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Foi assim que a Cultura, maior livraria do país, beijou a lona

Como um pequeno negócio familiar virou um colosso varejista e, depois, foi sufocado por dívidas e maus negócios. Além da crise financeira, a Cultura enfrenta agora uma crise de reputação com alegações pesadas de assédio contra funcionários.

Maior livraria do país, a Cultura beijou a lona em outubro do ano passado, deixando em aberto uma dívida de R$ 285 milhões com mais de 4.500 credores e espalhando incerteza em todo o ecossistema composto por autores e editores de livros do país.

Nos documentos protocolados na 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, há um longo catálogo de dívidas trabalhistas, editoras de todos os portes que abasteceram as prateleiras da Cultura e não conseguiram receber e bancos que foram financiando o endividamento galopante do grupo comandado pela família Herz nos últimos anos.

Dos 20 maiores credores da Cultura, seis são bancos (R$ 45 milhões) e três são firmas que alugam prédios para as livrarias (R$ 43 milhões). Há ainda fornecedores de equipamentos de informática, de mídias de música e filmes (Som Livre, Warner/Sony) e uma seguradora.

Chama a atenção que neste grupo de maiores credores haja somente quatro editoras de livros (R$ 16,2 milhões). A Companhia das Letras, por exemplo, tem R$ 7,5 milhões no espeto. A maior fornecedora de livros para a Cultura tem a receber menos de um sexto dos papagaios do grupo retidos pelos bancos.

Considerando o total da dívida (R$ 285 milhões), os débitos trabalhistas representam um montante relativamente pequeno: R$ 6,5 milhões (2,2%) pulverizados em mais de 1.500 credores, incluindo funcionários, ex-funcionários e escritórios de advogados que tentam receber honorários. Pela lei, dívidas trabalhistas devem ser pagas antes de fornecedores.

Destes credores trabalhistas, há 176 com valores entre R$ 10 mil e R$ 200 mil a receber; um grupo intermediário de 280 credores de montantes entre R$ 1.000 e R$ 10.000 e outros 1.100 credores de valores abaixo de R$ 1.000.

A lição da fundadora e os bancos

A história da Livraria Cultura está intimamente ligada ao turbulento século 20. O casal de judeus alemães Kurt e Eva Herz chegou ao Brasil em 1939, fugindo da perseguição na terra natal e da Segunda Guerra Mundial que eclodira naquele ano.

Radicada em São Paulo, a empreendedora Eva deu início a um pequeno negócio em 1947, a Biblioteca Circulante, um serviço de aluguel de livros em alemão destinado a imigrantes como ela. O empreendimento prosperou rápido e em 1950 se transformou em uma livraria, a Cultura, sediada num sobrado da rua Augusta (região central de São Paulo).

Em 1969, Pedro Herz, filho do casal, assumiu o negócio e logo depois mudou a sede da livraria para o icônico Conjunto Nacional, na avenida Paulista, onde até hoje funciona a principal loja do grupo. Foi sob o comando de Pedro Herz que a Cultura se transformou em um colosso com 17 lojas espalhadas pelo país com um catálogo de mais de 9 milhões de livros e 600 mil títulos em música e filmes.

No livro “O Livreiro”, Pedro Herz conta que o conselho mais precioso que recebeu de Eva foi que o lucro da livraria deveria ser continuamente reinvestido na própria livraria. A regra também atendia a um outro imperativo: aversão ao endividamento.

E foi precisamente a crescente dívida com os bancos que foi minando, pouco a pouco, o fluxo de caixa da maior livraria do país nesta década. Em 2014, a empresa que estava em franca expansão já devia R$ 90 milhões. Houve uma redução para R$ 56 milhões nos dois anos seguintes e uma alta da dívida para R$ 73 milhões em 2017 e um novo pico de R$ 89 milhões março do ano passado. Enquanto isso, a receita da Cultura foi caindo.

O grupo culpa a crise econômica iniciada em 2014 pelo endividamento. Como o país entrou em recessão durante o governo Dilma Rousseff, os preços finais ao consumidor se mantiveram estáveis e os custos de produção aumentaram. Mas isso é só parte da explicação. A empresa continuou investindo em expansão e pagando para ocupar imóveis cada vez mais caros (vide a sede da livraria no centro do Rio) enquanto o mercado se retraía.

2017, o ano da nova explosão da dívida, foi também o ano em que a Cultura adquiriu o site Estante Virtual, de venda de livros usados, e comprou a operação brasileira da multinacional francesa FNAC, que era deficitária no país. O plano era engolir um concorrente e aumentar a presença da Cultura no mercado de eletroeletrônicos.

A receita da Cultura vinha caindo entre 2013 e 2016 (de R$ 411 milhões para R$ 348 milhões naquele período). A compra da FNAC fez a receita da Cultura disparar e alcançar R$ 659 milhões em 2017. Mas era ouro de tolo: em 2018, a Cultura faturou somente R$ 404 milhões, um tombo de 39%. Em setembro de 2018, a empresa fechou 16 das 17 lojas que havia incorporado no ano anterior.

Em outubro, a Cultura bateu à porta da Vara de Falências. A consultoria Alvarez & Marsal foi designada administradora judicial, isto é, é o "olho" do juiz dentro da Cultura enquanto os gestores da empresa tentam levá-la de volta à solvência.

No último dia 12, 90% dos credores aprovaram o plano de recuperação judicial da Cultura. Em linhas gerais, os credores aceitaram a proposta de receber a dívida com até 70% de desconto em um prazo de até 12 anos.

As condições variam conforme categorias. Editoras que continuam fornecendo para a Cultura, mesmo depois da recuperação judicial, não terão desconto em seus créditos e receberão em até nove anos (três anos de carência e outros seis em valores parcelados).

Bancos aceitaram 30% de desconto e receber os 70% restantes do crédito após um ano de carência e em parcelas durante cinco anos. A dívida trabalhista deve ser quitada até o dia 16 de abril de 2020, quando faz um ano da homologação pela Justiça paulista do plano de recuperação judicial.

Crise de reputação

Além da recuperação judicial, a Cultura começou a enfrentar uma crise de gestão de imagem. Hoje (24) a empresa foi parar nos trending topics do Twitter por conta de um texto publicado no site Passa Palavra em que três pessoas se apresentam como ex-funcionários da Cultura e relatam anonimamente episódios de assédio moral, perseguição e desrespeito a direitos trabalhistas a que teriam sido submetidos.

Segundo o texto, os relatos se referem a episódios ocorridos entre 2013 e 2016. "Nesse dia [em fevereiro de 2016], quem tava fazendo essa reunião era o dono. E aí começou a merda: ele humilhou muita gente, ele elogiou muito o administrativo, por ter ficado trabalhando a madrugada toda, e ele humilhou muito o pessoal do piso de loja – os vendedores, os auxiliares de venda, os gerentes da loja… ele humilhou muito”, disse um dos anônimos. "Ele falou que a loja era um chiqueiro e que nós éramos porcos e que, já que a gente não tomava uma decisão, ele ia tomar uma decisão por nós: 'Quem não estiver de acordo com o que estou dizendo, pode passar agora no RH, eu vou pagar todos os direitos, eu faço questão de mandar embora!'. Ele repetiu três vezes isso. Só que isso era blefe, e ele não contava que quase a empresa inteira ia passar no RH.”

Outro anônimo descreveu casos de perseguição: "Chegou uma caixa de lápis de desenhar, lápis de cor, sei lá… Lápis legal, importado. Chegou com um valor muito barato, em promoção. E aí duas colegas, depois do expediente, passaram no caixa e compraram esse produto. No outro dia, elas tomaram uma justa causa. A livraria alegou que elas agiram de má-fé porque compraram um produto abaixo do valor que custava. Só que esse valor… primeiro que a gente não tem acesso, segundo que não é a gente que precifica. E a gente tinha direito. Se tá custando aquele valor, qualquer um tem direito de comprar, como qualquer consumidor ali, mas elas tomaram uma justa causa por má-fé. E o melhor foi o comentário da diretora do RH: É, vocês queriam ser mandadas embora, agora vocês vão, mas não do jeito que vocês queriam'."

Atualização (26/04/2019):

A Cultura divulgou nota nesta quinta (25) dizendo que os relatos de assédio moral que ex-funcionários descreveram anonimamente são "completamente distorcidos".

"As denúncias são anônimas, foram publicadas em um site que se define como 'anticapitalista', logo depois da aprovação do nosso plano de recuperação judicial. Os casos citados supostamente ocorreram anos atrás. Não temos como comentar algo que não se sustenta", diz a nota. Leia a íntegra aqui.

(Colaborou com a tabulação dos dados para esta reportagem o jornalista Marcelo Soares.)

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