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Esta é a história da Juliana, que fez aborto e teve a prisão decretada ainda no hospital

Ela foi denunciada pela médica que a atendeu. Hoje, grávida, teme cair no plantão da mesma médica na hora do parto.

Na cama de um hospital no interior de São Paulo, depois de uma hemorragia e convulsão por causa de um aborto clandestino, Juliana* viu dois policiais se aproximarem.

"É melhor você confessar e dizer quem te deu o remédio ou vamos te algemar aqui mesmo na maca". Ela teve prisão decretada ainda no hospital e só não foi levada dali porque os pais pagaram a fiança.

"Eles foram bem hostis, rudes. Eu estava grogue ainda, estava zonza. Eles queriam nomes. Eu comecei a falar e acabei falando o nome do rapaz que buscou o Citotec para mim no Paraguai. Depois disso, o rapaz passou a me ameaçar, me obrigou até a pagar a fiança dele", contou a balconista desempregada, hoje com 27 anos.

A denúncia à polícia foi feita por uma médica que a atendeu em dezembro de 2017. Juliana estava "quase no quinto mês" de gestação quando tomou o medicamento abortivo. Foi socorrida em um hospital público da cidade, com sangramento e muita dor.

O primeiro médico que a atendeu afirmou: "Eu sei o que você fez, não estou te julgando, mas farei o que for preciso para segurar essa gravidez". "Eu estava tão desesperada, por não querer aquela gestação, que eles me davam o remédio eu eu não tomava, jogava fora, preferia sentir a dor."

Houve troca de plantão e a situação mudou. Entrou a médica que não concordava com o gesto de Juliana.

Uma profissional da enfermagem, enquanto Juliana passava pelos procedimentos, repetia que a jovem deveria confessar porque já tinham provas de que o aborto tinha sido provocado. Com medo das consequências, Juliana negava.

Depois de Juliana convulsionar e ser levada para um quarto, a polícia chegou. Para que ela não ficasse presa, seus pais tiveram de correr atrás de dinheiro, um salário mínimo. Um para a fiança dela, outro para a do homem que comprou o remédio abortivo.

Mas este é só o meio da história.

Juliana responde na Justiça pelo crime previsto no artigo 124 do Código Penal, com a pena de detenção de um a três anos para a mulher que provocar a interrupção da gravidez. A Defensoria Pública de São Paulo tenta paralisar o processo com um habeas corpus. Um dos argumentos é a quebra de sigilo profissional dos denunciantes.

Um relatório ao qual o BuzzFeed News teve acesso aponta que, em 2017, a Defensoria ingressou com pedidos de habeas corpus para 30 ações penais contra mulheres que praticaram o aborto.

"Em 5 casos as mulheres foram presas em flagrante. Quando fixadas fianças pelas autoridades policiais, variaram entre R$ 724 e R$ 3.000. Esses valores, comparados com a renda mensal declarada pelas mulheres (entre R$ 600 e R$ 900) e o fato de, em sua maior parte, serem as principais responsáveis pelo cuidado dos filhos e sustento da casa, mostram a desproporcionalidade do valor da fiança estipulada, que pode ser uma barreira econômica de acesso à Justiça", afirma o relatório do Nudem (NúcleodePromoçãoeDefesadosDireitosdaMulher), da Defensoria Pública.

A ameaça de algemar Juliana a uma maca não era apenas para assustá-la. De acordo com esse levantamento, "as prisões ocorridas nos hospitais se davam com escolta policial e manutenção de algumas mulheres algemadas ao leito – ainda que essa prática seja vedada por súmula do Supremo Tribunal Federal –, até a concessão de alta médica ou recolhimento da fiança". Em 17 dos 30 casos estudados, a denúncia partiu de profissionais da saúde.

"Ela teve prisão em flagrante decretada. Se ela não tivesse o dinheiro para pagar a fiança, seria presa", disse Paula Sant'Anna de Souza, coordenadora do Nudem, que atua na defesa de Juliana.

O nome da cidade onde ocorreu o aborto e onde Juliana vive até hoje será mantido em sigilo para preservar sua intimidade. Trata-se de um município de pouco mais de 120 mil habitantes a 500 quilômetros da capital paulista. O nome verdadeiro de Juliana também será preservado.

Hoje, Juliana está no sétimo mês de gravidez e faz acompanhamento no sistema público de saúde. Seu maior pavor é encontrar a médica que a denunciou. Sobre isso, a Defensoria Pública vai entrar com um recurso pedindo que a profissional não seja a responsável por seu parto. Ela quer ser atendida pelo outro médico, aquele que não concordou com o aborto, mas disse que não a julgaria.

"O que tem me pegado bastante é a ida ao médico. Eu evito ir ao hospital quando sei que é ela que estará de plantão. E a Defensoria não quer que ela faça o parto porque tenho medo de violência obstétrica. Cada vez que eu entro lá [no hospital] é difícil. Já tive crise de pânico por causa disso", contou Juliana ao BuzzFeed News.


Relacionamento abusivo

Juliana estava em um relacionamento abusivo quando descobriu que estava grávida em 2017. O namorado, que era agressivo com ela e com os dois filhos que ela teve em outros relacionamentos, anunciou: "agora estaremos ligados para sempre".

"Fiquei com medo de ter um filho dele. Eu estava tomando pílula, mas tive um problema odontológico e os antibióticos cortaram o efeito do anticoncepcional. Eu não tinha condições físicas, financeiras e emocionais para ter aquela gravidez."

Juliana tomou chás abortivos que não surtiram efeito. Foi só quando se aproximava o quinto mês de gestação que ela descobriu um homem que poderia trazer o Citotec do Paraguai. O preço era R$ 400. Ela fazia tudo escondido do então namorado.

"A gente ainda estava se conhecendo. Ele foi bem agressivo comigo e com meus filhos. Ele tinha muito ciúme do meu filho, que na época tinha dois anos, e não aceitava nem que eu o amamentasse. E dizia que, se eu abortasse, botaria fogo na casa, acabaria com a minha família. Tanto que até hoje ele pensa que o aborto foi espontâneo."

O ex-marido de Juliana foi quem a acompanhou nos dias de hospital. Os dois retomaram o casamento e agora ela está grávida dele. É um menino.

"Depois de ter falado o nome do homem que comprou o remédio, eu comecei a ser ameaçada por ele. Fui até a polícia. A delegada me disse que melhor coisa que eu fazia era ir embora da cidade. Disse que não poderia me proteger porque eu também era criminosa", contou ela.

"Meu marido sabe de tudo. Ele não me ajudou. Meus pais me ajudaram bastante. Foi meu pai que arrumou o dinheiro para pagar as fianças. Mas eles me xingaram muito. Hoje eles se preocupam quando eu fico sozinha em casa, por causa das ameaças. O rapaz do remédio me disse que a lei do crime era outra e que eu não podia ter caguetado ele".

Juliana diz que não se arrependeu da decisão de abortar. Concedido em liminar que foi cassada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o pedido de habeas corpus agora tramita no STJ (Superior Tribunal de Justiça).

"Eu me arrependi de ter envolvido o nome de outras pessoas, mas, do ato em si, não. Não tem como colocar uma criança no meio de um relacionamento abusivo. Eu espero que a Justiça tome ciência de que foi uma decisão do meu corpo, minha comigo. A realidade que a gente anda vivendo é outra, mas o Estado quer decidir pela gente."

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