mas o fazendeiro saiu livre novamente.

    O livro de Rubens Valente tem seu foco no período da ditadura militar, mas assassinatos de índios jamais tiveram fim naquela região.

    Em 2005, o guarani Dorvalino Rocha foi morto por seguranças privados de uma fazenda. Em 2015, Simeão Fernandes Vilhalva foi morto a tiros num outro confronto com fazendeiros no mesmo município de Antônio João.

    Separados por três décadas, os assassinatos de Marçal, Dorvalino e Simeão se entrelaçam pela geografia – um raio de menos de 20 km de distância –, pelos propósitos – disputas por terras jamais encerradas pela Justiça – e pela impunidade – ninguém foi responsabilizado penalmente por nenhuma destas mortes.

    “Os fuzis e as flechas: história da resistência indígena na ditadura” custa R$ 69,90.

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