Como meu namorado usou meu peso para me prender a ele

Meu ex me convenceu de que ele era especial porque celebrava meu corpo. Quando eu perdi peso, ele parou de me controlar.

Charlotte Gomez / BuzzFeed

Na época em que mais ganhei peso, minha foto de perfil era a Kate Winslet. Não me refiro à Kate Winslet de hoje, aos quarenta anos, em boa forma e com uma pele incrível que representa figuras de autoridade em sucessos de bilheteria. Estou falando da Kate Winslet dos anos 90, que não era gorda, mas certamente não era magra da forma que as estrelas de cinema deveriam ser; a Kate Winslet que falou abertamente de uma época em que era gorda; a Kate Winslet que se recusou a passar fome até ter clavículas expostas e se tornou uma heroína para mulheres como eu.

Claro, Kate Winslet é linda e de forma bem convencional. Mas as revistas sempre colocaram sua beleza junto ao fato de que ela não era magra. James Cameron, por exemplo, a chamava de “Kate Weighs-a-Lot” (algo como "Kate Bem Pesada", pois ela pesava cerca de 85 quilos!). Por isso, passei a acreditar que havia algo de especial em mim por escolhê-la, acima de todas as outras atrizes do mundo, como símbolo da aparência feminina e exuberante que eu poderia ser.

Meu namorado da época também a achava linda. Novamente, nada de excepcional; estamos falando da Kate Winslet. Mas ele achava que ela era muito, muito linda — a mulher dos sonhos dele, embora eu jamais dissesse isso em voz alta, sabendo que ele sentiria o tom vulnerável na minha voz, viraria os olhos e me acusaria de querer provocar uma discussão.

Minha lógica era: Ele achava que Kate Winslet era a mulher mais linda, e Kate Winslet não era magra, então, minha versão linda não precisava ser. Por isso, eu costumava ser grata por tê-lo na vida e, de fato, eu era. Por isso, acredito que ele era especial.

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Por que ela continuou com ele? Quando você está em um relacionamento abusivo, essa pergunta parece o gatilho para qualquer conversa sobre violência doméstica. Há diversos motivos pelos quais as pessoas se solidarizam: filhos, finanças, o fato de que as chances de ser assassinada aumentam 75% ao sair de casa.

Eu não tinha esses motivos. Não tínhamos filhos, eu tinha mais segurança financeira do que ele e, embora pudesse fazer sentido eu ter ter medo de que ele me mataria, eu não tinha. Meus motivos eram mais "tênues", digamos, o que os torna menos compreensíveis — a intimidade do trauma, a autoestima instável e o amor, ou o que achei que era amor.

A real ligação, no entanto, se dava pelo fato de ele ser especial. Essa era a palavra que usávamos. Na primeira vez em que tentei terminar com ele, a resposta que recebi foi: "Mas nós somos especiais". No nosso primeiro encontro, ficamos acordados a noite toda de mãos dadas na cama dele até as 4 da manhã, recitando orações não porque éramos religiosos, mas porque vimos o momento como uma genuína obra de arte só nossa: a paixão como um sacramento.

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Na primeira vez em que tentei terminar com ele, a resposta que recebi foi: "Mas nós somos especiais".

Quando você está em um relacionamento abusivo — ou quando você sou eu em um relacionamento abusivo — ter algo de especial é pré-requisito. Eu tive sorte de não ter violência na vida. Meu pai me bateu uma vez quando eu tinha cinco anos e, por isso, minha mãe o obrigou a receber aconselhamento profissional sobre como lidar com crianças. O abuso, então, nunca foi um padrão na minha trajetória. Meu caminho até ele foi outro.

Eu me sentia especial por ver no meu ex além do que as pessoas viam nele, ver a verdade, a pessoa que há por trás. Outra mulher poderia ter ido embora na primeira vez em que acordou com hematomas no braço, mas não eu. Eu era especial; nós éramos especiais.

Minha crença inabalável nisso foi o que manteve nosso relacionamento vivo. Muito além da vez em que ele ameaçou vir até o meu apartamento com um taco de beisebol, muito além da vez em que ele jogou um bolo que eu havia feito para ele na minha cara, muito além da vez em que ele me jogou no chão e muito, muito além da vez em que alguém me perguntou se ele já tinha batido em mim e a primeira coisa que me veio à cabeça foi "ainda não".

Eu acredito que ele era incomum por diversos motivos. Um dos motivos era a habilidade dele de achar meu corpo atraente, mesmo que eu fosse bem maior do que convencionalmente se julga bonito. Mais do que atraente — preferível. A aprovação dele geralmente vinha na forma de comparações com mulheres que achávamos bonitas: Kate Winslet, é claro, mas também a garçonete do nosso restaurante favorito, uma colega de trabalho dele e até mesmo uma mulher andando na rua. Seu corpo parece com o dela, dizia ele. Eu espiava, via uma mulher bonita, rechonchuda, e me sentia mais segura.

Era uma pena, segundo ele, que "alguns homens" — sem especificar quem — trocavam uma mulher que parecia comigo por uma mais magra, mais branca ou com menos pontas duplas. Eu era tão bonita quanto as mulheres que "alguns homens" corriam atrás, ele garantia, mas, por causa das coisas que me impediam de ser convencionalmente bonita, "alguns homens" jamais saberiam disso. Ele falava de mim como se eu fosse uma barganha escondida em algum lugar, que só alguém que fosse persistente, paciente e especial o suficiente poderia conquistar.

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Permita-me ser clara sobre como meu corpo não interferia no nosso relacionamento: Não é porque eu era gorda que eu não gostava de mim ou achava que merecia ser maltratada. Eu também não achava que eu ou qualquer outra mulher em um relacionamento abusivo era obrigada a se "conformar" por causa do seu peso e aceitar qualquer parceiro. Eu já era gorda antes, quando estava com um homem atencioso e bondoso que eu amava, e nunca passou pela minha cabeça que meu peso ia atrapalhar minha capacidade de atrair homens que me tratassem tão bem quanto ele.

No entanto, a ideia de que o peso poderia levar uma mulher a se acomodar com um parceiro inferior, para mim, era próxima da verdade. A verdade é que eu acreditava que éramos especiais e, meu peso, no meu conceito, era parte disso.

Eu sabia que, se terminássemos, eu poderia encontrar outra pessoa. Mas será que o desejo do meu novo namorado seria tão verdadeiro quanto o do meu atual? Será que ele ia gostar do corpo que tantas vezes me disseram que não era atraente — o corpo que o meu namorado dizia amar, sem hesitar, sem pensar duas vezes?

Um dos alertas conhecidos da violência doméstica é quando um homem critica a sua aparência. Meu ex nunca teve que fazer isso. O truque dele, que mascarava o abuso, era a ideia que ele, ele mesmo, não precisava criticar a minha aparência. Independente da atitude de vale tudo dele em atacar todo o resto da minha vida — meus amigos, a dinâmica da minha família, o dinheiro que eu ganhava, a música que eu ouvia — ele jamais fez um comentário negativo sobre o meu corpo. Nunca.

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Hoje eu vejo como ele era calculista. Ele tinha uma carta na manga.

Ele ponderava e decidia não fazer isso. Eu sei porque, em uma Daquelas Noites — aquelas batalhas que vão noite adentro, o que é o máximo que posso dizer a respeito do meu mundo naquela época —, ele soltou um: "E o seu corpo— ", e depois parou abruptamente para nunca mais tocar no assunto. Naquela época, sua recusa em cruzar aquela linha parecia amor para mim. Hoje eu vejo como ele era calculista. Ele tinha uma carta na manga.

Junto ao mito da beleza convencional, há um efeito colateral: Nós esperamos que as mulheres não gostem dos seus corpos. Meu ex contava com o nosso conhecimento comum — que corpos como o meu não eram considerados belos pela sociedade — para me lembrar que eu tinha sorte de ter alguém como ele.

Teria sido mais fácil, mais simples, criticar meu corpo diretamente, mas ele sabia que havia um grande risco de isso dar errado. Ele era perito em controlar o ritmo da agressão para garantir que eu jamais fosse embora. Ele não precisava dirigir uma palavra ofensiva sobre o meu corpo para poder usá-lo contra mim. Nós, enquanto sociedade, já fazíamos isso por ele.

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Um dia, seis meses antes de completar 30 anos, eu olhei para a garfada de macarrão com queijo que estava segurando e pensei: eu não quero comer isso. No dia seguinte, eu comecei uma dieta macrobiótica. Eu perguntei a ele o que estava achando do meu corpo mais magro. Ele gaguejou, ficou ruborizado e tentou evitar responder.

Finalmente, ele disse que eu era linda de qualquer tamanho, mas que gostava de me ver usando as camisetinhas irônicas que eu usava quando era mais magra. Foi uma resposta verdadeira e elegante que tentava reconhecer meu corpo e meus sentimentos sobre ele, reconhecer o peso que ele havia adquirido sem depreciar o que eu estava tentando fazer. Você sabe que os abusadores não cometem abusos o tempo todo.

Eu fiquei menor, mais magra. Passei a me contentar com espinafre e filés de frango grelhados no jantar, a levantar cedo para correr. Fui a um casamento sem ele, saindo mais cedo de meu trabalho durante uma tarde para comprar um vestido, porque tudo que eu tinha era grande demais. Dois homens pediram meu número naquela noite, e passou pela minha cabeça que nenhum deles sabiam que eram especiais por terem me achado atraente. E então me ocorreu que talvez eles não fossem.

Três semanas depois, encontrei meu namorado, falei tudo o que precisava dizer e fui para casa esperar pelas lágrimas que não vieram. Eu completei 30 anos seis semanas depois. Uma de minhas melhores amigas me deu um cartão de aniversário que dizia: "O resto de sua vida começa agora".

Já faz quase 10 anos que não nos falamos, e eu não passo muito tempo imaginando como seria reencontrar meu ex. Mas, quando penso nisso, nosso reencontro imaginário acontece mais ou menos assim: Eu estou caminhando pela rua, ele me vê e chama meu nome. Eu fico surpresa, porém sou cordial, tentando ser o mais correta possível, perguntando e respondendo àquelas perguntas do tipo "por onde você andou" e "o que anda fazendo" com uma dignidade gentil. Na versão de cinema dessa cena, ele notaria que eu estou mais magra, mais bonita e melhor. Conforme eu me afastasse, seguindo meu caminho, ele perceberia o que perdeu devido aos erros no seu modo de agir.

No entanto, essa não é minha vingança dos sonhos. Afinal, nenhum de nós um dia acreditou que ser magra fizesse uma mulher melhor. Em vez disso, meu ex se valeu das opiniões de outras pessoas sobre meu corpo para me manter junto a ele. Então, minha vingança dos sonhos é mais cruel. Ao me ver partir, mais magra do que eu era, ele pensaria: "Eu não sou mais especial".

Na verdade, eu ainda não sei se um dia ele chegou a ser.

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Autumn Whitefield-Madrano é a autora de "Face Value: The Hidden Ways Beauty Shapes Women's Lives" ("Valor facial: As formas ocultas nas quais a beleza molda a vida das mulheres", em tradução livre), Simon & Schuster, 2016.

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